domingo, 1 de setembro de 2024

IMIGRAÇÃO E CRIME

A caricatura de um crime que deu que falar sem nunca ter existido, mostra a facilidade com que alguns círculos das redes sociais fazem acusações infundadas. Em casos como este, uma das vítimas da verdade costuma ser o estabelecimento de uma suposta relação com o aumento do número de imigrantes.

Sempre que é noticiado um crime, disparam nas redes sociais certas vozes, minoritárias mas muito ruidosas, queixando-se de que o país está cada vez mais inseguro e associando a suposta situação ao aumento do número de imigrantes. São julgamentos tão prolixos quão precipitados, geralmente proferidos de forma automática e antes até de se conhecer quem foram os criminosos.

Crónica de um crime imaginário

Recentemente em Braga, dois homens numa moto lá para os lados da mesma Falperra onde antanho atacava o temível Zé do Telhado, ameaçaram com pistola e roubaram um supostamente honesto cidadão. Ter-lhe-ão levando carteira, dinheiro e documentos. A notícia saiu no jornal digital Minho e no Correio da Manhã. Só no primeiro gerou 523 comentários e 230 partilhas. De entre tantos destaco alguns:

“Os primeiros a acordar e a ver o que se passava, eram insultados e apelidados de xenófobos, pois bem, olhando para a frequência com que os crimes ocorrem nesta cidade atualmente, comparado há uns 4 anos, é tudo coincidências”.

“O Marcelo falou em reparação as ex-colónias, eles só estão a antecipar, e depois não são estrangeiros, eles ainda não pisaram o solo português que já têm um cartão de cidadão português ... assim nem podem ser extraditados”.

“Obrigado PS e PSD por esta imigração descontrolada”.

“Enquanto não fecharem portas a esta emigração excessiva , o país vai ter cada vez mais crimes !! Esta cidade está cheia de criminosos”.

“É Braguil”

“Olhando ao modus operandi não me parece difícil perceber a origem.. Triste ver o meu país a ficar sem rumo!”

“Qual era a nacionalidade ou etnia???? Ponham sem medo

“Isso é filmes à Brasil”

Poderia destacar muitos mais (ver aqui), com o mesmo tipo de afirmações acusatórias. Tudo isto por um crime que… afinal não aconteceu!

O violento assalto que antes de existir já não existiu

Três dias depois e no mesmo jornal ficávamos a saber que “Homem inventou que foi assaltado de pistola por dupla de mota em Braga. Só queria boleia da PSP”.

Cansado de caminhar, sem dinheiro e provavelmente zero de saldo no telemóvel, o espertalhão decidiu ligar para o gratuito 112, queixando-se do suposto assalto para que a polícia o fosse buscar. Compadecido, um dos agentes da autoridade até lhe deu alguns euros do próprio bolso (ver aqui).

Escusado será dizer que nenhum dos comentaristas de acusação fácil veio reconhecer o erro e pedir desculpa pela difamação.

As redes sociais já nos habituaram a isto. São também estes que normalmente acusam a imprensa, talvez porque esta, não sendo isenta de erros, tem um compromisso com a verdade e obedece aos critérios de confirmação e contraditório que eles não. Foi esse mesmo compromisso que levou o Minho a repor a verdade sobre a notícia que antes deu.

Assimetria da mentira

Vi algures um cartoon intitulado “O princípio de assimetria”, onde se demonstrava que a quantidade de energia para refutar uma estupidez é muito maior do que a usada para produzi-la. Trata-se de uma realidade que homens como Donald Trump conhecem muito bem: Gastando os mesmos recursos com que se fundamenta uma só verdade, geram-se milhares de mentiras. Além disso, estas são mais espetaculares e tendem a gerar muitas mais visualizações, o que nestes tempos equivale a dinheiro.

Em conclusão: mentir é barato e tem uma margem económica infinitamente superior à dispendiosa procura da verdade.

Por esse motivo, já me convenci a não perder o meu tempo refutando o que por aí vou lendo. Desta vez abro exceção, porque tal tipo de referências tem-se adensado, permitindo que uma só verdade refute muitas mentiras e melhorando assim a assimétrica relação económica.

Da mentira ao facto

Viajemos até ao abrenuncio das redes sociais: o mundo dos factos.

Em primeiro lugar, Portugal está longe de ser um país com elevados índices de insegurança. Segundo o Global Peace Index (ver), em 2023 foi o sétimo mais seguro do mundo e o quinto na europa. À nossa frente e por esta ordem: Singapura, Áustria, Nova Zelândia, Irlanda, Dinamarca e Islândia  (p.8), este último um pequeno país de 330.000 habitantes, praticamente no círculo polar Ártico.

A posição portuguesa até melhorou um posto em comparação com 2022. Isto num contexto de aumento da insegurança mundial, que piorou 13 vezes nos últimos 15 anos (p.10).

Estamos, portanto, longe de viver uma onda de insegurança. É certo que este índice considera não só a criminalidade mas também os conflitos militares internacionais. Ainda assim, temos de descer até aos três dígitos deste ranking para encontrar um país que esteja em guerra.

Os dados específicos e exclusivos sobre a criminalidade em Portugal também existem. Segundo o Relatório Anual de Segurança Interna (RASI) (Ver), apesar de um acréscimo, os valores de 2023 estão inseridos numa curva descendente da criminalidade geral e, em particular, da violenta. Para estes números contribuem crimes graves mas não associados à insegurança de rua, como é o caso da violência doméstica ou da corrupção.

Os crimes que mais subiram não podem ser considerados violentos. É o caso de burla com cartão de crédito (+67%), este muito ligado às redes digitais, de outras burlas (+39%), dos furtos em edifício comercial sem arrombamento (+16,7%) e os de oportunidade de objeto não guardado (13,4%).

Por outro lado, baixaram alguns dos associados à violência: furto em residência com arrombamento (-11,2%) e furto em veículo motorizado (-6,8%). Baixaram também -7,2% os homicídios voluntários, dos quais 47% foram em situação relacional (família, vizinhança, conhecimento etc.)  e portanto não associados à criminalidade organizada. As violações baixaram 4,8% e quase metade deram-se em contexto de relação de conhecimento; deu-se também uma descida de 15,3% nos roubos a residências e de 4% noutros roubos (-4%).

Ainda assim, é preocupante o aumento de 25,8% nas extorsões e de 22% nos raptos, sequestros e tomadas de reféns. No entanto, devemos notar que se trata de um tipo de crime com baixa incidência no nosso país: os raptos e sequestros passaram de 250 a 305 e as extorsões de 1.183 a 1.488 (p.39), ou seja,  basta um aumento relativamente pequeno para um desproporcionado reflexo percentual. Além disso, 79% no primeiro grupo são crimes de sequestro, normalmente associados a contextos familiares e laborais e não à criminalidade organizada. Sem dúvida porém que se trata de um crescimento preocupante e merecedor de atenção.

Aumentou também outro tipo de crime, não violento e que normalmente não é praticado por cidadãos estrangeiros: a criminalidade económico-financeira e a corrupção, com uma subida de 28,8% nos inquéritos judiciais e de 26% nas detenções (p.7).

Um crime que o relatório considera ter crescido de forma preocupante é o tráfico de seres humanos. Este sim associado à imigração, mas uma modalidade que, no mínimo, conta com a participação de cidadãos nacionais e as vítimas são, por norma, cidadãos estrangeiros. Corrobore-se com a particular incidência de “tráfico para fins de exploração laboral” (pp.6-7).

Outro que aumentou foi o crime de ódio, do qual os imigrantes costumam ser as vítimas (p.31).

Já quanto aos estrangeiros que tentaram entrar ilegalmente no país, deu-se até uma significativa diminuição de 44,2% na fraude documental (p.7).

Braga, onde teria ocorrido o referido crime imaginário, é um dos distritos que mais estrangeiros tem recebido. Segundo o Relatório de Imigração, Fronteiras e Asilo 2022 (ver) só entre 2021 e 2022 este número aumentou 19,1%, de 23.619 para 28.127 (p.12). Cai pela base a retórica da associação entre a imigração e o aumento da criminalidade quando,  segundo o RASI 2023, se trata do segundo distrito do país onde menos aumentou o número de participações policiais (0,7%) (p.38) e se registaram apenas mais 19 roubos do que em 2022 (p.41).

Reclusos nacionais e estrangeiros

A população prisional acompanha a curva geral de diminuição da criminalidade, havendo 12.913 reclusos, o que significa menos 190 do que em 2022. Também as penas não privativas de liberdade decresceram 0,8% (p.10).

Neste campo, a proporção de estrangeiros é superior à de residentes no país: correspondem a 16,7% dos presos, contra uma representatividade total de 5,2%, segundo o censo de 2021 (ver).

Apesar da diferença ser significativa, também aqui é necessária uma análise mais fina, sobretudo porque os dados disponíveis não informam quantos de esses reclusos são residentes em Portugal e quantos foram apanhados num contexto de criminalidade internacional. Não encontrei essa informação sistematizada, mas certamente são números significativos. Neste contexto, o RASI 2023 refere a ligação de grande parte dos presos por tráfico de drogas a redes internacionais, além de considerar que Portugal é frequentemente utilizado como ponto de trânsito e destino para drogas que chegam por via marítima e aérea. Resultam de aí várias apreensões e prisões de não residentes, nomeadamente em portos e aeroportos.

Não se trata de uma excentricidade nacional. Basta referir os cerca de 80 cidadãos portugueses em prisões peruanas, todos relacionados com o transporte de drogas. Este número corresponde a uns 26% da pequena comunidade portuguesa residente neste país, uma comunidade trabalhadora, integrada e que os peruanos estão longe de considerar como fomentadora do crime. A proporção noutras comunidades nacionais ainda é maior, como é o caso dos perto de 300 reclusos holandeses, para uma comunidade provavelmente mais pequena do que a portuguesa.

A insustentável leveza da mentira

Em conclusão, a facilidade com que algumas vozes acusaram a imigração pelo crime imaginário da Falperra é uma hilariante caricatura da facilidade com que se estabelecem falsas relações entre variáveis que não se conjugam. Mas é claro que a energia despendida para fundamentar esta conclusão pode facilmente ser usada a gerar outras mil maliciosas mentiras.


Luís Novais



Foto gerada pelo Bing