Hoje voltamos assistir a reações de medo, bem
patentes na eleição de líderes orientados a esse modelo de poder a que o
sociólogo Alain Rouquié chamou “democracias hegemónicas”, ou seja, que procuram
fundir democracia com autoritarismo, primeiro passo que poderia ser ensaio
duma férrea ditadura.
Em Les Origines Culturelles de la Révolution Française (1990) o historiador Roger
Chartier desvalorizou o papel fundamental das filosofias iluministas no
despontar do espírito revolucionário e, em seu lugar, valorizou o aparecimento ao longo do
século XVIII dum novo ente social, composto por indivíduos com
sentimento de pertença a uma mesma comunidade baseada no conhecimento e na partilha dum conjunto de valores: a "Opinião Pública".
Diz-nos Chartier que este
conceito é oposto ao de opinião popular, porquanto surgiu da expansão da
imprensa e se circunscreveu originalmente aos grupos alfabetizados com hábitos
de leitura. É, portanto, um grupo elitista e, desmistificando uma ideia
pré-concebida, uniu mais a nobreza e a burguesia, do que esta última e o povo
iletrado.
Curiosamente, estas
conclusões são muito semelhantes às de Benedict Anderson na sua obra
fundamental Imagined Communities (1983). Segundo Anderson, a ideia de nação começou a surgir no
século XVIII (teria o apogeu no XIX e a tragédia no XX), a partir da comunhão entre
pessoas que não se conhecem mas sentem pertencer a uma mesma
entidade, essa tal “comunidade imaginada”. Na origem deste espírito, o
antropólogo encontrou a mesma expansão da imprensa que Chartier considerou
fundadora da “Opinião Pública”.
É curioso que este último
desconheça a obra de Anderson e que Anderson tão pouco o cite, mesmo nas
edições posteriores. Os dois autores seguiram caminhos muito
paralelos e as suas conclusões são semelhantes, embora com objectivos diferentes:
encontrar a origem da Revolução Francesa, num, a do nacionalismo, no outro. Em
nota de rodapé diria que este desconhecimento mostra bem o longo caminho ainda
por percorrer no inter-conhecimento das diferentes ciências sociais, e isto apesar
da escola de Chartier ser a chamada História cultural, a mesma que se fecundou
bastante com a Antropologia.
De todas as maneiras,
tanto a “Opinião Pública” como a “Comunidade Imaginada” terão necessariamente
surgido no seio dum grupo social relativamente pequeno, que começou por formar
a primeira massa com consciência de si.
Nos dias de hoje
assistimos a uma nova grande transformação, apenas comparável àquela que nos
proporcionou Gutenberg. O aparecimento do carater tipográfico foi um chão que
deu uvas e vindima até aos anos noventa do século passado, mas a partir daí
assistimos a uma nova revolução tecnológica, baseada no carater digital
transportado em redes de comunicação, capazes não só de transmitir dados, mas de
permitir a interação. Numa sociedade completamente alfabetizada (diferente de
letrada), esta mudança levou a novas relações e ao aparecimento de novas
comunidades necessariamente fragmentadas e fugazes.
As entidades “opinião-publica”
de Chartier e “Comunidade Imaginada” de Anderson, já não formam grupos mais
ou menos restritos, mais ou menos coesos. Pelo contrário, assistimos a uma
explosão da liberdade de emitir ou procurar opinião, para a qual não estávamos provavelmente
preparados e que certamente terá grandes consequências, como já tem.
Se o aparecimento e
expansão da máquina de imprimir provocou a Revolução Francesa e o aparecimento
do Estado Nação, aonde nos levará a internet com todas as suas redes sociais?
Numa obra que marcou a
segunda metade do século XX, Erich Fromm, um dos discípulos de Freud, analisou
o outro lado da expansão da imprensa, ela mesma muito relacionada com o
surgimento do protestantismo, fomentador da leitura pessoal dos textos sagrados.
Numa obra com o significativo título de “O Medo da Liberdade”, concluiu que
essa mesma liberdade individual implícita na leitura direta da palavra divina,
sem a intermediação imposta pela Igreja de Roma, terá gerado uma angústia pela
falta de certezas e um consequente medo em busca de superação. Esse medo terá buscado paliativo no determinismo espiritualista de Hegel, no materialista marxista, ou nos intolerantes fenómenos
de massas que foram o fascismo, o nacional-socialismo ou o estalinismo.
Postos os indivíduos
perante um vendaval de opiniões e instados eles mesmos a opinar, fugir da
liberdade pode ter sido o refugio da maioria ou duma grande parte. A verdade e
a tolerância deixavam de ser um valor seguro e a fusão pessoal numa massa
anónima chefiada por um führer ou por um duce teria sido porto de abrigo
contra a temida liberdade.
A revolução digital multiplicou
exponencialmente a informação e a divulgação das opiniões, mas também a
desinformação e a idiotice, gerando confusão nos espíritos e, digo eu, trazendo
de volta o tal medo à liberdade. A imprensa tipográfica originou a libertação
protestante, a consciência nacional ou a opinião-pública. Mas terminou numa
negação da liberdade, numa anulação do indivíduo e nas ditaduras mais
sanguinárias da história, ocorridas na primeira metade do século XX, a tal
ponto que foram antídoto e trouxeram de novo o consenso, através duma liberdade apesar de tudo parcial porque controlada por uma opinião publicada e, portanto, editorialmente controlada.
Hoje assistimos novamente
a reações de medo, bem patentes na eleição de líderes orientados a esse modelo de
poder a que o sociólogo Alain Rouquié chamou “democracias hegemónicas”, ou
seja, que procuram fundir democracia com autoritarismo, primeiro passo que
poderia ensaio duma férrea ditadura… e escuso-me às referências para
centrar o debate nas questões de fundo e não nas emocionais e secundárias.
O moderno “medo da
liberdade” teve génese no aparecimento da imprensa e cresceu em
espiral até atingir o apogeu na sanguinária primeira metade do século XX. Hoje
não são necessários 500 anos para aí chegar: a alfabetização global é uma
realidade e a velocidade da comunicação acelera todos os processos mentais. Os
fenómenos de intolerância e autoritarismo, os modelos políticos de matriz
massificadora como foi o fascismo, são realidades que despontam como cogumelos,
incluindo nas democracias mais consolidadas do mundo.
Se a tipografia de
carateres levou à Revolução Francesa, estará a digital a conduzir-nos a uma
Involução?... temo que sim.
Luís Novais
Foto: WikiImages from Pixabay