João já estava fodido. Maria
com aquele aspirador que não se calava, sempre a ir e a vir e a ir e voltar, o
jogo a dar para o torto, a televisão com interrupções, a Sagres já morna, mesmo
a pedir outra, mas João não quer ir buscar que “o golo deve estar mesmo a
sair”… podia mandar Maria, “e bem gelada, ouviste? Bem gelada!”, mas seria
machismo e isso não, machista não era.
“Porra de aspirador!” Maria
com o tubo na mão direita, e a criança na esquerda e sem uma terceira que lhe
limpasse o suor da testa, já a queimar olhos adentro. “Esta gaja não percebe
que estou a ver o jogo? Foda-se o caralho”. Mas tudo isto pensado, não dito, dito seria machismo e machista não, João não era.
Um homem não é de ferro
mas aguenta-se que é de homem, e João aguentava-se enquanto Maria se chegava e
chegava. Já ele não sabia o que era mais insuportável, se aquele ruido do motor,
se o raspar do tubo no chão… e ainda por cima o miúdo, esse já começava a
chorar. “Se ao menos saísse um golo!” Depois disso até podia ir à cozinha, a
trazer outra Sagres, gelada, bem gelada”… enquanto a bola marchava ao centro não perderia
nada.
Mas a Maria, ai o raio da
Maria… agora já estava em cima dele, com aquela carga toda: miúdo, aspirador e
ela mesma. “Que inferno!”. Apetece-lhe gritar à mulher, mas “aguenta-te João”,
que gritar seria machismo e machista não, João não é.
A Maria, essa não se
aguenta e ignorá-lo é impossível: esparramado no sofá, pernas na mesa, ocupando todos os dois
daqueles dois metros quadrados ainda por limpar. “Ó João, francamente, tu não vês
que aspiro? Afasta-te caramba!”. João aguenta-se, porque não aguentar-se seria
machismo e o resto já sabemos. Ignora-a, apenas, isso sim é de homem, caramba!
O momento da culpa de
Maria teria de chegar e tendo de chegar, chegou. Cai-lhe o tubo ao chão e
baixa-se para apanhá-lo e passa-lhe o nariz na fralda do rapaz que chora
no braço esquerdo, uma cara de nojo e levanta-se e o desabafo quase gritado: “Sou
eu quem faz tudo nesta casa, tu para aí sentado a ver o jogo e a beber. E ainda
por cima tenho de limpar a bosta do teu filho!”.
Para João, que nunca foi
gramático, já era de mais, chegara o momento do “chega”. Não há homem que
aguente! “Se fosse a mim tudo bem, mas ao meu filho é que não! A gaja está
mesmo a pedi-las”.
“O que disseste? O meu
filho não é nenhuma bosta, ouviste cabra do caralho?” Levanta-se e enfia-lhe um
par de lambadas que, aceitemos, foram merecidas, nem sequer muito fortes e é de saber bem sabido que quem “semeia ventos…” Não os semeasse Maria, pois
então!
Já João se sentou. Chora Maria,
baixinho para não indispor. O gargalo da Sagres morna à boca e um arroto, saboroso,
um aliviar feliz, do mais profundo, da própria alma. Pena só mesmo aquela azia
seguinte: foi golo, mas na baliza errada. “Ora merda!”
Algum arrependimento, não
muito, apenas um pouquinho e só por chegar a pensar se o golo não
terá sido divino castigo às humanas chapadas. “Não! Dei-lhe pouco, muito menos do
que merecia”. João sabe bem o porquê de só duas lamparinas, singelas, muito singelas: mais seria
machismo, “e machista não sou”.
Maria já está lá dentro, muda
fraldas. Limpa a bosta do filho, ela; sabe de futebol, ele... de gramática é
que nada.
Luís Novais
Foto: Pixabay