Obra inacabada na qual o autor investiu uma grande parte da sua vida
literária, “Bouvard e Pécuchet” (publicado postumamente em 1881) é muito mais
do que um produto do seu tempo, trata-se duma visão do futuro, pelas tendências
literárias, sociais e antropológicas que demonstra e porque aborda questões que
viriam a ser centrais durante todo o século XX e que são também da atualidade.
Visionário, neste livro Flaubert (1821-1880) parece um adivinho dos quase 150
anos de História que lhe sucederam.
Não conseguimos entender quão percursor, se não abordarmos o longo passado
que foi necessário para aí chegar. Quando “Bouvard e Pécuchet” foi dado à
estampa, tinham passado uns 1100 anos de lenta recuperação da racionalidade no
ocidente europeu. Passada a congestão provocada pela queda do Império Romano,
as cortes carolíngias começaram a reunir os sábios da época e foi daí que ressurgiu
a célebre questão dos universais, recuperando uma temática sempre presente na
Filosofia ocidental: A separação entre os sentidos e a razão. Inserido neste
movimento e retomando a obra de Porfírio, Escoto Erígeno (810-877) foi o
primeiro medieval a dedicar-se ao tema, defendendo que razão e Deus jamais
poderiam ser contraditórios e que era por aquela que se chegava a Este. Anselmo
de Cantuária (1033-1109) seguiria o mesmo caminho mas por uma via inversa que
está espelhada na sua célebre frase de clara influência agostiniana, “credo ut intelligan”, “creio para
compreender”.
Naqueles distantes séculos estava aberta a porta ao regresso duma
racionalidade que na Idade Média andou de mãos dadas com a religião, fundindo
os dois absolutos que podem unir a fragmentação cósmica com que o homem, ser
consciente de si, sempre se confronta na relação individual com o outro e com o
universo.
A certeza escolástica no carater divino da criação não admitia qualquer
mutação e era um forte esteio do imobilismo social. Enquanto as condições o
permitiram, esta visão foi a dominante, ainda que o movimento popular, quase
espontâneo e certamente incontrolado que foi a Cruzada dos Pobres (1095-1096)
tenha mostrado a face oculta dum caldeirão social à espera de explodir.
Foi preciso esperar pela expansão marítima para que essa explosão se desse,
e não é por acaso que o renascimento surge na península itálica, a região da
europa ocidental que primeiro centralizou o comércio com o distante oriente e,
por isso, conheceu por antecipação a mobilidade que podiam proporcionar os “novos
mundos”. Mas foi com a chegada às américas (1492) e uma vez navegado o caminho para
a India (1498), que se abriram as portas ao terramoto social que expandiu o
renascimento e que permitiu ao indivíduo libertar-se e descobrir-se a si mesmo.
Profundamente antropocêntricos, os renascentistas acreditaram na plenitude
da dimensão humana e na capacidade de cada um para, através da razão, encontrar
harmonia e verdade. Duzentos e cinquenta anos antes de Flaubert escrever
“Bouvard e Pécuchet”, Thomas Morus (1480-1535) escreveu “Utopia” (1516) onde um
personagem português chamado Rafael narra as suas viagens por essa ilha, “onde
tudo está organizado racionalmente de acordo com o interesse público”, e onde
os cidadãos creem que “uma vida agradável, quer dizer, de prazer, é prescrita
pela natureza como finalidade das nossas ações; e definem a virtude como viver
segundo estes preceitos”.
Duzentos anos depois de Morus, Jonathan Swift (1667-1745) dava à luz “As
Viagens de Guliver” (1726). Em diferentes aventuras, o personagem confronta-se
com a irracionalidade da corte liliputiana onde os negócios públicos são
conduzidos por caricaturas inauditas das cortes europeias desse tempo:
“(Quando) uma posição oficial fica vaga, cinco ou seis (…) candidatos pedem ao
imperador que organize um sarau de dança sobre a corda (…). O posto é
conquistado por aquele que consegue saltar mais alto sem cair”. Em Lilipute as
disputas cortesãs de homens metaforicamente minúsculos davam-se entre os
defensores dos tacões altos e os dos tacões baixos e as guerras rebentavam entre
os adeptos de partir os ovos pelo lado redondo e os do lado elíptico. A
sociedade ideal encontrou-a Guliver no país dos houyhnhms, criaturas
quadrupedes, governadas pelo que poderíamos considerar um déspota iluminado e
com um sistema de governo racional, cujo monarca escuta Guliver contar-lhe o
funcionamento do seu país natal, para depois concluir que as “(vossas)
instituições políticas e judiciais” são “claramente fruto da (vossa) falta de
razão (…) porque para governar uma criatura racional basta apenas a razão”.
Esta crença num absoluto racional secularizado será uma luta de duzentos
anos que atravessou renascimento e iluminismo. Dir-se-ia que, uma vez
descoberto o individuo, os novos pensadores acreditavam na racionalidade como
integradora antropológica e cósmica. Uma crença tal que os levou à convicção de
que que dispensaria a opressão do homem sobre o homem, levando a que todos
alcançassem os mesmos princípios e ações.
Garantir uma organização racional do Estado tornou-se uma obsessão. Em “O
Espirito das Leis” (1748), o barão de la Brède, mais conhecido por Montesquieu
(1689-1755), procurou uma fórmula para garantir um poder partilhado e
alternativo ao absolutismo, defendendo o modelo de divisão dos poderes que hoje
é apanágio do Estado de Direito Democrático. Catorze anos depois, em “Do
Contrato Social” (1762), Rousseau (1712-1778) partirá do princípio da bondade
natural do homem (que explora mais aprofundadamente em “Emílio”, também de
1762) para defender que a relação do homem com o Estado deveria ser resultado
duma contratualização e não duma submissão.
Este grande debate acabaria por ser a base do primeiro país que surgiu dum
modelo e não duma antropologia, os Estados Unidos da América, cuja constituição
(1787) se funda nos ideais iluministas. Apenas dois anos depois rebentaria a
Revolução Francesa e na sala do jogo da péla exigia-se também uma constituição
que regulasse o exercício do poder. Foram 10 anos de aventura revolucionária,
que deram muito trabalho à guilhotina e que terminariam, já no advento do
século XIX, com outra aventura, agora capitaneada por esse corso chamado
Napoleão.
Depois desta década revolucionária já nada poderia ser igual: Os modelos
sonhados pelos iluministas foram triunfantes, pelo menos em ideologia, e,
apesar da reação romântica, todo o século XIX foi uma progressiva perda da
espiritualidade e um caminhar no sentido da racionalidade secular e materialista.
O grito do Ipiranga no Brasil, as independências da américa espanhola, as
constituições de Cádis e a portuguesa de 1822 bebem de Montesquieu e Rousseau.
A razão tornava-se a base de todo o conhecimento, de toda a forma de governo e
o método científico era a nova liturgia de acesso à verdade e, até, ao bem
universal.
Foi preciso esperar até á primeira década do século XX para que a fé na
bondade de todo este edifício começasse a sofrer abalos, e a machadada final foi
dada pela mais mortal das guerras até então conhecidas: Como acreditar que a
ciência por si só nos conduziria ao bem, se os milhões de mortos de 1914-1918
se deveram aos progressos científicos? A humanidade horrorizava-se com aquilo
que conseguiu e o pior ainda estava para vir, como bem sabemos. A objetividade
da ciência começava a ser posta em causa e a capacidade da razão para
universalizar deixava de ser um princípio inquestionável para as elites.
Verdade e realidade tinham agora múltiplas perspetivas, num movimento em que o
cubismo de Picasso (1881-1973) constitui talvez a mais significativa representação
nas artes plásticas, e o desmultiplicar dos eus de Pessoa (1888-1935) na
literatura. O indivíduo não era afinal um ser livre e governado pela razão, mas
uma presa fácil da opressão burocrática, como tão fielmente está retratado em
“O Processo” de Kafka (1883-1924), publicado postumamente em 1925. No extremo,
recusava-se qualquer sentido à realidade, na orgia dadaísta.
Mas depois do tempo, tempo vem, e os grandes absolutos voltaram à carga com
os nacionalismos que por sua vez se desmoronariam em 1945.
Derrotados o nazismo e o fascismo, seguiram-se-lhes outras “certezas”
alimentados por uma “guerra fria” onde se confrontaram dois sistemas, duas
concepções de vida distintas e duas promessas diferentes. Entre 1945 e a
simbólica queda do muro de Berlim em 1989, poucos tinham dúvidas sobre o modelo
político, económico e social em que queriam viver, fosse por crença própria,
fosse por medo da alheia.
O fim desta nova época de grandes ideias e grandes certezas acabou em duas
datas, a de 1989, de que já falamos, e a de 2007, quando a chamada crise do subprime deixou em claro as fragilidades
do modelo liberal capitalista e a destrutiva promiscuidade existente entre este
e o templo da racionalidade que são as universidades. Caía por terra um mito
entretanto tecido: O do Homem libertado de todas as amarras graças à
globalização e à suposta livre iniciativa.
Perdidas as certezas, depois dos progressos que se foram dando nos
mecanismos de propaganda, da expansão meios de comunicação de massas e com o
advento da internet como difusora ao dispor de todos, só restava a palavra e a
palavra tomou o lugar duma verdade que já contava menos do que a mentira muitas
vezes e bem repetida. E foi com palavras, não com ideias, com mentiras, não com
verdades, que nos convenceram a fazer as recentes guerras da pós-modernidade.
Hoje, enquanto uns se refugiam na superficialidade de conceitos aparentes,
outros olham para esse outro absoluto, o místico, o irracional, o que assenta
na fé e não requer uma prova na qual, afinal, a maioria já não consegue
acreditar. Consultam-se bruxos e chamans, fazem-se viagens para destinos
místicos, adere-se a novos e velhos sagrados. Como bem desenvolveu George
Steiner em “Nostalgia do Absoluto”, quanto mais misterioso e desconhecido, mais
facilmente se adere, porque a descrença é, afinal, no conhecimento e no poder da
razão.
Falta apenas cair um pilar que já está em abalo, o da crença numa Justiça
independente e capaz de julgar. Chegaremos então, e em parte já chegamos, à sua
substituição pelo julgamento on line,
publico e popular, que mancha e condena mesmos sem condenação. Quando e se isso
acontecer, entraremos de frente numa nova era, essa a que chamo a inmodernidade.
Vêm tempos difíceis para os que somos descendentes do renascimento e do
iluminismo.
Voltando a Flaubert e a “Bouvard e
Pécuchet”
O que mais surpreende é que todo este devir já está anunciado nas aventuras
e desventuras dos dois personagens. Cinquenta e três anos antes de Aldous
Huxley (1894-1963) publicar aquela que é talvez a primeira obra de desilusão
modernista com o homo cientificus, “O
Admirável Mundo Novo” (1932), e enquanto os seus contemporâneos procuravam
fundir literatura com ciência, Flaubert usa esta última para se revoltar contra
a dimensão da promessa feita, uma revolta que, em abono da verdade, já tinha
sido prenunciada no distante 1818 pelo Frankenstein de Mary Shelley
(1797-1851).
“Bouvard e Pécuchet” desenrola-se em torno destes dois personagens, ambos
copiadores de documentos em diferentes escritórios, que se conhecem por acaso
num banco de jardim parisiense, gerando-se uma amizade que os levará a largar
tudo e a viver juntos numa casa de campo. Os dois são uma espécie de metáfora
do cidadão com alguma ilustração e incapaz de viver de acordo com o modelo
racional que foi advogado desde Morus até Montesquieu. Uma metáfora que está
presente até na profissão original dos dois: copiadores, antes de enveredarem
por uma aventura de múltiplos conhecimentos, de ilusões múltiplas.
A primeira parte da obra foi publicada em 1881, um ano depois da morte do
autor, e ficou inacabada. A segunda nunca chegaria a ser escrita, conhecendo-se
apenas alguns rascunhos. Trata-se, portanto, dum livro que foi escrito em pleno
período realista e naturalista, já passada a reação romântica e numa época
plenamente assenhoreada pela racionalidade de base científica e pela crença de
que esta poderia criar um mundo novo, mais bom do que “admirável”.
En passat, diga-se que foi claramente inspirado por estes
dois personagens que, em 1938, Sartre (1905-1980) criou o Autodidata de “A
Náusea”.
Ao longo do livro, os dois “bons homens” irão entusiasmar-se e
desentusiasmar-se por uma sucessão alucinante de saberes, tudo começando
quando, sem perceberem as causas do seu insucesso numa empresa agrícola,
“Pécuchet concluiu com estas palavras: - Talvez seja porque não sabemos de
química!”
A partir desta constatação inicial, entram numa espiral sucessiva de
procura de novos saberes. Começando pela química, encomendam um “Curso
Elementar”, da autoria de Regnault, que foi publicado em 1840, onde aprendem
que “um corpo pode comportar-se como um ácido ou como uma base, conforme as
circunstâncias”. Depois duma longa discussão, Pécuchet desabafa que “Em resumo,
não entendo”, logo secundado por Bouvard, “Nem eu!”. Chegaram até a sentir-se
humilhados quando ficaram a saber que “os seus corpos continham fósforo como os
fósforos, albumina como a clara de ovo, hidrogénio como a chama do gás”.
Desiludidos com a química, partem para a anatomia, fazendo experiências com
os próprios corpos, para logo concluírem: “Não entendo nada! E no entanto
movo-me”. Não desistiram à primeira, ainda que nenhuma experiência funcionasse:
“As pombas que dessangravam, quer tivessem o bucho cheio ou vazio, morriam no
mesmo lapso de tempo. Uns gatinhos mantidos debaixo de água morreram passados
cinco minutos”. Enfim, a anatomia revelava-se mais uma desilusão e “ao não
terem conseguido compreendê-la, deixaram de acreditar nela”.
Seguiu-se a medicina, com um impacto nas suas vidas pessoais que nos faz
sorrir quando pensamos na atual cultura geral médica de quase todos os
cidadãos, sustentada na internet, na televisão e num ou outro livro de
divulgação:
“Germaine (a empregada doméstica) perplexa já não sabia o que lhes levar à
mesa.
Todas as carnes apresentavam inconvenientes. A morcela e os enchidos, o
lavagante e a caça são refratários. Quanto maior um peixe mais gelatina contem
e, por conseguinte, é pesado. Os legumes provocam acidez, o macarrão dá
sonolência, os queijos (…) são dificilmente digeríveis. Um copo de água de
manhã é perigoso, toda a bebida e todo o comestível iam acompanhados de
admoestações deste tipo.”
Tudo isto era seguido com desconfiança pelos burgueses da cidade, que
entretanto iam recebendo com indiferença submissa os avanços e recuos políticos
do conturbado século XIX francês. Os dois personagens pretenderão
sucessivamente ser historiadores, arqueólogos museólogos, escritores… Aderiam
entusiasmados aos novos conhecimentos, encomendavam livros, passavam dias sem
comer, discutindo aquilo que aprendiam, para logo desistirem quando, avançados
na matéria, percebiam que não havia certezas, que as opiniões dos sábios eram
contraditórias e que tudo era, afinal, muito mais complexo do que haviam
imaginado.
Quando, por exemplo, decidem tornar-se escritores, procuram primeiro definir
a estética, mas “para Schelling, é o infinito que se expressa através do
finito; para Reid, uma qualidade oculta; para Jouffroy, não é analisável; para
De Maistre, aquilo que é do agrado da virtude; para o padre André, o que é
conforme à razão”. Perante tantas visões, desistem quando Bouvard conclui que
“Todos os autores de retóricas, de poéticas e de estéticas me parecem uns
imbecis!” Igual incapacidade para entender e aceitar as dicotomias dos saberes,
quando renunciaram à medicina: “Os mecanismos da vida são-nos desconhecidos, as
infeções são demasiadas, os remédios problemáticos. E nos livros não se
encontra uma só definição razoável de saúde, de doença, de diátese, nem sequer
de pus”.
“Bouvard e Pécuchet” é, assim, um livro que surge em pleno período de
triunfo do racionalismo secular e científico, e nasce como uma crítica à
viabilidade duma sociedade composta por seres racionais, muito capazes de
compreender e muito capazes de usufruírem racionalmente da sua liberdade. É uma
espécie de obra sobre a utopia da “Utopia”, essa que Thomas Morus escrevera uns
350 anos antes e que foi um marco base a partir do qual se defenderam modelos
de Estado assentes sobre uma cidadania racional. Na sua patética busca pelo
conhecimento, os dois personagens são uma espécie de Quixote renascido, esse
que “de pouco dormir e de muito ler se lhe secou o cérebro”.
A busca mística
Uma das características da nossa pós-modernidade é um neo-misticismo,
fundado na redescoberta religiosa, por vezes tradicional, geralmente exótica.
Aquilo que em “Nostalgia do Absoluto” George Steiner diz ser a adesão por
desconhecimento porque o conhecimento retira mistério. E aqui entram velhas religiões,
fundamentalismos, uma crença nas Igrejas tradicionais, aparições fantásticas ou
as novas fés de mensagem simplificada que comercializam o milagre e a relação
entre o sagrado e o profano.
Nos intervalos entre os seus entusiasmos racionalistas, também Bovard e
Pecuchet tiveram ataques de misticismo. Desde logo, quando o projeto agrícola
que começam por abraçar não deu certo e Pécuchet concluiu que “Talvez afinal a
sorte não nos sorria! E queixaram-se da providência e da natureza”, acreditando
ao mesmo tempo que poderiam ter tido êxito, “tão só o destino assim tivesse
querido” (p 94)
Mas o verdadeiro misticismo ataca-os quando, depois duma tentativa de
suicídio na noite de Natal, decidem sair e assistem à missa do galo, sentindo
“como uma aurora nascer nas suas almas” (p 294). É então que “o evangelismo
lhes inundou a alma, os deslumbrou tal qual um sol”. Na mesma atitude de sempre
dedicaram-se às leituras bíblicas e, como sempre, começaram a sentir a
desilusão: “a Bíblia, com os seus profetas de voz de leão, o rugir da tormenta
nas nuvens (…) aterrava-os” (296). Desesperados por sentir fé, começam a
frequentar o padre local, ao qual perguntam o que fazer para encontrá-la e do
qual recebem apenas um conselho: praticá-la. “E puseram-se a praticar” (297), e
“para obter o dom da perseverança (Pécuchet) decidiu ir em peregrinação à santa
Virgem”.
Nesta fase mística dos dois personagens, nenhuma passagem é tão ilustrativa
como um pensamento de Bouvard quando está prestes a comungar: “O que ia ocorrer
dentro em breve (a consubstanciação) era inexplicável (…), mas a razão não
basta para compreender determinadas coisas”.
Todavia, este Bouvard e este Pécuchet são homens duma época e com um
percurso que é uma metáfora da História, já não lhes era possível simplesmente
regressar à Idade Média. Ao primeiro, “tinham-lhe prometido que o sacramento o
transformaria (…). Continuava a ser o mesmo e foi dominado por um estupor
doloroso”: Como é que “a carne de Deus se mistura com a nossa carne e não
acontece nada?!”
Constatado isto, repete-se o padrão:
“Recorreu a escritores místicos: santa Teresa, san Juan de la Cruz, Luis de
Granada, Scupolo. E a outros mais modernos, como monsenhor Chaillot. Em vez das
sublimidades que esperava, não encontrou se não banalidades, um estilo muito
débil, frias imagens e muitas comparações retiradas do mostruário dos
lapidários” (310)
Começando a desabafar com o padre e colocando-lhe problemas religiosos e
morais cada vez mais complexos, o sacerdote apenas lhe repetia: “Não se
atormente. Quando alguém tenta chegar ao fundo de tudo, desliza por uma rampa
perigosa”. Não encontrando respostas satisfatórias na religião tradicional,
Pécuchet “tornou-se transcendente, mitológico. Comparava a Virgem com Isis, a
eucaristia com o homa dos persas,
Baco com Moisés, a arca de Noé com a barca de Xithuros” (316). Finalmente, e
como não poderia deixar de ser, “não frequentaram mais o padre” (323).
O escândalo entre os burgueses locais rebentou quando, numa atitude bem
típica desta nossa pós-modernidade, perante o grupo de ilustres cidadãos onde estava
também o sacerdote…
“…Pécuchet declarou que quase preferia o budismo.
O Padre desatou a rir:
- Ah ah ah, o budismo!
A senhora Noaris levantou os braços:
- O budismo!
- Como… como o budismo? – repetia o conde.
- Por acaso conhece-o? – perguntou Pécuchet ao padre Jeufroy (…) -. Pois bem,
saiba-o!, é melhor do que o cristianismo (…) e, quanto à encarnação, Visnú não
encarnou apenas uma vez, mas nove! Assim que julguem vocês!” (330)
Os dois personagens terminam no maior dos descréditos. Já quase no fim da
obra, sempre que paravam numa casa para denunciar uma superstição, “os
habitantes, que os conheciam de os terem visto primeiro como médicos, depois
procurando móveis velhos, ou pedras, respondiam: - Fora daqui, palhaços! Não
nos venham dar lições”. (360)
Algumas notas visionárias
Não temos uma ideia clara de como Flaubert pretendia terminar este primeiro
volume de “Bouvard e Pécuchet”. Ainda assim deixou-nos algumas notas que nos
permitem vislumbrar o desenlace. O que parece certo é que, desiludidos com a
busca do conhecimento, os dois homens decidem regressar ao trabalho de
copiadores:
“Uma boa ideia alimentada pelos dois. Mas dissimulam-na um ao outro. De vez
em quando, sorriem quando a ideia os assalta, logo a comunicam em simultâneo:
copiar” (375)
Algumas das notas são muito simples, mas extremamente interessantes pela
premonição que contêm dos quase 150 anos que passaram depois de terem sido escritas:
“A América terá conquistado a terra.” (372)
“Fim do mundo como consequência da interrupção do princípio calórico.” (372)
“A Europa será regenerada pela Ásia. Como a lei histórica quer que a
civilização se mova do oriente para o ocidente, papel da China, as duas
humanidades finalmente se fundem.” (373)
“Se armazenará a luz, pois há corpos que possuem esta propriedade.” (373)
“Se viajará aos astros, e quando a terra estiver esgotada, a humanidade mudar-se-á
para as estrelas.” (373)
Outros aspectos e conclusão
A análise desta obra deve passar também pelo posicionamento político de
Flaubert, um autor profundamente desiludido com a capacidade da burguesia para
construir a tal sociedade racional que esteve na base ideológica da sua
conquista do poder, mas para a qual não estaria preparada.
Esta desilusão é típica dos intelectuais da época e podemos encontrá-la
noutros autores, incluindo os da generalidade da nossa chamada Geração de 70.
Em “Bouvard e Pécuchet” há uma clara crença na inaptidão da burguesia para
se governar, regenerar e emancipar. A intelectualidade que rodeia os dois “bons
homens” é medíocre, mesquinha e incapaz de compreender o seu tempo e de se
libertar.
Outro aspecto interessante é a visão da educação que apresenta, patente numa
caricatura da confusão de conceitos que as obras sobre o tema poderiam provocar.
No decorrer da obra, os dois personagens encarregar-se-ão de educar duas
crianças abandonadas, perdendo-se num emaranhado de conceitos educativos bebidos
das obras dos pedagogos mais famosos da época. Tudo redundará num desastre, até
que lhes retiram as crianças.
A primeira questão está bastante estudada e é o objeto quase único da
introdução de Jordi Llover à edição a que tive acesso. Quanto ao tema
educativo, seria interessante para um estudioso de Ciências da Educação, mas
sai do âmbito desta análise, que é caráter visionário da obra.
E nesse âmbito não resta dúvida que este foi um livro muito avançado para a
época, o que explicará a razão por que foi tão mal recebido pela crítica. Num
período em que a razão secular, a ciência e o método científico eram uma
espécie de base comummente aceite pela elite, uma obra que põe o dedo na ferida
e denuncia as fragilidades desta visão e a incapacidade real da sociedade para
viver de acordo a esse ideal, seria incomodo de mais para ser aplaudido pelas
elites. Antecipando incomodidades que só mais tarde surgiriam, algumas das
quais são as dos nossos dias, em “Bouvard e Pécuchet” Flaubert teve a
genialidade dos que ultrapassam o seu tempo e são influenciados não pelo que se
viveu, sequer pelo que se vive, mas pelo que virá.
Luís Novais
Nota: A edição a que tive acesso foi uma tradução para castelhano da “Penguin Classics”: FLAUBERT, Gustave. “BOUVARD Y PÉCUCHET”. Edición al cuidado de Jordo Llovet.
Traducción MONREAL, José Ramon. Penguin
Random House Grupo Editorial. Barcelona 2009