Jaquité na sala de espera. O banco quer comprar uma nova fotocopiadora. E Jaquité é vendedor de fotocopiadoras. E é por essa razão que Jaquité ali está: à espera na sala de espera: à espera de ser recebido: de mostrar que tem a melhor “proposta de valor”. Foi assim que no curso o ensinaram a pensar. Agora não pensa normalmente: nada disso: pensa em “proposta de valor” e pensa em “Costumer Relationship Management” e pensa em “Marketing one-to-one”.
Na verdade o Jaquité que ali está já nem sequer é Jaquité. Jaquité nascera vinte e dois anos antes. Foi numa tabanca. Na Guiné, a de Bissau. Nasceu numa casa vermelha como vermelha é a terra do chão e vermelha é a terra de que a casa era feita. Uma casa com o telhado em palha. O mesmo telhado que formava um alpendre em torno da casa. O mesmo alpendre que às vezes abrigava do sol e outras vezes abrigava da chuva e todas as vezes abrigava do calor. Esse alpendre que lhe abrigou a infância e a infância dos quinze irmãos e que abrigou o pai e a mãe e as outras duas mulheres do pai e a velhice do avô.
Esse sim: esse era o Jaquité. Mas este que agora espera sentado na sala de espera do banco já não é Jaquité. Jaquité era um nome errado: foi uma das primeiras coisas que o formador lhe ensinou no cursos de vendas: “Com um nome desses não vendes um caracol!” E a seguir explicou-lhe: ”O teu nome é tua marca. Se queres ser vendedor muda rapidamente de marca.” E foi assim que Jaquité se fez João Silva. Foi a conselho do formador que escolheu este nome. “Uma marca pode servir para diferenciar ou para indiferenciar. Diferenciação já tu tens: és preto. Portanto precisas dum nome vulgar de branco.” E foi assim que no curso de vendas entrara um Jaquité Sinhá da tabanca de Boilão Grande e que do curso de vendas saiu um João Silva da venda de Xerox.
Foi no Toca-choro duma prima que Jaquité decidiu que talvez a vida fosse mais do que a vida que a vida lhe dava na Tabanca de Boilão Grande. A tabanca: porcos e cabras e galinhas em auto-gestão nas matas de mangueiras e papaias. Milho e amendoim na auto-gestão da terra que é farta e da chuva que é muita e do sol e do calor. O arroz não. Esse não estava em auto gestão. Mas era só o arroz. E porque era só o arroz é que o alpendre da casa de terra e os troncos que aí faziam de bancos tinham tanto uso.
Mas no Toca-choro da prima apareceram alguns turistas. Eram brancos e tinham os cabelos lisos e levavam máquinas fotográficas. E fotografavam-nos. E mostravam-lhes as fotografias logo a seguir: eles ali desenhados num quadradinho luminoso! Jaquité tinha doze anos. Deslumbrou-se. E percebeu que as máquinas fotográficas não cresciam em auto-gestão. E percebeu que quem queria ter máquina fotográfica tinha de “ganhar a vida”. E decidiu: iria ganhá-la, à sua.
E agora João Silva espera. Espera na sala de espera do banco. Espera para ser recebido por um funcionário de fato cinzento e gravata azul escura e meias pretas. O mesmo fato cinzento e a mesma gravata azul e as mesmas meias pretas que João Silva veste.
João Silva sabe tudo o que tem de dizer ao funcionário das meias pretas. Sabe que tem de perceber o que o funcionário das meias pretas valoriza. E sabe que depois de saber isso tem de saber acentuar isso mesmo. Sabe que tem de usar a pitada certa de humor. Sabe que tem de aceitar as opiniões do outro mesmo que não concorde. E sabe mais: sabe que tem de usar esta e outras técnicas como se de técnicas se não tratasse: porque afinal a técnica não tem emoção e a emoção é que vende. Sabe tudo isto da mesma forma com que soube escolher o fato cinzento e a gravata azul escura e as meias pretas que veste. João Silva sabe. João Silva sabe. João Silva sabe.
E agora ali está ele: à espera do funcionário do banco. O mesmo que talvez se chame João Silva como ele. João Silva como a McDonalds é McDonalds e como a Coca-Cola é Coca-Cola e como a Xerox é Xerox.
A porta abre-se. Alguém entra. É uma funcionária do banco. É gordinha e é baixinha e usa uma voz desencadeada. Afinal o João Silva funcionário do banco não pode atender o João Silva ex-Jaquité. E o João Silva ex-jaquité despede-se da funcionária gorda e baixinha. E diz que sim: que voltará amanhã. E já está na rua. E pensa na sua tabanca de Boilão grande. E pensa nos porcos e nas cabras e nas galinhas em auto-gestão. E pensa no milho e no amendoim em auto-gestão. E olha para o céu. E pensa na sua tabanca. Jaquité pensa na sua tabanca. Jaquité pensa na sua tabanca.