Na sua obra mais famosa, “A Ética Protestante e o espírito do Capitalismo” (1905), Max Weber procurou encontrar fatores económicos e sociais com que definir o capitalismo, destrinçando-o de outros modelos coevos e do passado.
Aquilo que Weber viu no capitalismo foi o contrário das acusações que hoje lhe são frequentemente feitas: ser um sistema conduzido pela ganância e pela falta de ética. Também no tempo de Weber, seriam já muitos os que fariam essa conexão. Uma ideia contestada pelo sociólogo alemão quando este lembrou que “instinto de lucro, sede de ganho, de dinheiro, do maior ganho monetário possível, não têm absolutamente nada a ver com o capitalismo. Esta aspiração encontra-se e encontrou-se em criados, médicos, cocheiros, artistas, prostitutas, funcionários corruptos, soldados, salteadores, cruzados, jogadores, mendigos (…), em todas as épocas e países do mundo (…). Uma sede de ganho ilimitado de modo nenhum é idêntico a capitalismo.”
O que distingue, então, o capitalismo, de outras formas de aquisição de riqueza? Weber pega em textos de Benjamim Franklin, escritos entre 1736 e 1748, como exemplo de uma ética própria que estaria na base do espírito capitalista: “Lembra-te que o dinheiro tem uma natureza reprodutora e fecunda. O dinheiro pode produzir dinheiro que, por sua vez, produzirá mais dinheiro e assim sucessivamente (…). Quem mata uma porca aniquila a sua descendência até à milésima geração. Quem destrói uma moeda de cinco xelins, assassina tudo o que poderia ter sido produzido com ela: pilhas e pilhas de libras esterlinas.”
Ora, o capitalismo estaria precisamente ligado a esta moral: uma ascese relativamente ao dinheiro, ou, mais prosaicamente, a não comer a tal porca para que ela continue a dar gerações que, qual moeda de cinco xelins, também não serão sacrificadas para que prossigam a sua reprodução. Um certo espírito de sacrifício, portanto, em que o fado de cada um seria altruisticamente produzir mais e mais e consumir menos e menos.
Ou seja, uma sociedade de produção e não uma sociedade de consumo, se é que aquela pode subsistir sem esta, algo em que Franklin não parece ter pensado. Ou talvez sim. Talvez sim, porque muita coisa mudou entre este espírito do capitalismo de meados do século XVIII e o capitalismo que hoje temos. E o que mudou foi que o capitalismo estava, nesse tempo, longe de ser o sistema económico e social dominante, num Ocidente que ainda não havia tido a Revolução Francesa,que foi a maioridade política da burguesia, e ainda estava agarrado a ideias e modelos do Antigo Regime, alguns dos quais vindos diretamente do feudalismo medieval. O capitalismo que Franklin advogava era, assim, não um sistema dominante, como o é hoje, mas algo quase que de seita; neste caso herdado e advogado numa colónia que fora, ela própria, refugio para seitas religiosas e que só viria a ser país quase quarenta anos após os citados textos.
O espírito capitalista terá, assim, germinado neste caldo mental onde, ao fator trabalho se juntava a parcimónia. Um sistema, digo eu, incapaz de funcionar fora desta ética e que, sem ela, em nada se distingue da tal ganância que, como notou Weber, sempre se verificou ao longo da história, do cruzado ao salteador, do cocheiro ao funcionário corrupto.
De então para cá muita coisa mudou. De uma crença quase religiosa duma quase seita, o capitalismo tornou-se no sistema dominante. Aconteceu-lhe, por isso, aquilo que teria de lhe acontecer e que é o mesmo que acontece a todas as seitas quando deixam de o ser para passarem a ser o sistema: perdem a pureza inicial que é, afinal, o seu espírito, o seu cimento.
Isto mesmo acontecera já ao cristianismo que, de religião humanista dos mais pobres de Roma, se tornou, com a sua passagem a sistema religioso dum universo, na religião dos cruzados, dos impérios e da inquisição. Aconteceu a muitos outros sistemas na sua passagem de seita a modelo global e também ao capitalismo que, de quase religião de alguns, se transformou num sistema económico que, de tão dominante e generalizado, já não podia ser unido pelo cimento da sua ética original e foi tomado de assalto pelos cruzados, imperadores e inquisidores do nosso tempo, sejam eles especuladores, corruptores ou administradores de dinheiros alheios.
Ao longo da sua História, a humanidade foi encontrando diversas fórmulas de organização mental, social e económica. Na verdade, no sentido antropológico do tema, não há uma humanidade mas diversíssimas humanidades que não podem, por isso, ser enquadradas num só sistema, para mais quando esse sistema ambiciona globalizar-se, como já aconteceu a várias religiões e aconteceu ao capitalismo. Os modelos são indissociáveis da respetiva ética e essa ética só se mantém enquanto a sua dimensão não fragiliza a coesão mental do grupo.
A crise do capitalismo a que assistimos hoje não é, assim, uma crise do capitalismo. Nada existe sem o seu espírito e este modelo a que hoje chamamos capitalista já nada tem do “espírito do capitalismo”. Faz tempo, portanto, que o capitalismo morreu. Morreu de elefantíase, como muitos antes dele. Este é o verdadeiro problema: falamos do cadáver como se o cadáver estivesse vivo. Mais: insistimos em mantê-lo ligado ao ventilador por horror ao vazio que pensamos que sentiríamos se o perdêssemos definitivamente.
Se estivermos conscientes disto, é, talvez, tempo de lhe desligarmos a máquina, de lhe darmos o eterno descanso que merece. Tempo para pensarmos em regressar à pequena dimensão, às múltiplas antropologias culturais, sociais, económicas e políticas. Tempo, enfim, de resistirmos às tentações centrípetas que sempre atacaram as sociedades humanas e pensarmos em globalizar a diferença que, essa sim, é fonte de coesão e de realização pessoal e social.