Dei comigo a reler “Os Lusíadas”. Há muitos anos que não os lia: desde que a escola me obrigou. Mas agora leio-os porque quero, porque os procurei. E espanto-me. O “eu canto o ilustre peito Lusitano” não me parece a exaltação dum nacionalismo bolorento.
Hoje tive mais um sintoma. Comprei a biografia de Nuno Alvares. E estou ansioso por acabar Camões. E por saber mais do Condestável. Talvez o fundador do Portugal moderno. E assim: talvez o fundador do mundo moderno.
Que quererá isto dizer? Poderei ser português e estar tão interessado em Portugal? Será compatível? Afinal os portugueses andam tão zangados com Portugal. Afinal os portugueses parecem tão incapazes de fazer as pazes com Portugal.
É verdade que Portugal se põe a jeito. Primeiro faz-nos sonhar com uma grandeza; a de ontem. Depois só nos oferece pequenez; a de hoje. E nós destilamos tudo: destilamos em remorsos e destilamos em cada português achar que é melhor do que Portugal.
E agastados com tamanha contradição entre tamanha pequenez e tamanha grandeza: agarramo-nos à fatalidade europeia. Estamos na Europa sem amarmos a Europa. Estamos na Europa por fatais razões quantitativas. E estamos na Europa sem que a Europa esteja em nós. Porque esta Europa foi criada para resolver problemas que nunca foram problemas nossos: problemas com raízes que são históricas e com raízes que são geográficas. Problemas que começam no século VI. Problemas que vão de Espanha à Hungria. Enfim: problemas dos europeus Impérios continentais. Problemas dessa mesma Europa que tão metaforizada está na opção napoleónica: vender a Louisiana para combater no continente… sem falar nos cento e cinquenta anos que se seguiram.
Foi para resolver esta Europa-continente que a Europa-União surgiu.
Mas este é um palco que nunca foi palco nosso. Momentos da História houve em que nos forçaram a ser actores dessa tragédia. E sempre que tal nos aconteceu: afundamo-nos em armadas que se diziam invencíveis.
A verdade é que se fôssemos continentais: nós já não seriamos nós. Se fossemos continentais: teríamos sido um desses extintos reinos ibéricos: reinos que hoje mais não são do que uma entre muitas marcas heráldicas no escudo dos Bourbon.
Talvez seja essa a razão do nosso desconforto. Estamos desconfortáveis porque intuímos esta desadequação. Para um lado: aquilo que sentimos que somos. Para o outro lado: aquilo para onde estamos obrigados a caminhar.
Esforçamo-nos para tentar vestir esta pele que nos espartilha. E assim espartilhados: ficamos entre a realisticamente impossível dimensão dum passado que foi nosso e a realidade duma Europa criada para resolver problemas de outro passado: dum passado que não é nosso. Enfim: uma Europa criada para unir o que não fomos nós a desunir.
E espartilhados que estamos: o discurso fica desolador. Perdemos toda a nossa energia a tentar dimensão épica no comezinho: mais um ponto ou menos um ponto num deficit e Aquiles matou Heitor. A localização dum aeroporto e Ulisses fugiu à terrível Calipso. Um computador dito nacional e o herói chegou a Ítaca. Uma linha de comboio… E enfim: quando ficamos com uma terrível sensação de vazio: temos o recorrente debate: tão estéril quanto serôdio: a bendita regionalização. Ou então valemo-nos de algumas manobras de diversão: legalizamos ou não legalizamos o aborto? Legalizamos ou não legalizamos as drogas leves? Legalizamos ou não legalizamos o casamento homossexual? E assim andamos.
Acrescente-se uma mão cheia de estrangeirados de pendor anglo-saxónico. São estrangeirados como convém aos estrangeirados : uma minoria: uma elite que adora a sua pequena expressão quantitativa compensada por uma desproporcionada vénia institucional. Estes são os que gostam do exemplo irlandês. Os que acham que devíamos ter a Irlanda por modelo. Dizem benchmark em vez de exemplo e goals em vez de objectivos.
Eu tenho uma razão para não me apegar a estrangeirados. Num país em crise é muito fácil sair e depois chegar e depois debitar receitas. Claro que o problema é sempre o mesmo: as receitas dum doente aplicadas a outro: não funcionam. O pombalismo terminou na viradeira e a viradeira terminou em guerra civil. E depois da guerra civil tivemos o Portugal que já sabemos que temos. Devíamos aprender alguma coisa com o exemplo do nosso passado. Pelo menos mais do que com o celebrado modelo irlandês, ou benchmark.
Será que funciona começar hoje o que os outros fizeram ontem? Ou será que nos devemos desviar do caminho que outros já percorreram e lançarmo-nos à criação da nossa própria criatura?
Que criatura será essa?
Lanço um desafio: desafio o maior adepto desse Frankenstein chamado União a fazer duas viagens.
A primeira dessas viagens pode começar em Madrid e acabar na mais recôndita vila do Curdistão turco. E se digo o Curdistão turco é porque temos de ser realistas quanto ao que inevitavelmente irá acontecer na Europa-União. Claro que bastaria ficar pela Polónia, Hungria ou Roménia. Mas indo às ultimas consequências: vá-se até esse lugarejo do Curdistão turco.
E depois faça-se outra viagem. Comece-se em Cabo Verde e depois passe-se por Luanda e termine-se no mais recôndito lugarejo da Rondónia ou de Mato Grosso. Enfim: conheça-se a Atlântida. E eu chamo-lhe assim tão só para fazer uma distinção entre este Atlântico de língua portuguesa e o Atlântico ele mesmo.
E depois regresse-se. E esqueça-se os fantasmas do passado porque os fantasmas do passado deixam de ser fantasmas em democracia. E agora sim. Agora que já se regressou das duas viagens e agora que os fantasmas do passado são tão só do passado: reflicta-se.
Onde devíamos querer estar? Qual é a União por que devíamos estar trabalhar? O que é que faz mais sentido? E o que faz sentido em Lisboa não fará também sentido em Luanda e em Brasília?
E não é uma questão de não gostar dos outros: os europeus. Claro que gosto. No que me toca sou fascinado pela diferença. Mas só está preparado para admirar a diferença quem sabe quem é. E portanto é uma questão de sabermos quem somos. E sabendo quem somos: sabermos com quem somos aquilo que somos. E sabendo com quem somos aquilo que somos: de nos cumprirmos.
E eu confesso que há outra razão por que gosto de chamar Atlântida a este espaço. É porque talvez a Atlântida mais não tenha sido do que um sonho. E a mim agrada-me: dar o nome dum sonho a um sonho. Mas isto sou eu que sou diletante. Que não consigo viver sem a minha utopia.
Luís Novais