A precipitação de Guaidó proclamando-se presidente
e a não menos precipitada aceitação de alguma comunidade internacional, não
deixa qualquer margem a um reconhecimento mútuo que abra portas à negociação.
Neste momento, nem Guaidó pode aceitar Maduro como presidente, nem Maduro
Guaidó como líder da oposição, depois de este se ter considerado tão presidente
que até embaixadores nomeou em alguns países que o reconheceram.
Procurando explicar
aquilo a que chamou "terceira vaga democratizadora", iniciada com a revolução
portuguesa de 1974 e terminada na queda do império soviético, Samuel Huntington
atribuiu-lhe diversas causas. Entre essas destacaria as seguintes, por serem as
que melhor contribuem a uma análise da atual situação venezuelana: 1) Crescimento
económico suspendido por crises conjunturais; 2) Perda de sentido dos regimes
face aos seus objectivos iniciais estarem atingidos; 3) Quebra da coesão
interna sobretudo no seio das forças armadas; 4) Efeito bola de neve
provocado pela queda de outros regimes similares e 5) pressão internacional.
O primeiro fator parece estar
claramente a verificar-se. O regime de Chavez beneficiou dum extraordinário
aumento do preço do petróleo, permitindo-lhe concretizar uma política redistribuidora
que deu esperança à grande massa da população. Os números são da ONU (CEPAL) e não
deixam margens para dúvidas: Um ano antes de ser presidente, 78% dos
venezuelanos viviam entre a pobreza (54,5%) e a pobreza extrema (23,4%). Quando
o comandante morreu, em 2013, estas percentagens tinham diminuído para 42%, com
os primeiros a baixarem a 32,1% e os segundos a 9,8%. Sem estes resultados não compreenderíamos
os sucessivos resultados na frente eleitoral: Venceu quatro eleições em sufrágios
reconhecidos pela comunidade internacional, sujeitou-se a um referendo
constitucional aprovado com 71% e, com forte apoio popular, conseguiu
esmagar um golpe de Estado claramente apoiado pela CIA e pela Espanha de Aznar.
A bonança acabaria por
terminar com a quebra conjuntural do preço do petróleo. Paradoxalmente, se a
subida foi uma das causas nos anos setenta para o colapso de muitas ditaduras, incluindo
a portuguesa, aqui é uma descida que pode levar à queda do
regime de Maduro.
O segundo fator pode ser também
aplicado, embora inversamente. Segundo Huntigton, alguns regimes autoritários
perderam o sentido quando conseguiram atingir os objectivos pelos quais foram
criadas, refere como exemplo o caso do Uruguay com a derrota da guerrilha e, diria
eu, poderíamos considerar o Peru de Velasco Alvarado, chefe duma revolução que
pretendeu acima de tudo libertar os camponeses dum regime de exploração que conseguiria
aniquilar com a lei da reforma agrária de 1969.
No caso da Venezuela, a
perda de sentido pode estar no facto de se ter estancado a promessa
inicialmente exitosa de ascensão económica dos antigos 78% de pobres, ao mesmo
tempo que a classe média tem de suportar uma emigração em massa ou condições de
vida cada vez mais difíceis. Inicialmente o regime terá então conseguido caminhar
rumo aos seus objectivos sociais, mas a economia extremamente dependente do
fator petróleo não lhe permitiu ir mais além e começou, até, a verificar-se uma
regressão social.
Quanto ao terceiro fator,
a quebra de coesão interna, nomeadamente no seio das forças armadas, parece não
estar a verificar-se. Os líderes militares mantêm-se firmes na defesa do regime
e não estão a responder aos apelos de Guaidó, que até lhes acenou com uma
amnistia caso contribuíssem à queda de Maduro e o reconhecessem. Provavelmente sabem
que a oposição é muito diversa e temem
que, uma vez no poder, os falcões da direita lhes reservem um rolar de cabeças.
O quarto fator é o efeito
bola de neve. É certo que nos últimos anos se verificou a mudança gradual duma
América Latina orientada à esquerda, para outra à direita: Tivemos a
metamorfose direitista de Ollanta Humala no Peru; no Chile a vitória de Piñera e
a saída de Bachelet, que era um cavalo de Tróia de Maduro no Grupo de Lima; a
queda de Kirchner e a eleição de Macri na Argentina; a eleição de Ivan Duque na
Colômbia e, claro, a de Bolsonaro no
Brasil. Mas, ao mesmo tempo houve sinais no sentido contrário: Evo Morales
parece aguentar-se de pedra e cal na Bolívia; no Equador ganhou o candidato de
esquerda apesar de estar a virar claramente à direita; na Argentina o governo
de Macri enfrenta os conhecidos problemas económicos e crescente contestação;
como era expectável Bolsonaro não é um líder à altura do país que tem e,
sobretudo, Lopez Obrador foi eleito presidente do México. Parece então claro
que Guaidó não pode contar com o tal efeito bola de neve e que, se a bola se
começou a formar nos últimos quatro anos, parece estar agora em claro degelo.
Por último temos a pressão
internacional e esta tão-pouco parece somar a favor de Guaidó. Ao nível
regional já vimos que a América Latina está dividida e quanto às grandes
potências a situação é tudo menos clara: os Estados Unidos estão com
Guaidó, a Russia e a China com Maduro. Soma-se que, se estes dois últimos têm
fortes razões financeiras para suportar o seu aliado, não há motivos objectivos
para que os norte-americanos se empenhem a fundo na defesa de Guaidó, mais do
que a vazia retórica de Trump. Se na frente regional verificamoss um empate, na global ganha claramente Maduro.
Temos então que, dos
cinco fatores enunciados, apenas dois podem jogar a favor da estratégia de
Guaidó: O crescimento económico-social seguido duma crise conjuntural e, relacionado,
uma perda de sentido do regime.
Posto isto, voltemos a
Huntington, pegando na sua análise sobre as diferentes formas como caíram os
regimes autoritários das décadas de 1970 e 1980: 1) Por substituição (replacement), este foi por exemplo o
caso de Portugal e da Grécia, quando as forças opositoras conseguiram ser mais
fortes do que os governos e forçaram a queda dos regimes sem negociação; 2) Por
metamorfose (transformation), foi o
caso da União Soviética de Gorbachov, quando membros do próprio regime chegaram
ao poder procurando liberalizá-lo ou até democratizá-lo; 3) Transição (transplacement), quando tanto o regime
autoritário como a oposição perceberam não terem a força suficientes para se
manterem ou chegarem ao poder, situação que os levou a negociar, como aconteceu
na Polónia, na África do Sul ou no Chile.
Neste domínio, como está
Guaidó? Aparentemente tentou a estratégia de substituição, mas parece claro não
ter conseguido partir a espinha do regime estando agora num claro processo de
desgaste. Um desgaste aliás não menor para Maduro e é por isso que, neste
momento, tanto uns como os outros deverão estar conscientes de não restar outra
opção exceto uma saída duramente negociada.
Ora, esse é o grande
problema político de Guaidó. Negociar implica que cada parte reconheça a outra,
ou seja e voltando a Huntigton, a oposição deve reconhecer formal ou
implicitamente a legitimidade do governo para governar e o governo a representatividade
da oposição para falar em nome duma larga margem da sociedade. É precisamente
aqui que chegamos a um autêntico quebra-cabeças: A precipitação de Guaidó proclamando-se
presidente e a não menos precipitada aceitação de alguma comunidade internacional,
não deixa qualquer margem a um reconhecimento mútuo que abra portas à
negociação. Neste momento, nem Guaidó pode aceitar Maduro como presidente, nem
Maduro Guaidó como líder da oposição, depois de este se ter considerado tão
presidente que até embaixadores nomeou em alguns países que o reconheceram.
Qual é então a saída para
um nó tão difícil? Huntigton observou nos casos onde se aplicou o modelo de
transição que, muitas vezes, os presidentes no poder tiveram de negociar com
opositores que antes perseguiram e até prenderam: Foi assim na Polónia, foi
assim na África do Sul, foi assim na Checoslováquia. Então e subitamente ganha
algum sentido essa aparentemente incompreensível intentona militar de 30 de
abril, sem qualquer resultado prático exceto um grupo de militares ter
libertado o opositor Leopoldo Lopez da prisão domiciliária em que se encontrava,
deixando-o às portas da embaixada do Chile onde pediu “hospedagem”.
A proclamação presidencial
de Juan Guaidó destinava-se a conseguir uma mudança de regime por substituição.
As contradições internas e externas não lhe permitiram reunir os requisitos indispensáveis
para chegar ao poder de facto: Não quebrou a unidade das forças armadas, a
frente latino-americana de apoio não é suficientemente forte e as grandes potências
estão a bloquear-se mutuamente. Só resta então o modelo de transição, mas esse
implica um reconhecimento mútuo entre governo e oposição que o auto-proclamado
presidente e o presidente de facto não se podem conceder. Assim sendo, o futuro
próximo da Venezuela não deverá passar por Guaidó e, quanto mais rapidamente se
derem as condições para que Leopoldo Lopez avance, mais rapidamente começará um
processo, ainda assim longo, para desatar o nó em que o país se encontra.
Luís Novais
Referência:
HUNTINGTON,
Samuel P. (1993). THE THIRD WAVE. Democratization
in the late Twentieth Century. Oklahoma: University of Oklahoma Press.
Foto: Pedrucho