O blogue Destante organizou uma leitura conjunta de “O Heróico Major Fangueira Fagundes (com todolos seus anexos)” e os comentários estão disponíveis online: clicar aqui para entrar.
segunda-feira, 30 de abril de 2012
domingo, 29 de abril de 2012
Descrença e angustia neste nosso tempo.
Num jornal de Lima leio um artigo onde Francisco Miró, assim se chama o articulista, divaga sobre um tema que, aqui no Peru, é levado muito a sério: a origem dos terramotos e a quimera da sua previsão. Lembra Miró que até ao Sec. XVIII se acreditava que este fenómeno era provocado por Deus para castigo dos pecados da humanidade. Hoje porém, prossegue, conhecemos a sua origem natural, as suas causas físicas. Ainda assim, a ciência não alcançou a questão mais importante: prever um terramoto e, por isso, “lo único que podemos esperar es tener suerte, y que esos sucessos terribles no se produzcan entre nosotros”.
Dias mais tarde, no mesmo jornal, Umberto Eco assina um artigo sob um curioso título: “O que viaja mais rápido: os neurónios ou um mito?”. Entre outras coisas, diz o escritor que, afinal, o espinafre não tem tanto ferro como se dizia, um mito que foi construído sobre a figura de Popeye, o intrépido marinheiro que devia a sua força à voracidade com que consumia o dito legume.
Diz-se que Popeye terá sido responsável por 33% do consumo mundial de espinafres e afinal, conta-nos Umberto Eco, 100 gramas de espinafre contêm apenas 2,7 de ferro, conta os 11,6 de, por exemplo, a mesma quantidade de fígado de galinha.
Para avivar uma memória que nos é próxima, os da minha geração estarão lembrados de que, quando éramos crianças, o consumo de azeite era considerado nocivo à saúde e que, em alternativa, os médicos aconselhavam os óleos. Hoje, quando recordamos esta história, imediatamente surge a resposta consensual de que as investigações que levaram a tais conclusões se destinaram a fomentar a indústria e a agricultura norte americanas. Ressalvo que, neste caso, não me interessa saber se assim foi ou não, mas antes apontar a consensualidade do registo.
Quem viu o documentário “Inside Job” de Charles Ferguson, assistiu a um desmontar da recente crise e à demonstração da responsabilidade que cientistas e universidades tiveram na acumulação dos fatores que nos trouxeram até aqui. Nomeadamente, reconhecidos investigadores assinaram estudos académicos, onde asseguravam a solidez de aglomerados bancários que, pouco depois, entrariam em bancarrota e que, sabemos hoje, haviam sido os financiadores desses mesmos trabalhos “científicos”.
Esta bateria de citações e exemplos serve-me para abordar o que vejo como sendo as causas profundas da desorientação que se sente hoje no mundo ocidental. Netos que somos do Iluminismo do Sec. XVIII e filhos do positivismo do XIX, levamos a Ciência ao altar do dogma: sem que disso se possa culpar a própria Ciência, acreditamos que poderíamos encontrar todas as respostas através da liturgia do seu método e, mais, que o Homem educado cientificamente seria um Homem bom. O cientista substituía o sacerdote, assim como, muito antes, este substituíra o druida. Como consequência, ao longo do Sec. XIX as universidades começam a afirmar-se como os novos templos, os da Ciência, um papel que assumem plenamente no Sec. XX.
A verdade é que o templo falhou, ou nos seus grandes objetivos, ou na contradição entre expetativa gerada e realidade. A consciência disso mesmo, que nos nossos dias se vai generalizando, é, julgo, a grande responsável pela crise cultural que enfrentamos.
Que a ciência não nos levaria ao bem universal, já desde a Primeira Guerra que o sabíamos. Que a ciência fosse capaz de nos dar todas as respostas, nem foi preciso esperar por Heisenberg ou Bergson para percebermos que não pode. Hoje porém, já se descrê que os seus sacerdotes sejam incorruptíveis interessados em alcançar a verdade e discute-se que muitas das suas conclusões serão, antes, orientadas por outros interesses bem diferentes, sejam políticos, sejam económicos, ideológicos ou sociais.
É sempre assim que acabam os grandes sistemas: primeiro, começam a esboroar-se os seus fundamentos filosóficos, depois, são os seus próprios guardiões que, dispensáveis pelo filosófico esboroamento, são alvo da descrença.
Para uma cultura assente nos pilares que construiu Platão, uma cultura que acredita na transcendência da verdade, estas constatações têm de produzir uma profunda crise cultural. Nós, ocidentais, não somos capazes de viver sem o mito da Verdade e, descrentes que estamos, resta perguntar: Onde a iremos procurar de seguida?
Entretanto, sobra-nos a angústia e os seus reflexos, que vão desde a crítica generalizada e a incapacidade de acreditar em tudo e todos que se discute nos cafés, até ao extremo dos novos movimentos de contestação que, unitários, não aceitam confiar-se à mínima liderança individual.
A crise que atravessamos, muito mais do que económica, é uma crise de descrença e é paradoxal que, numa época como a nossa em que temos tanto acesso à informação, não saibamos em quem e no que confiar. E assim se vai instalando essa terrível convicção: “lo único que podemos esperar es tener suerte, y que (…) sucessos terribles no se produzcan entre nosotros”.
Luís Novais
domingo, 15 de abril de 2012
Assunção Cristas e os Leilões do nosso descontentamento
Embora estando no Peru, continuam a chegar-me ecos de Portugal. Maravilhas da tecnologia, que agora já não perguntamos ao vento que passa: ligamos o computador e esse não nos cala a desgraça.
Hoje li no “Público” digital que a Ministra da Agricultura vai leiloar os 600 hectares sobrantes da reforma agrária. Assunção Cristas diz coisas como: é “para que possam ser aproveitados por jovens agricultores” e “é um primeiro sinal do sentido que o Governo quer dar de que o Estado não quer açambarcar mais terras, quer é pôr no mercado terra que não esteja a ser eficazmente usada” (ver notícia)
Não sei se entendi bem: para que sejam aproveitadas por jovens agricultores, vai colocar a leilão? Achará a ministra que os jovens deste país estão assim tão capitalizados? Que os que têm pais ricos estarão interessados em trabalhar a terra?
Não creio que uma ministra se engane tão facilmente. Sou, portanto, levado a concluir que, na prática, os jovens serão testas de ferro da banca que, à força de juros, tarde ou cedo as açambarcará. Simples, não? O jovem endivida-se para comprar a terra, o Estado recebe o seu e o banco recebe os juros e, quando não, apropria-se da terra: ganha o Estado, ganha o banco, perde o sonho.
Portugal está cheio de terras incultas, ao mesmo tempo que tem níveis de desemprego elevadíssimos entre os jovens. Portugal tem um problema de macrocefalia de dois ou três centros urbanos que secaram o mundo rural, que lhe absorveram os seus líderes, que lhe roubaram a sua gente mais dinâmica, que lhe levaram os seus jovens.
Uma política da terra pode contribuir para resolver ambos os problemas: para inverter o ciclo migratório e para dar ocupação a parte da massa desempregada. Mas, para isso, é preciso que as políticas sirvam esse fim e não o contrário, que é o que se adivinha com este leilão.
Uma alternativa seria uma nova sesmaria, em que o Estado isentaria de impostos as terras que lhe fossem entregues por um prazo de 20 ou 30 anos e ainda pagaria uma renda não especulativa aos proprietários. Essas terras seriam entregues por contrato-programa a quem as quisesse trabalhar, havendo uma separação entre a posse da terra (que seguiria sendo dos seus proprietários), a intermediação (que seria do Estado e, em casos extremos, coerciva) e o usufruto, que seria de quem as trabalhasse.
Ao mesmo tempo, incentivar-se-ia a criação de bolsas locais de recursos (tratores, formação, apoio técnico) que, numa lógica mutualista, poderiam ser utilizados por todos.
Aí, sim, acredito que se estaria a fazer alguma coisa pelo progresso económico, social e territorial do país; que se estariam a dar passos rumo a um novo paradigma. Mas não é isso que se adivinha, o que se adivinha é mais do mesmo e o mesmo já se sabe até onde nos trouxe. …
Luís Novais
quinta-feira, 12 de abril de 2012
Mário Vargas Llosa e a Utopia Liberal
Sou duma geração que foi educada no princípio da competição, que foi preparada para um desenfreado mata e morre ritual que, prometiam-nos, nos traria o progresso, que, diziam-nos, seria fonte de bem comum. Até já acreditei nisso, confesso. Hoje, estou consciente da mentira em que fui formado. Hoje acredito que podemos trocar a competição pela cooperação, a caridade pela solidariedade, a assistência pelo mutualismo. E nunca, jamais abraçar essa utopia que é também a de Mário Vargas Llosa, essa que é talvez a maior mentira de todos os tempos, a utopia liberal.
Ontem assisti em Lima a um colóquio sobre “Literatura, Poder e Liberdade em Vargas Llosa”, onde, para além do próprio Nobel da literatura, participaram Efraín Kristal, da Universidade da Califórnia e o historiador mexicano Enrique Krauze.
Na sua intervenção, Krauze procurou estabelecer uma periodização da obra do escritor, que considerou dividida em três fases. Primeiro, os anos sessenta, em que abraçou a causa socialista, com obras como “A Cidade dos Cães”, “A Casa Verde” e “Conversações na Catedral”. Seguiu-se, na década de oitenta, uma fase de desencanto com as ideias de esquerda e um progressivo caminhar para o modelo liberal; nesta fase abordou as fragilidades da sociedade latino americana e a facilidade com que esta podia cair nas mãos de autocracias brutais e corruptas; fê-lo em livros como “A Guerra do Fim do Mundo”. Por último, dos anos noventa até à atualidade, um certo rumo ao pessimismo, parecendo descrer da possibilidade de mudar o panorama social, ainda que nutrindo algum afeto por heróis que, sem êxito, o tentam fazer, como sucede no seu último livro, “O Sonho do Celta”.
Confesso que tinha alguma expetativa sobre a forma como Vargas Llosa comentaria esta abordagem e não fiquei desiludido com a maneira como o fez: clara, corajosa e brilhante, ainda que discorde da abordagem ideológica que defendeu e, sobretudo, da sua justificação.
Relativamente ao seu socialismo dos anos sessenta, explicou-o de uma forma geracional: face às ditaduras brutais que assolavam a América Latina, o Socialismo parecia ser a única forma de vencer o monstro. Isto para uma juventude que descria profundamente que o capitalismo fosse compatível com a liberdade uma vez que, seguindo Sartre, cria não ser possível que houvesse liberdade sem igualdade económica. “A vitória da Revolução Cubana teve um impacto épico em todos nós. Aqueles guerrilheiros que foram para as montanhas sem nada e que conseguiram destronar uma ditadura corrupta, pareciam anunciar a possibilidade de um futuro mais justo”.
O seu progressivo afastamento do Socialismo deu-se com a consciencialização de que o bloco soviético, “estava muito longe de nos trazer a justiça social que nos prometia e que, pelo contrário, não passava de uma autocracia brutal. Assistimos à invasão da Checoslováquia, começávamos a saber o que se passava em Cuba, ouvíamos o que nos relatavam os primeiros dissidentes do bloco socialista… tudo isto contribuiu para que me afastasse dessas ideias e para que percebesse quão perigosas são as utopias, para que compreendesse também quão perigosos são alguns indivíduos que, armados de uma ideia, vão para as montanhas e, pela força das armas, tentam impô-la a toda a sociedade” (sublinhados meus).
Deste desencanto, passou à sua fase seguinte: “Compreendi que o estabelecimento duma verdadeira Democracia seria a solução para a América latina e, progressivamente, comecei a abraçar o ideal liberal”. Neste abraçar do Liberalismo, Vargas Llosa realça que não se refere apenas ao liberalismo económico, mas também ao político. “Dizem-nos que, por exemplo, Pinochet foi liberal na economia porque defendeu as empresas privadas. Todos sabemos que não, pois tratava-se duma ditadura e portanto havia um grande protecionismo de certos grupos e interesses; não era possível que o mercado funcionasse livremente. Quando falo em Liberalismo, falo na importância do económico, mas também do político, porque aquele não pode ser verdadeiro sem este”. E outra vez: “Enfim, eu compreendera que o marxismo era incompatível com a liberdade e que as utopias são muito perigosas. Que houve gerações que se perderam indo para as montanhas lutar em nome dessas utopias”.
É precisamente no estabelecimento desta fronteira entre utopias para um lado e Liberalismo para o outro, que discordo de Mário Vargas Llosa e o porquê dessa discordância passa muito pela reflexão filosófica, mas também pela análise empírica desta crise em que nos mergulharam, tanto à Europa como aos Estados Unidos; uma crise que, em minha opinião, é o fruto da maior utopia do Século XX: o Liberalismo.
Vejamos.
A legitimação do Liberalismo económico resume-se numa frase de Adam Smith. "não é da bondade do padeiro, do marchante ou do cervejeiro que eu espero que saia o meu jantar, mas sim do empenho que têm em promover o seu auto-interesse", ou seja, como se depreende da demais leitura de Smith, o bem comum procede do egoísmo. Isto é: a atitude moralmente certa está em que cada um se centre no seu interesse particular, já que é desse recentrar que provém o bem comum.
Isto foi uma revolução copérnica da delimitação entre bem e mal: até aí, toda a moral procurara transformar o ser individual em ser social, aproximando o mal daquele e o bem deste, ou seja, imoralizando a egotismo e moralizando a socialização.
Ora, não é preciso estudar muito aprofundadamente as causas primeiras da atual crise, para concluirmos que foi esta libertação do egoísmo que a originou. Administrações de bancos e de grandes grupos económicos, destruíram capital e puseram em risco as sociedades que geriam, porque os gestores se centraram no seu interesse particular, ao mesmo tempo que eram movidos por acionistas que, também eles, não estavam interessados noutra coisa que não fossem os seus ganhos de curto prazo; acionistas para os quais o futuro se resumia ao que pudessem especular em bolsa, graças às perigosas manobras a que, direta ou indiretamente, incentivavam os gestores, cujos as praticavam de bom grado, porque fonte de grandes salários e prémios.
Quando esta filosofia de gestão chega à banca, o resultado é obvio, já que se trata de um setor onde é facílimo apresentar excelentes resultados de curto prazo que mais tarde se transformam nos sobeja e tristemente conhecidos desastres. Desastres de que homens como Bernard Madoff foram meros bodes expiatórios das grandes casas bancárias, essas mesmas que lhe entregavam investimentos sem fazer perguntas, já que ele se tornara numa fonte de resultados imediatos e, portanto, de valorização de ações e de justificação de prémios salariais, sem que os gestores dessas mesmos grupos financeiros tivessem de sujar as próprias mãos e arriscar a prisão. Para usar uma linguagem do meio, foi um consciente (sublinho o consciente) outsorcing do sujar de mãos, Madoff.
É por isso que eu defendo que a crise atual não é económica mas sim filosófica. É filosófica porque assenta na filosofia liberal e no respetivo princípio moral de que podemos e devemos ser egoístas se quisermos contribuir para o bem comum. É-o também porque essa filosofia acabou por minar essa ética própria que tivera um capitalismo ainda emergente no Sec. XVIII e até no XIX e que Max Weber tão bem analisou (isto mesmo abordei num outro artigo: “o Capitalismo sem o Espírito do capitalismo”).
Por último, o liberalismo político. Aceitando, como aceito, que o marxismo não é fonte de libertação, e nisto estando próximo do pensamento de Vargas Llosa, tão pouco posso aceitar que o liberalismo político no seu modelo atual possa a ser libertador. Temos a forma como a verdade tem sido ocultada aos cidadãos, temos a manipulação da informação, temos as políticas de comunicação, temos a consciência que até mesmo os estudos feitos pelos templos do nosso tempo que são as universidades, conduzem as suas conclusões em função do interesse de quem os encomenda… Temos consciência de tudo isto e é em nome disto que, se a juventude já não vai matar e morrer em pequena escala nas montanhas para defender uma utopia, hoje mata e morre em grande escala, em cenários de guerra tecnológica, em nome dessa grande utopia dos nossos tempos: a utopia liberal, a ideia de que o egoísmo é fonte de bem comum, e também de que este modelo de liberalismo político é libertador.
Sou duma geração que foi educada no princípio da competição, que foi preparada para um desenfreado mata e morre ritual que, prometiam-nos, nos traria o progresso, que, diziam-nos, seria fonte de bem comum. Até já acreditei nisso, confesso. Hoje, estou consciente da mentira em que fui formado. Hoje acredito que podemos trocar a competição pela cooperação, a caridade pela solidariedade, a assistência pelo mutualismo. E nunca, jamais a abraçar essa utopia que é também a de Mário Vargas Llosa, essa que é a talvez a maior mentira de todos os tempos, a utopia liberal.
Luís Novais
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