A monarquia borbónica está transformada numa peste borbónica,
analogia a essa doença que, noutros tempos, vitimou
muitos, sem distinção de quem era plebeu, aristocrata… ou rei.
Poucos sabem que o Peru, país onde vivo e amo como segunda pátria, esteve
para ser uma monarquia. Chegado aqui desde a Argentina em 1820 e com o apoio do
Chile, o “libertador” José de San Martin encontrou um território com tanta
diversidade e tanto confronto potencial, que considerou só com um rei se poderia
unificar. Foi a contradição entre esta perspectiva e a megalomania dum Simon
Bolivar, interessado no nunca alcançado objectivo de ser o George Washington
latino-americano, a impedir uma saída que, por esse tempo, se iniciava com
êxito no Brasil.
Em 1822, o país já tinha declarado a independência há um ano e continuava
sem forma de governo. Foi nessa altura que a “Sociedade Patriótica de Lima” organizou
um debate em torno de duas opções: Monarquia ou República?
Destacaram-se as intervenções de Ignacio Moreno e Perez Tudela. O primeiro,
partindo de Montesquieu, defendeu que o novel país tinha tantas diferenças, considerou
que o povo estava tão mal preparado para o sistema republicano, que só uma
monarquia seria viável. O segundo, Perez Tudela, baseando-se em Rousseau,
defendeu que, apesar das diferenças, havia algo que unia todos os seres humanos
e esse algo era o desejo de ser livre. Concluindo que a liberdade só se realiza
planamente numa república, defendeu esta via.
Ambos partiam de ideias incorrectas para justificar um modelo. Nem a
monarquia moderna se reveste do autoritarismo que Moreno nela encontrava e
desejava, nem, por isso mesmo, é contrária à liberdade com que Moreno a via incompatível.
Mais do que governante, um rei moderno tem razão de ser quando consegue ser
a “chave”, nome que se usa também para a peça central dum arco, aquela que
sustem as pressões de ambos os lados, mantendo unidas todas as aduelas com que se
ergue. Quando o monarca assume esse papel, tem uma razão de ser nos estados
modernos, quando não o faz, torna-se na antítese da sua função e fica apenas como mais um factor de desunião.
Para isso, o rei tem muitas vezes de anular a sua liberdade de expressão e
de acção. Mas ninguém é obrigado a sê-lo e, lá dizia a epifânia de Afonso IV
pela pena de António Ferreira: “Ninguém é menos rei do que quem tem reino”.
Dependendo dos casos, um rei pode prestar grandes serviços à república,
entendendo esta como um conjunto de cidadãos e, portanto, de seres humanos
livres. Foi graças a um modelo monárquico, que o Brasil conseguiu ter a dimensão
que tem, não se desmembrando como aconteceu à restante América latina. Foi
também graças a isso, que a sociedade espanhola ultrapassou o trauma da guerra civil,
conseguindo encontrar os pontos de união que lhe permitiram mudar de regime pacificamente,
preferindo incorporar os problemas inerentes a uma transição consensual, do que
aqueles que advêm duma revolução. Não é segredo para ninguém que Juan Carlos de
Borbón foi um fiel discípulo de Franco, chegando mesmo a governar
ditatorialmente durante a doença do caudillo em 1974. Mas até a esquerda
espanhola, até as regiões mais independentistas, viram no rei uma alternativa
ao caos. Foi por isso que a constituição de 1978 foi referendada e aprovada
sem problemas de maior, método de aprovação que em Portugal já tinha sido usado
em 1933.
O problema surge quando o rei não entende o drama de ser rei e quer sê-lo.
Quando isso acontece, passa a ser parte do problema e entra no modelo de monarquia pré-contemporânea (ou ainda contemporânea em muitos países), essa que
tinha outras justificações e outras legitimidades.
O caso catalão é um grande exemplo de que isso está a acontecer em Espanha.
Em vez de ser o garante dessa liberdade de que Rousseau falava, perdendo-se
como última instância, deixando de ser a tal “chave” que consegue suster as pressões
de ambos os lados do arco, Filipe de Borbón é, hoje, um líder de facção que
atua contra a vontade, ou maioritária ou de grande parte dum povo. É preciso
não entender o processo histórico espanhol iniciado em 1975, para nos
agarrarmos à letra duma constituição, que pode ter sentido num contexto, mas que hoje já
não tem e relativamente à qual não se mostra a mínima abertura
reformista.
O historiador Valério Arcary escreveu que as revoluções são “…uma das
formas a que as sociedades contemporâneas recorreram para resolver tarefas
históricas que permaneceram pendentes”. Segundo ele, uma revolução é uma
estratégia de mudança excepcional e que raramente é usada porque, para que
ocorra, “…é preciso que todas as outras
vias tenham sido antes bloqueadas e esgotadas”[1]
A perseguição desmedida que o reino
de Espanha está a fazer aos independentistas; a incapacidade para negociar e
para encontrar alternativas que, não necessariamente, teriam de passar pela
independência, mas que teriam que aceitá-la como possível ponto de chegada; a paranóia
de Rajoy suportada em Filipe; a total inflexibilidade contra o desejo
(maioritário ou duma grande parte) dum povo… Tudo, mas absolutamente tudo, é prenúncio
de tragédia, porque anuncia que todas as vias estão “bloqueadas e esgotadas”.
A monarquia borbónica está transformada numa peste borbónica, analogia a essa doença que, noutros tempos, vitimou muitos, sem distinção de quem era plebeu, aristocrata… ou rei.
Luís Novais
[1] Arcary, Valério, As Esquinas Perigosas da História. Situações
Revolucionárias em Perspectiva Marxista, São Paulo, Xamã, 2004, p. 27.