Julgo que vale sair deste registo e tentar
perceber o fenómeno do ponto de vista do seu significado social e das suas
causas profundas. E é desse ponto de vista que não creio podermos entender a
situação no Brasil de hoje, sem recuarmos ao aparecimento dos nacionalismos latino–americanos,
que despontam depois da primeira guerra mundial e, sobretudo, da grande
depressão de 1929.
Em
Portugal os últimos tempos têm sido férteis em debates, muitas vezes estéreis,
sobre as eleições no Brasil. Enquanto adeptos do autoritarismo de direita
começam a sair do armário onde socialmente se tinham metido em 1974, outros, à esquerda,
limitam-se a perguntar “como é possível?” e descarregam a desorientação em
palavras de ordem, ou até num insulto tão fácil quão inócuo.
As
conversas sobre o tema terminam invariavelmente na pura picardia e a
racionalidade perde-se completamente, num remoinho que as redes sociais
intensificam até aos limites do absurdo.
Julgo
que vale sair deste registo e tentar perceber o fenómeno do ponto de vista do
seu significado social e das suas causas profundas. E é desse ponto de vista
que não creio podermos entender a situação no Brasil de hoje, sem recuarmos ao
aparecimento dos nacionalismos latino–americanos, que despontam depois da
primeira guerra mundial e, sobretudo, da grande depressão de 1929.
Por
esse então, a mudança da esfera de influência inglesa para a norte-americana estava
a ser traumática para o continente, particularmente para o Brasil. Eram países
dedicados à exportação de bens primários, até aí acostumados ao comércio bidirecional
com uma Europa que em troca lhes vendia os bens industrias que não produziam. O
avanço tecnológico dos Estados Unidos mudou a direcção das importações tecnológicas
sem mudar a das exportações, que o gigante do norte praticava um paradoxal proteccionismo
do seu sector primário.
Mas
a procura de bens primários no velho continente também diminuiu e essa quebra debilitou
os grandes fazendeiros, abrindo caminho às ambições hegemónicas da burguesia urbana
industrial, até aí relegada para segundo plano. Referindo-se ao caso peruano, o
sociólogo Anibal Quijano Obregon (1971) concluiu que esta situação gerou uma
quebra do consenso hegemónico entre as duas burguesias, colocando-as em rota de
colisão.
A
partir daí, inicia-se um processo de substituição de importações, alcançado com
intensas políticas industrializadoras. Esta estratégia ganhará ainda mais ímpeto
com a expansão da teoria da dependência, de François Perroux e, sobretudo, com
a dos “centros assimétricos”, depois que Raúl Prebish entrou a dirigir a
Comissão Económica para a América Latina da ONU, em 1949. Segundo estas teorias,
o atraso do subcontinente devia-se a que exportava apenas matérias-primas baratas
e precisava de importar produtos industrializados caros.
Estas
teses assentaram como luva numa burguesia urbana e industrial que desde a
década de vinte tinha atitudes cada vez mais nacionalistas, reclamando uma
economia protegida que permitisse um desenvolvimento industrial endógeno. E não
é por acaso que, num aparente paradoxo, os Estados Unidos apoiaram entusiasticamente
este modelo: Nessa época já não estavam interessados na exportação de bens de
consumo mas de tecnologias, essas mesmas sem as quais tão desejada industrialização
não seria possível.
O
resultado foi óbvio: deixaram de se importar bens industriais de baixo preço,
passaram a importar-se tecnologias de alto custo. Ou seja, em lugar de diminuir,
aumentou-se a dependência, tanto pela importação de equipamentos, como dos capitais
com que se compravam.
Foi
assim que se criaram as novas indústrias brasileiras: pouco experientes, pouco
competitivas no mercado internacional e podendo subsistir apenas com uma grande
protecção de mercado.
Ao
mesmo tempo que a industrialização avançava, aumentava também a população
urbana, tanto a proletarizada, como a pequena classe média administrativa e
funcionalizada. A consciência que estes grupos ganhavam em ambiente urbano e
industrial tornava-os cada vez mais reivindicativos. Por outro lado, a quebra
da aliança entre fazendeiros e industriais debilitou a união entre burguesias,
dificultando o controlo dos restantes grupos sociais.
Esta
fragilidade era insustentável: O endividamento externo e o deficit na balança comercial implicavam que alguém pagasse a
fatura. Era preciso que o Estado resolvesse o problema e só um Estado forte poderia
fazê-lo.
É
neste contexto que devemos entender o golpe de Estado de 1964 no Brasil, o de
1973 no Chile e, até, o de 1968 no Peru que, apesar da aparência socializante,
seguiu estritamente os interesses da elite empresarial urbana, resolvendo-lhe
os conflitos com os haciendados e com
as massas urbanas.
O
chamado “milagre económico” da ditadura militar brasileira foi afinal um
pesadelo, conseguido à custa duma brutal dívida externa, mas sobretudo dum terrível
aumento da desigualdade social, directamente ligado às diferenças
raciais. A disparidade na distribuição da riqueza, um problema já de si
crónico, alcançou dimensão insuportável em 1985, quando a rua obrigou os
ditadores a abandonar o poder.
Depois
dum período de estabilização macroeconómica, as políticas sociais começaram a
despontar na presidência de Fernando Henrique Cardoso, mas é com Lula que são
alçadas a prioridade do Estado. Ao contrário do que afirmam muitos
dogmatizados, os governos do ex-sindicalista não tiveram nada de comunista, mas
foram puramente social-democratas: O Estado confiou no sector privado para
gerar riqueza e em si mesmo para redistribuir socialmente, atacando
particularmente as situações de pobreza e pobreza extrema. E os resultados
foram claros: Em 2001 os extremamente pobres eram 17,5% da população, em 2008 8,7%;
uma diferença de quase 9 pontos em sete anos (fonte).
É
difícil perceber como se conseguiu o consenso social para obter tais resultados,
sabendo que o grande e poderoso empresariado brasileiro estava viciado na protecção
do mercado, geradora dos grandes ganhos que eram pagos pelos estratos mais
baixos da população.
Lula
conseguiu a quadratura do círculo dum consenso social, pondo-se ao lado dos
empresários, naquele que foi o maior processo de internacionalização da
economia industrial alguma vez fomentada pelo Estado brasileiro. Para isso
abriu mercados em África e na América Latina, acentuou a diplomacia económica e
criou novos espaços económicos, num trabalho de que a criação da UNASUR foi o
melhor exemplo. Last but not least, disponibilizou-lhes
capitais fáceis e abundantes para o processo de internacionalização. Lembro-me,
por exemplo, do gestor duma construtora na América latina se ter queixado de que
não conseguia parcerias publico-privado nesse país, porque as empresas
brasileiras do sector eram inundadas de capitais baratos pelo Banco Nacional de
Desenvolvimento.
O
problema surgiu quando esta classe usou no estrangeiro os mesmos métodos que
estava acostumada a usar Brasil, onde sempre conseguira manter os privilégios económicos
à custa duma grande promiscuidade com os políticos, ou seja, da corrupção. A
classe política latino-americana caiu facilmente na tentação, incluindo o PT,
que não teve a força necessária para cortar com as mesmas práticas que outros tiveram
no passado e esquecendo-se de que, sendo apenas um enteado do sistema económico, jamais lhe perdoariam o deslize.
Este
ponto fraco foi fatal, porque a estratégia expansionista brasileira estava em
conflito com a de outras potências, muito mais fortes e também elas ávidas dos
mesmos mercados. Fosse por efeito da sua acção, fosse pela maior transparência
em que vivemos, o escândalo era de tal dimensão que tinha de rebentar e
rebentou. Foi tão grande que as empresas brasileiras tardarão mais de duas
décadas a recuperar confiança internacional, e isto no improvável caso de se esforçarem
muito.
Hoje,
a classe empresarial brasileira sabe ter novamente de se confinar às fronteiras
do país e esse confinamento implica uma fatura a pagar pelos pobres do costume.
Por outro lado, há uma classe média alta é até média-média que era beneficiada indirecta,
recebendo algumas sobras do corrupto festim, sem que estivesse directamente implicada
e preferindo até fechar os olhos, sabendo sem saber. Os primeiros percebem que não
se manterão nas novas-velhas condições sem que o Brasil regresse aos mesmos números
de pobreza que o envergonhavam; para impô-los, precisam dum Estado forte,
autoritário, socialmente insensível, capaz de disparar primeiro e perguntar
depois. Quanto aos segundos, que são os manifestamente descontentes, um número significativo do seu escalão mais alto saiu do país, engrossando a
massa de brasileiros endinheirados no estrangeiro, os mesmos que, por exemplo em Portugal, votaram
maioritariamente em Bolsonaro. Na base estão as massas desprotegidas, em desespero, que sentem e ainda mais sentirão na carne viva aquilo que para os outros é apenas o regresso a um passado privilegiado, ainda que menos sonhador.
Luís Novais