Foto 1: Estátua de Voltaire, no museu do Hermitage |
Publicado em 1759, “Cândido ou o otimismo” de Voltaire é uma das obras mais
emblemáticas do movimento que decorreu no século XVIII e a que chamamos
Iluminismo. Pelas ideias que expressa e pela crítica mordaz que faz, não
podemos entendê-la sem considerarmos o contexto histórico e filosófico em que
se insere.
O TEMPO
Quando a 25 de Novembro de 1555 um cansado Carlos V aceitava assinar a Paz
de Augsburgo, caía por terra o sonho dum poder imperial unido pela fé católica.
O império ganhara uma dimensão europeia inimaginável, incluindo Espanha,
Holanda, Borgonha e grande parte da Itália. Depois duma disputa com Francisco I
de França, em 1530 Carlos I passava também a ser Carlos V do Sacro Império Romano
Germânico (1530). Noutras latitudes, três anos mais tarde, um dos seus súbditos,
o aristocrata analfabeto e de terceira linha Francisco Pizarro, chegava ao
império dos Incas, que conquistaria facilmente e de onde começa a chegar grande
quantidade de ouro e prata. Além-mar a coroa imperial era agora senhora quase
absoluta da América, com exceção do Brasil, que nesse tempo não tinha grande
importância económica ou estratégica.
Um domínio com esta dimensão precisava de algum fator de transcendência com
força para unir uma tão grande diversidade e o imperador procurou essa linha na
religião católica romana. Carlos V não podia supor que esse sonho já nascera
ameaçado, antes ainda da sua coroação como rei de Espanha: No dia 31 de Outubro
de 1517 um ainda obscuro sacerdote alemão chamado Martin Lutero afixava 95
teses nas paredes da pequena igreja de Wittemberg, lançando a semente duma
discórdia político-religiosa que tornaria impossível o futuro tal qual Carlos o
imaginara.
Os príncipes alemães submetidos ao imperador viram nas teses luteranas uma
oportunidade para afirmarem a sua autonomia, contra um império que pretendia
unificar-se pelo fervor católico. De disputa em disputa, de guerra em guerra,
em 1555 Carlos V está cercado no Sacro Império e, sem tropas fieis, é obrigado
a refugiar-se em Itália, assinando de seguida o humilhante acordo de Augsburgo: Cada
príncipe ficava agora livre para definir se o seu território era luterano ou
católico. Derrotado no sonho, o imperador renuncia nesse mesmo ano e recolhe-se
a uma vida quase monacal. Morreria três anos depois, longe da corte, da vida
mundana e atacado pela gota.
Foto 2: Estátua de Martin Lutero |
Com Carlos V terminava uma era e começava outra. Voltemos portanto a Lutero,
um dos personagens que mais influiu no despontar dos novos tempos. O desafio à
autoridade do Papa assumido na atitude do obscuro sacerdote teve um impacto
viral na sociedade europeia e expandiu-se graças às novas possibilidades
abertas pela imprensa. A partir desse ato de rebeldia, Lutero foi de confronto
em confronto e de não-aceitação em não-aceitação das tentativas orquestradas para
o trazer de volta à igreja romana. Depois de intermináveis disputas,
rivalidades e uma guerra iniciada em 1618, foi no ano de 1648, dois anos depois da
sua morte, que as potências europeias assinaram um novo acordo de paz, o de Westefalia, acabando com 30 anos de sangrento conflito armado e afirmando definitivamente
a liberdade religiosa. Em estado de choque, a Europa vira costas à
possibilidade de voltar a guerrear-se por motivos de fé e, ao mesmo tempo que
nascia uma nova ordem baseada no direito dos povos a serem uma nação com o seu
território, lançava-se a semente de futuros conflitos que teriam o auge no
século XX.
O ABSOLUTO PERDIDO
Ao proclamaram a livre leitura e interpretação dos textos bíblicos, os
protestantes acabavam com uma estabilidade milenar, baseada na aceitação do
poder espiritual do Papa e no papel da Igreja como intermediaria entre o
sagrado e o profano, entre Deus e o homem. A isto, acrescenta-se que, com a
liberdade religiosa proclamada, abria-se uma caixa de pandora e as igrejas
protestantes multiplicavam-se numa profusão de credos, de que os mais
conhecidos são o luteranismo, o calvinismo e o anglicanismo, mas que tiveram
muitas mais formas que surgiram ou renasceram um pouco por todo o lado:
anabatistas, socinianos, entre muitos outros.
É precisamente à revolução protestante que o psicanalista e filósofo Erich
Fromm (1900-1980) remontou, para nos falar no medo da liberdade, ou antes, no
medo inerente que a liberdade gera. Habituados a terem pautas muito seguras, de
repente foi dito aos homens que a Igreja que os tinha conduzido era má e que
cada um era agora livre para ler e interpretar os textos sagrados. Não é
difícil de imaginar a desorientação que isto provocou em mentes até aí
habituadas a grandes e estáveis certezas, uma desorientação que foi potenciada
pela profusão de ritos e fés que entretanto iam surgindo.
O “medo à liberdade” impelia à busca de novas pautas que fossem chão firme
ao abalo da consciência e, se as respostas religiosas já não podiam servir,
procurou-se um novo absoluto na razão e nas verdades que a razão pudesse
revelar. Esse papel coube a um homem que desde a infância mostrara dotes
filosóficos: René Descartes. É assente na dúvida metódica, que Descartes começará
por negar tudo o que não seja racionalmente incontestável, num percurso que o
levará ao célebre “cogito ergo sum”
e, a partir desta constatação inicial, ao espírito (res cogita), à matéria (res
extensa) e a Deus.
Quando em 1637 publica “O Discurso do Método”, estava dado o primeiro passo
para construir uma renovada ordem filosófica e para dar à Europa um novo
modelo de acesso à certeza e à transcendência que começara a ser abalada há
precisamente 119 anos, quando Lutero afixou as referidas 95 teses na igreja de
wittenberg. Graças ao pensamento cartesiano, o mundo readquiria uma ordem
imutável e a contingência deixava de ser um tormento real, para ser parte dessa
nova ordem racional.
Morto em 1650, os seus 53 anos de vida não foram suficientes para que
conseguisse dar resposta cabal a um problema que deixou para os vindouros: Se o
espírito e a matéria são duas substâncias distintas e sendo claro que interagem,
onde é feita essa integração? Surpreendido pela questão, o filósofo deu uma
resposta ilógica e contraditória com a sua própria filosofia. Morto e
enterrado, a pergunta fica como herança à geração seguinte. Malebranche
(1638-1715) responderia através duma crença na intervenção divina: A res cogita e extensa não comunicam, é Deus quem a cada ocasião produz a sensação
dos atos físicos na alma e transfere os humores da alma para o físico. Espinosa
(1632-1677), um judeu holandês de ascendência portuguesa iria mais longe: Não
há comunicação entre uma e o outro porque não tem de haver, já que nada é
individual e tudo é parte dum todo que só não conseguimos ver porque a tanto
não alcança humano entendimento. A esta espécie de panteísmo unicista,
responderá Leibniz (1646-1716) com um individualismo universalista: Nada é
parte dum todo, tudo é único e as individualidades, as mónadas, não comunicam umas com as outras, mas têm impressa em si uma harmonia pré-estabelecida. Esta
conclusão leva-o à ideia de que nada acontece por acaso, mas porque tem de
acontecer segundo uma necessidade racional com origem na mente divina, uma
constatação que põe em cheque a bondade de Deus: Se tudo emana de Deus e
acontece porque tem de acontecer, como justificar a existência do mal? Leibniz
responde com a teoria do otimismo universal: Este mudo é o melhor dos mundos
possíveis e Deus escolheu criá-lo porque todos os outros seriam piores.
Na busca incessante duma essência que nos livre da contingência, parecia
encontrada uma resposta para o abalo renascentista e protestante. Mas voltava a
surgir um problema que entretanto tinha sido ultrapassado e que era o da liberdade
humana. Ao mesmo tempo, a visão Leibniziana é uma apologia da passividade: As
coisas acontecem porque têm de acontecer e, se este já é o melhor mundo
possível, é uma perda de tempo pretender melhorá-lo. Como veremos, “Cândido”, a
obra dum espírito profundamente livre, é uma reação a esta visão imobilizadora.
Ao mesmo tempo, uma das fações do movimento protestante redundaria no
Calvinismo, uma corrente cristã fundamentalista, intolerante e opressora. Em
1531 um inofensivo e pouco canónico teólogo nascido em Espanha, Miguel Servet, publicou a nada conforme obra “Dos Erros Acerca da trindade”, onde retomava teses que contradiziam este dogma. Tanto
foi quanto bastou para que Calvino o colocasse na lista negra e
aproveitasse a sua passagem por Genebra, em 1553, para o mandar prender
e manobrar a sua condenação à morte na fogueira. Surgido como um movimento
libertador de consciências, o protestantismo começava também ele a cair numa
demência intolerante.
Um pouco por todo o lado a orgia mental e criativa que fora o renascimento,
começava a aprisionar-se na camisa-de-forças do cartesianismo e na nova atitude
reacionária do protestantismo calvinista, seja na sua versão original, seja na
presbiteriana escocesa ou na puritana inglesa. A imobilidade e as trevas
ameaçavam envolver novamente a Europa, iluminando-a apenas com o intolerante fogo duma renovada inquisição.
Certamente que às monarquias absolutas, ou às sociedades conservadoras como a
Genebra controlada por Juan Calvino, lhes agradaria esta visão tendente à
estabilidade das convenções. A reação já se preparava e surgiu no século
XVIII, a partir dos chamados iluministas, profundamente irrequietos e
apologistas da transformação, de entre os quais Voltaire foi uma das figuras
mais influentes.
Mas ao mesmo tempo que na Europa continental a filosofia partia do conceito
e da ideia inata, na Grã-Bretanha nascia um empirismo que negava a precedência
do conceito e o fazia depender da experiência. Nascemos como um papel
em branco, dizia John Locke (1634-1704), é a experiência que nos faz preencher
essa folha; nada existia antes disso e o espírito não é mais do que um conjunto
de sensações armazenadas e organizadas pela mente.
Ao contrário do pensamento cartesiano, apriorístico, o de Locke é
libertador do indivíduo: Se nada existe fora da experiência e das
sensações, então não há justificação para submeter a pessoa a uma ideia que,
afinal, é subjetiva e, portanto, não universal.
Partindo dos conceitos de Locke, Berkley (1685-1757) e Hume (1711-1776)
viriam a ser ainda mais radicais. Se apenas existe a experiência concreta e
individual, então a abstração é irreal, a substância não existe e a própria
causalidade é inatingível, porque não é mais do que uma construção mental.
Enquanto no continente se desenvolvia um racionalismo de pendor
dogmático e totalitário, que fundamentava a submissão individual e apelava à
inação porque este era o melhor dos mundos possíveis, na ilha nascia um
racionalismo centrado no indivíduo e na sua experiência única, colocando-o no
altar e negando a universalidade da ideia. O modelo continental era duma
rigidez que não permitia fratura ou dissidência e só podia acabar como acabou:
na revolução que o decapitou, literalmente. Por outro lado, a flexibilidade do
empirismo inglês era tendente ao reformismo, ao desenvolvimento na continuidade, e
foi o que aconteceu por aqueles lados.
Interessa aqui referir que, num dos seus muitos exílios, Voltaire passou o
período de 1726 a 1728 em Inglaterra, onde terá conhecido as teorias de John Locke e teve
contacto com as ideias dos outros empiristas britânicos. A filosofia inglesa
deu-lhe as bases para a liberdade de espírito que sentia, soltando-lhe as
amarras que representava o racionalismo continental. Aderiu a ela, referiu-a em muitos dos seus escritos e, como veremos, toda a crítica que encontramos em
“Cândido” contrapõe Leibniz a Locke, Berkley e Hume.
“CÂNDIDO” NO SEU CONTEXTO LITERÁRIO
O Cândido de Voltaire é alguém que, com a cândida ingenuidade que o seu
nome anuncia, navegou mundos, testemunhou injustiças e assistiu a imperfeições.
A sua peregrinação foi precedida pela de outro personagem, Guliver, criado pelo
irlandês Jonathan Swiftt numa obra publicada em 1726 (30 anos antes de
“Cândido”), que está entranhada duma profunda crítica social e que o nosso
tempo tão injustamente infantilizou.
É ao longo de quatro viagens que, tal como Cândido, Guliver vai conhecendo
outros povos e outras culturas. Ao contrário de Voltaire, Swift usa estas
viagens, não para que o seu personagem vá constatando o mal e a desarmonia em
diferentes paragens, mas para que as vá comparando com as imperfeições da sua.
Duas das viagens são bem exemplificativas: Na primeira e mais famosa, aquela
que faz ao país dos liliputianos, conhece uma sociedade com a pequenez da sua
própria dimensão, onde as disputas e as guerras se fazem pela divisão dos
cortesãos entre o partido dos que defendem que os ovos devem ser abertos pela
parte elíptica, e os adeptos da redonda. São seres capazes de todas as maldades
para fazer vingar a sua opiniãozinha e, inclusive, invejosos da relação entre Guliver
e o rei, conspiram a sua morte, ao que o monarca, a quem o gigante sempre foi
fiel, responde “magnânimo” decidindo apenas mandar cegá-lo. É impossível não
ver aqui uma denúncia da falsa harmonia leibniziana e, claro, uma critica
direta às cortes europeias.
Em jeito de aparte, diga-se que o português António José da Silva navegou
pelas mesmas águas na sua obra mais famosa, as “Guerras de Alecrim e
Manjerona”, representada pela primeira vez no Teatro do Bairro Alto em 1737.
Nesta sátira, os partidos dividem-se entre os apologistas do alecrim e os
partidários da manjerona, numa clara alusão à futilidade das disputas cortesãs
do século XVIII.
Voltemos a Guliver. A mais significativa das viagens é talvez a última e também
uma das menos divulgadas pela iconografia contemporânea: a que o herói fez à
terra dos howhnhnms. Trata-se dum país povoado por seres equestres que falam e manuseiam
objetos e que têm uma sociedade sem conflitos que funciona em harmonia. Um dia,
o rei deste povo pede-lhe que descreva as instituições do seu país, acabando Guliver
por nos confidenciar a conclusão do monarca: “Quanto às nossas instituições
políticas e judiciais, eram claramente fruto da nossa falta de razão e, por
consequência, de virtude, porque para governar uma criatura racional basta
apenas a razão”. O rei howhnhnmiano manifesta também surpresa pela cobiça que
dominava os semelhantes de Guliver, comparando-a à que demonstravam uns seres
humanoides que habitavam como selvagens no seu reino, os yahoos, espécie de
metáfora da nossa espécie, contando a Guliver que “em várias zonas do país há umas
pedras brilhantes e multicolores pelas quais os yahoos sentem uma brutal
atração” e são capazes de “cavar dias inteiros com as garras para extraí-las,
levá-las e amontoá-las às escondidas nos seus covis”.
“Cândido”, “As Viagens de Guliver” ou “Guerras de Alecrim e Manjerona”, são
assim obras de grande crítica social, onde a disputa entre partidos é confrontada
com a vanglória e a mesquinhez. No caso das duas primeiras recorre-se a uma das
tradições que está na génese da literatura ocidental: A viagem e a epifania
alcançada pelo contacto com outros mundos, por norma distintamente iguais ao
nosso. É disto que se trata quando Ulisses abandona a ilha de Ogígia para fugir
à fatal Calipso e, depois do Senhor de Ítaca, muitos foram os heróis literários
que lhe seguiram o exemplo, entre eles este nosso cândido “Cândido”, mas também
já Cervantes seguira as passadas de Homero com o seu Quixote.
Não está aqui a originalidade genial de Voltaire, portanto, se não em ter
usado a viagem para destruir todo um edifício filosófico em que assentavam as
instituições do seu tempo. A prisão mental que significava o racionalismo de
Descartes e, muito mais, a inevitabilidade Leibniziana, assim como a
intolerância religiosa, eram algo que o irrequieto, contestatário e
inconformado Voltaire jamais poderia aceitar.
Foto 3: Castelo de Voltaire em Fernay, onde "Cândido" foi escrito. |
O LIVRO
“Cândido ou o otimismo” foi publicado em 1759. Depois duma vida de fugas e
exílios, há três anos que Voltaire optara por um retiro na pacata aldeia de
Fernay, na fronteira da Suíça com França. Decidiu publicar este livro com o
pseudónimo de Mr le Docteur Ralph, talvez com a precaução dum homem que por
duas vezes havia conhecido as masmorras da Bastilha, uma das quais por uma
comédia escrita em 1717 onde ridicularizava o Duque de Orleães, então regente
de França na menoridade de Luís XV.
A ação começa num ambiente campestre no então Sacro Império Romano
Germânico. Cândido vivia no castelo do barão de Thunder-ten-tronk, “um dos mais
poderosos senhores de Westfalia”, e os criados comentavam que seria filho da
sua irmã com um aristocrata da região com quem ela “nunca se quis casar por não
ter sido o tal capaz de provar mais de 71 costados, já que por ultrajes do
tempo se tinha perdido o resto da sua árvore genealógica”. O nome do jovem
personagem não é escolhido por acaso e nem sequer seria o de batismo: “Tinha
muito bom comportamento e era por demais simples; seguramente por esta razão
chamavam-lhe Cândido”.
A ingenuidade do personagem é um traço de carácter que vai estando presente
ao longo de toda a obra e assenta na crítica que Voltaire pretende fazer, numa estratégia
literária que vai ficando clara na forma como, nas piores situações, aceita e
insiste nos princípios filosóficos do seu perceptor Pangloss, mesmo quando
esses princípios são inverosímeis face à realidade dos factos.
Pangloss, que “era o oráculo da família”, é uma clara caricatura de Leibniz
e da sua filosofia baseada na harmonia pré-estabelecida e na ideia de que este
é o melhor dos mundos possíveis e tudo acontece porque tem de acontecer. “Está
demonstrado, dizia Pangloss, que as coisas não podem ser de outra maneira
diferente do que são, pois estando tudo feito para um fim, tudo é necessário
para o melhor fim”. A tudo isto, “Cândido escutava atentamente e acreditava com
inocência”.
Cândido nutria um amor impossível por Cunegunda, a filha do barão. Um dia,
Cunegunda enquanto passeava pelo bosque viu “o doutor Pangloss que estava a dar
uma lição de física experimental à camareira da baronesa”. Nesta observação,
Voltaire volta à crítica da causalidade Leibniziana: “observou, sem respirar,
os reiterados experimentos de que foi testemunha, e viu clara a razão
suficiente do doutor, os efeitos e as causas”, com o que “pensou que ela podia
ser a razão suficiente do jovem Cândido, quem por seu lado podia ser a dela”.
É depois dum beijo que Cunegunda recebe de Cândido atrás dum biombo que não
impediu que o barão os visse e, ”ao ver aquela causa e aquele efeito (uma vez
mais a caricatura do pensamento de Leibniz), expulsou Cândido do Castelo aos
pontapés”.
É a partir desta espécie de pecado original que o inocente herói é expulso
do seu bucólico paraíso e inicia uma aventura que o leva a passar pela guerra,
pela Holanda, Portugal, Espanha, Buenos Aires, Paraguai, Brasil, El Dorado,
Peru, Veneza e finalmente Constantinopla.
Em todas as paragens as ingenuidades de Cândido são outras tantas alfinetadas
que Voltaire dá em Leibniz e no racionalismo continental. Desertando e fugindo
da guerra, chega à Holanda onde é obrigado a pedir esmola para sobreviver.
Depois de ser maltratado, para-se a ouvir um orador que falava acerca da
caridade. “Interessai-vos por uma boa causa?”, pergunta a Cândido ao sentir-se
tão atentamente observado. A resposta é uma automática associação de ideias
lengalenguiada: “Não há efeito sem causa (…), tudo está necessariamente
encadeado para o maior benefício” e, depois de listar as agruras por que
passou, “tudo isto não podia passar-se de outra maneira”.
É também na Holanda que Cândido se reencontra com um Pangloss que as
vicissitudes da guerra tinham conduzido à maior miséria. Ao inteirar-se de
tragédias ocorridas no castelo do barão, “informou-se da causa e efeito, e da
razão suficiente que tinha posto Pangloss em tão lastimoso estado”.
Depois do reencontro, os dois viajam a Lisboa com Santiago, um anabatista holandês
que os protegeu. No fim da viagem Voltaire volta a dar uma bicada no imobilismo
a-revolucionário que pressupõe a filosofia leibniziana: O barco sofre um a tempestade
à entrada do Tejo, Santiago cai à água e Cândido quer ajudá-lo, “mas o filósofo
Pangloss impediu-o, demonstrando que a baía de Lisboa tinha sido feita
expressamente para que aquele anabatista se afogasse nela, e enquanto ele o
provava a priori, o navio terminou de
afundar-se”.
As tragédias prosseguem e com elas a crítica. Chegando à costa a nado,
estão a entrar na cidade de Lisboa quando se dá o terramoto de 1755, “e sob as
suas ruínas pereceram mais de trinta mil seres humanos de todas as idades e
condições”. Perante a destruição, Pangloss perguntava-se: “Qual pode ser a
razão suficiente deste fenómeno?” e, para consolar as pessoas que via chorar,
dizia-lhes “que as coisas não podiam passar-se de outra maneira, nem ser
melhores do que eram”.
Ainda em Lisboa e face à ruína, os “sábios daquela terra” decidiram fazer
um auto de fé: “A Universidade de Coimbra decidiu que o espetáculo de algumas
pessoas queimadas a fogo lento, com grande cerimónia, é um remédio infalível contra
os terramotos”. Cândido e Pangloss são presos e condenados: a açoites, aquele,
à forca, este. “Cândido assustado, amedrontado, louco, tremendo, dizia entre
si: Se este é o melhor dos mundos imagináveis, como serão os outros?”
A partir daqui e ao longo de toda a obra, o herói vai balançando entre a fé
e a descrença nos ensinamentos do seu mestre. Quando, ainda em Lisboa,
reencontra Cunegunda e esta lhe conta as maltratos por que passou, exclama: “Ai!
Pangloss enganou-me cruelmente ao dizer-me que tudo se passa no mundo da melhor
maneira possível”. Noutra ocasião, depois de ter cometido um assassinato, desabafa:
“Deus me valha! (…) Sou o homem melhor do mundo, e com este já tirei a vida a
três homens, dois deles sacerdotes”. Ou depois de ser preso por canibais no
Brasil: “Tudo é bom no mundo; aceito-o, mas creio que é demasiado cruel ter
perdido a menina Cunegunda e em seguida ser assado”. Uma passagem mais à frente, depois de conhecer um escravo, conclui que tem de abdicar do otimismo de
Pangloss. Cacambo, o seu criado, pergunta-lhe o que é isso do otimismo: “É
insistir que tudo é bom quando é mau”.
À volta desta crítica ao racionalismo continental, Voltaire vai incluindo
outras às instituições da época. Uma é à religião, começando pela história da
aia de Cunegunda que era filha do papa Urbano X, pontífice que nunca existiu
mas que cumpre o papel de denunciar a hipocrisia do clero. Mais adiante, Cacambo,
espécie de Sancho Pança de Cândido, desabafa com ele quando vão a caminho do Paraguai
para lutar ao lado dos jesuítas contra as tropas do rei de Espanha: “Não vejo
nada tão admirável como os padres, que fazem aqui a guerra ao rei de Espanha e
ao de Portugal, e na Europa os confessam: que aqui matam espanhóis, e em Madrid
os enviam para o céu”. Ou então no El Dorado, espécie de sociedade ideal onde o
ouro existia sem ter valor, quando um ancião lhe responde que ali todos são
sacerdotes: “Não tendes frades que ensinam, disputam, governam, maquinam e
fazem queimar os que não pensam como eles?”
Não devemos supor que a crítica contida nestas palavras seja exclusivamente
à Igreja católica. A morte de Miguel Servet na fogueira em Genebra, acusado de
heresia por Calvino em 1553, deixou uma memória perene. Acresce que, quando
decide procurar uma pessoa que fosse a mais desgraçada para viajar consigo de
regresso à Europa, Cândido opta por Martim, um “sábio, homem excelente”, que o
clero de Suriname “perseguia sob a imputação de que era sociniano”, uma seita
com origem nos inícios do século XVII e que, tal como Servet, contestava o dogma da trindade. Acresce que, de aí em diante, Martim será uma espécie de contraponto à
filosofia de Pangloss: “Quando estendo o meu olhar para este globo, ou melhor
dito, para este glóbulo, penso que Deus o abandonou a algum ser maléfico (…) Em
suma, tanto vi e por tanto passei que me tornei maniqueísta”. Cândido
pergunta-lhe “Com que fim foi criado este mundo?” “Com o fim de nos fazer
sofrer”. “Crês que os gaviões sempre comeram pombos?”, pergunta-lhe Martim, “Sem
dúvida”, “Pois bem (…), se os gaviões sempre tiveram o mesmo carácter, porque
hão de ter os homens mudado o seu?”
Com uma crítica aguda e sempre presente, os costumes também são denunciados:
“O jantar decorreu como é costume em Paris, no princípio todo silêncio, logo um
rumor de palavras ininteligíveis, depois umas piadas quase todas insípidas,
notícias falsas, diálogos absurdos, um pouco de política e muita maledicência”.
Noutra ocasião, uma jovem conta-lhe que foi seduzida por um médico casado que matou
a mulher, que logo foi acusada de ser a responsável e só não teve condenação porque se deixou
seduzir pelo juiz. Pococorante, um rico nobre Veneziano, comprava quadros de Rafael, “a
preço de ouro por vaidade; dizem que não têm par em Itália, mas não gosto deles”, confessava.
Também não estão ausentes desta obra as polémicas que Voltaire manteve com outro iluminista, Jean jacques Rousseau, o mesmo que defendia a bondade natural do homem e uma educação com a mínima
intervenção social para não afetar o bom selvagem que há dentro de nós. Num
momento da ação, Cândido é detido por canibais que preparam o festim, mas
finalmente decidem não o comer ao descobrirem que não se trata dum jesuíta; o
herói conclui que “afinal a natureza é boa, pois em definitivo esta gente não
me devorou apenas soube com certeza que eu não era jesuíta”. Noutra passagem,
ao ver nativas em atos amorosos com macacos, surpreende-se, ao que o fiel
Cacambo logo lhe responde: “Que há de estranho que em algumas terras os macacos
obtenham os favores das damas? Não são os macacos meio homens assim como eu sou
um quarto espanhol?” E, numa clara alusão à pedagogia não interventiva de
Rousseau, Cacambo conclui: ”Já vedes como o fazem as pessoas que não receberam
certa educação”.
O livro começa a caminhar para o desenlace quando Cândido descobre que
Pangloss se salvou da forca em Portugal e o reencontra em Veneza. Depois de
tudo por que passaram, já nem o “grande filósofo” está muito certo do seu
otimismo, mas insiste, “pois sou um filósofo e não me convém contradizer-me,
tanto mais que Leibniz não podia enganar-se, a harmonia pré-estabelecida é o
melhor do mundo”. Mais tarde, já com todos a viverem em Constantinopla,
Pangloss desabafava “que a sua vida era um padecer contínuo, mas que tendo uma
vez defendido que tudo ia às mil maravilhas, continuaria a defendê-lo ainda que
acreditasse no contrário”.
O fim do livro talvez não possa ser entendido se não pensarmos no percurso
de vida do homem que o escreveu e no momento da sua vida que o fez. “Cândido”
foi escrito depois duma vida preenchida durante a qual Voltaire foi expulso
duma carreira diplomática por motivos passionais em 1713, conheceu por duas
vezes as masmorras da Bastilha (1717 e 1724), se refugiou em Châteney-Malabry (1718), sofreu açoites a mando dum aristocrata ciumento (1724), foi expulso de França e exilado na
Grã-Bretanha, viu obras suas censuradas e proibidas, conheceu o reconhecimento
seguido da expulsão em Berlim, não foi admitido a reentrar em França e esteve mal-amado
na Suíça calvinista onde se refugiou. Depois de todas estas peripécias,
Voltaire refugiava-se na aldeia de Fernay, onde levou uma vida de isolamento e
reflexão, até ao seu regresso a Paris em 1778, no mesmo ano da sua morte. Foi
na pacata e bucólica Fernay que as linhas que compõem “Cândido” foram escritas
e talvez não seja difícil imaginar que, com tanto mundo trotado, com tantas
agruras enfrentadas pelo seu inconformismo, talvez tivesse percebido que não
conseguia mudar o mundo e que talvez a mudança coubesse apenas no pequeno contributo, no mais íntimo de cada um.
E é assim que também Cândido, Pangloss e Martin terminam a história numa
quinta onde vivem e que cultivam, enquanto vão discutindo filosofia. Pangloss
conclui que tudo aquilo por que passaram foi necessário para agora poderem
estar ali. “Dizeis bem – respondeu Cândido -. Mas o que faz falta é
cultivar a nossa horta”.
CONCLUSÃO
“Cândido ou o Otimismo” é uma obra que se insere numa tradição literária
ocidental iniciada por Homero: o herói que percorre o mundo com um objetivo e,
no contacto com a diferença, vai-se confrontando com as suas certezas.
Surge num contexto histórico-filosófico de aparente pacificação das grandes
dúvidas e das angústias profundas que se sucederam ao desmoronamento da ordem
mundial, depois duma época em que os desequilíbrios entre as potências europeias
assumiram um teor religioso que terminou no conflito mais sangrento até aí
conhecido, a guerra dos 30 anos (1618-1648).
No campo filosófico dois racionalismos coexistiam. O continental, originado
por Descartes, com um modelo apriorístico que terminaria num otimismo universal,
o de Leibniz, que tinha intrínseco um apelo ao imobilismo e à aceitação do status quo. Ao mesmo tempo, do outro
lado do canal da Mancha, e também do outro lado da filosofia, Locke e os demais
empiristas desenvolviam uma racionalidade centrada no individuo, na sua
experiência subjetiva e na negação de qualquer verdade universal e
transcendente.
Voltaire era um homem do iluminismo, além de que tinha uma personalidade irrequieta, quase hiperativa. Não podia, por isso, estar
conforme à estabilidade conservadora inerente a essa ideia de que “este é o
melhor dos mundos possíveis”. Mas o Voltaire que escreve "Cândido" já é um homem
maduro e na sua última fase. Autoexilado num meio campestre, não lhe sobrariam
dúvidas de que lhe era impossível mudar radicalmente o mundo. Talvez daí essa última
satisfação, a mesma do seu personagem: Pelo menos tratemos da nossa horta, ou seja e no seu caso, escrevamos livros, criemos personagens que denunciem as contradições em que vivemos.
Luís Novais
Fotos:
1 Dezalb