sábado, 22 de janeiro de 2011

A Grande Apropriação, ou, a Falácia do estado Social

O processo de industrialização maciça que foi ocorrendo ao longo do Sec. XIX trouxe consigo novos problemas sociais. O êxodo para as cidades industriais e, consequentemente, o crescimento brusco de novas mega metrópoles, foi feito à custa do caos urbanístico e duma generalizada insalubridade, que obras de autores como Charles Dickens ou Mark Twain bem ilustram.

Perdidas que estavam as ligações familiares e de proximidade típicas das sociedades rurais, muito se tem falado da perda de laços de solidariedade entre as multidões dos ex-aldeões que, por via de grandes movimentos migratório, engrossaram as fileiras do operariado.

Esta ideia, contudo, é desmentida pela auto-organização de que os membros destas classes deram provas, associando-se em instituições mutualistas de apoio à doença e velhice. Em Inglaterra, por exemplo, as Friendly Societies contavam com 1 milhão de sócios em 1850 e 4 milhões em 1872. Em 1913, na Alemanha, 16 milhões de operários estavam associados em diversas caixas de invalidez e velhice (Y. Lequin).

O modelo era simples: através da quotização de todos os seus membros, uma determinada associação assistencialista apoiava aqueles que, de entre eles, se encontravam em dificuldades, de saúde, nuns casos e até financeiras, noutros.

Igualmente fruto da auto-organização daquilo a que hoje chamaríamos “sociedade civil”, foram surgindo inúmeras cooperativas de consumo que pretendiam salvaguardar produtores e consumidores dos ataques especulativos e garantir, assim, um controlo sobre o preço dos bens de consumo. Por volta de 1860, esta tendência alargou-se ao crédito com o aparecimento de associações de crédito mútuo, com origem na Alemanha.

O mais interessante deste modelo é a sua espontaneidade e o fato do seu aparecimento e expansão não ter dependido de qualquer orientação estratégica de cima para baixo. Pelo contrário, ele aparece e frutifica a partir da base; a partir das diversas comunidades que são as suas beneficiárias. Associações por vezes muito pequenas, mas com uma ligação muito grande aos seus utentes e, portanto, geridas e controladas graças a essa proximidade, o que lhes permitiu funcionar com uma estrutura burocrática bastante leve.

É deste movimento que o Estado se vai aproveitar para começar a criar aquilo que é, hoje, a mastodôntica burocracia do Estado Social. O melhor exemplo disso mesmo está em Inglaterra. No sul de Gales, a associação de socorros mútuos Tredegar Medical Society, fundada em 1870, garantia assistência médica aos seus associados, essencialmente mineiros, com um corpo permanente de cinco médicos, um dentista e um fisioterapeuta. Aneurin Bevan, o fundador do National Health Service em 1948, conhecia bem esta organização já que era deputado eleito precisamente pelo círculo de Tredegar. E terá sido na Tredegar Medical Society que se inspirou para criar o serviço de saúde pública do Reino Unido (C. Ward).

É óbvio que, apercebendo-se das verbas que estariam implícitas numa escala nacional, os adeptos da centralização acabaram por fazer tudo o que puderam para acabar com as associações de socorros mútuos, nacionalizando indiretamente o rendimento disponível da população que, até aí, era entregue sob a forma de quotas a estas organizações de tipo comunitário. Tudo isto, claro, à custa duma gigantesca máquina burocrática e de emprego político que, como sabemos, está hoje à beira do colapso mas que, antes de colapsar, conseguiu acabar com o mutualismo. Simbolicamente, a Tredegar Medical Society acabaria por encerrar em 1995.

Feito este caminho, o que temos hoje é um Estado Social fundado na apropriação coerciva do rendimento disponível das populações. Um rendimento que, se as coisas tivessem seguido o seu rumo natural, estaria agora a ser gerido por pequenas e médias organizações comunitárias de âmbito territorial ou social, com uma profunda ligação aos seus utentes, porque por eles criadas, geridas e controladas. Organizações que, tanto pela sua dimensão como pela proximidade ao utilizador, teriam, como tinham, uma estrutura burocrática muito leve.

Ora, esta leveza de estrutura o Estado não consegue nem quer assegurar e, não podendo já suportar o peso de tamanho gigantismo, está hoje e cada vez mais a servir de mero suporte a grandes grupos financeiros que encontram justificação política em alguma optimização organizativa que os governos não alcançam, claro que, muitas vezes ou sempre, à custa da qualidade do serviço prestado ao utente. Um utente que, do ponto de vista do poder de reivindicação, lhes é distante e, como tal, pode ser desprezado. Um utente que no Sec. XIX começara a criar a sua própria organização com uma autonomia que teve de ser destruída para que o serviço que lhe é prestado deixasse de ser seu e comunitário e para que acabasse, afinal, naquilo em que está a acabar: num grande negócio para poucos, num mau serviço para todos.

domingo, 16 de janeiro de 2011

O Capitalismo sem o Espírito do Capitalismo.


Na sua obra mais famosa, “A Ética Protestante e o espírito do Capitalismo” (1905), Max Weber procurou encontrar fatores económicos e sociais com que definir o capitalismo, destrinçando-o de outros modelos coevos e do passado.

Aquilo que Weber viu no capitalismo foi o contrário das acusações que hoje lhe são frequentemente feitas: ser um sistema conduzido pela ganância e pela falta de ética. Também no tempo de Weber, seriam já muitos os que fariam essa conexão. Uma ideia contestada pelo sociólogo alemão quando este lembrou que “instinto de lucro, sede de ganho, de dinheiro, do maior ganho monetário possível, não têm absolutamente nada a ver com o capitalismo. Esta aspiração encontra-se e encontrou-se em criados, médicos, cocheiros, artistas, prostitutas, funcionários corruptos, soldados, salteadores, cruzados, jogadores, mendigos (…), em todas as épocas e países do mundo (…). Uma sede de ganho ilimitado de modo nenhum é idêntico a capitalismo.”

O que distingue, então, o capitalismo, de outras formas de aquisição de riqueza? Weber pega em textos de Benjamim Franklin, escritos entre 1736 e 1748, como exemplo de uma ética própria que estaria na base do espírito capitalista: “Lembra-te que o dinheiro tem uma natureza reprodutora e fecunda. O dinheiro pode produzir dinheiro que, por sua vez, produzirá mais dinheiro e assim sucessivamente (…). Quem mata uma porca aniquila a sua descendência até à milésima geração. Quem destrói uma moeda de cinco xelins, assassina tudo o que poderia ter sido produzido com ela: pilhas e pilhas de libras esterlinas.”

Ora, o capitalismo estaria precisamente ligado a esta moral: uma ascese relativamente ao dinheiro, ou, mais prosaicamente, a não comer a tal porca para que ela continue a dar gerações que, qual moeda de cinco xelins, também não serão sacrificadas para que prossigam a sua reprodução. Um certo espírito de sacrifício, portanto, em que o fado de cada um seria altruisticamente produzir mais e mais e consumir menos e menos.

Ou seja, uma sociedade de produção e não uma sociedade de consumo, se é que aquela pode subsistir sem esta, algo em que Franklin não parece ter pensado. Ou talvez sim. Talvez sim, porque muita coisa mudou entre este espírito do capitalismo de meados do século XVIII e o capitalismo que hoje temos. E o que mudou foi que o capitalismo estava, nesse tempo, longe de ser o sistema económico e social dominante, num Ocidente que ainda não havia tido a Revolução Francesa,que foi a maioridade política da burguesia, e ainda estava agarrado a ideias e modelos do Antigo Regime, alguns dos quais vindos diretamente do feudalismo medieval. O capitalismo que Franklin advogava era, assim, não um sistema dominante, como o é hoje, mas algo quase que de seita; neste caso herdado e advogado numa colónia que fora, ela própria, refugio para seitas religiosas e que só viria a ser país quase quarenta anos após os citados textos.

O espírito capitalista terá, assim, germinado neste caldo mental onde, ao fator trabalho se juntava a parcimónia. Um sistema, digo eu, incapaz de funcionar fora desta ética e que, sem ela, em nada se distingue da tal ganância que, como notou Weber, sempre se verificou ao longo da história, do cruzado ao salteador, do cocheiro ao funcionário corrupto.

De então para cá muita coisa mudou. De uma crença quase religiosa duma quase seita, o capitalismo tornou-se no sistema dominante. Aconteceu-lhe, por isso, aquilo que teria de lhe acontecer e que é o mesmo que acontece a todas as seitas quando deixam de o ser para passarem a ser o sistema: perdem a pureza inicial que é, afinal, o seu espírito, o seu cimento.

Isto mesmo acontecera já ao cristianismo que, de religião humanista dos mais pobres de Roma, se tornou, com a sua passagem a sistema religioso dum universo, na religião dos cruzados, dos impérios e da inquisição. Aconteceu a muitos outros sistemas na sua passagem de seita a modelo global e também ao capitalismo que, de quase religião de alguns, se transformou num sistema económico que, de tão dominante e generalizado, já não podia ser unido pelo cimento da sua ética original e foi tomado de assalto pelos cruzados, imperadores e inquisidores do nosso tempo, sejam eles especuladores, corruptores ou administradores de dinheiros alheios.

Ao longo da sua História, a humanidade foi encontrando diversas fórmulas de organização mental, social e económica. Na verdade, no sentido antropológico do tema, não há uma humanidade mas diversíssimas humanidades que não podem, por isso, ser enquadradas num só sistema, para mais quando esse sistema ambiciona globalizar-se, como já aconteceu a várias religiões e aconteceu ao capitalismo. Os modelos são indissociáveis da respetiva ética e essa ética só se mantém enquanto a sua dimensão não fragiliza a coesão mental do grupo.

A crise do capitalismo a que assistimos hoje não é, assim, uma crise do capitalismo. Nada existe sem o seu espírito e este modelo a que hoje chamamos capitalista já nada tem do “espírito do capitalismo”. Faz tempo, portanto, que o capitalismo morreu. Morreu de elefantíase, como muitos antes dele. Este é o verdadeiro problema: falamos do cadáver como se o cadáver estivesse vivo. Mais: insistimos em mantê-lo ligado ao ventilador por horror ao vazio que pensamos que sentiríamos se o perdêssemos definitivamente.

Se estivermos conscientes disto, é, talvez, tempo de lhe desligarmos a máquina, de lhe darmos o eterno descanso que merece. Tempo para pensarmos em regressar à pequena dimensão, às múltiplas antropologias culturais, sociais, económicas e políticas. Tempo, enfim, de resistirmos às tentações centrípetas que sempre atacaram as sociedades humanas e pensarmos em globalizar a diferença que, essa sim, é fonte de coesão e de realização pessoal e social.