terça-feira, 20 de julho de 2010

No Amazonas, nadando com piranhas



Entraria em pânico, claro: não fora Carlos ter-me avisado que não passariam daí. Ainda assim não tive a mesma confiança que Carlos tem: não saltei para o grande rio sem calções.


E há duas horas que eu e Carlos o guia pescávamos. O Amazonas estava calmo e a canoa deixava-se estar e era estremecido apenas pelos nossos movimentos. Tudo o que é necessário para aqui se pescar é o que temos: uma pequena vara e dois metros de fio e um anzol.

Isco também; claro que sim; os peixes não são tantos ou tão simpáticos que mordam o anzol sem que recebam nada em troca. Aqui chamam carnada ao isco. Não vi que Carlos a trouxesse.

Já chegamos ao nosso local de pesca. Quase sempre à força de braços. A gasolina é um bem raro e o motor só se liga quando não pode deixar de ser. Cruzamo-nos com outra canoa. Esta é minúscula e não tem motor e transporta apenas um homem que quase a ocupa toda. “Olá Pancho. Vens da pesca?” e “Dás-me uns pescaditos para carnada?” Claro que Pancho dá. Encostamos as canoas. E agora já temos três peixes com que pescar muitos mais. “Gracias amigo.”

Pergunto-me se todos os pescadores sairão sem levar isco. Faço a mesma pergunto a Carlos. Responde-me que sim. “Há sempre alguém a regressar da pesca e quem regressa sempre tem uns pescaditos para dar.”

Enquanto Carlos corta a carnada eu vou cortando pensamentos. Afinal há sempre alguém que vai sem isco e alguém que volta com peixe. Nestes contínuos ires e vires de homens que partem e homens que regressam: é a esta cadeia de gente que temos de agradecer o peixe que agora temos: talvez ao primeiro homem que há séculos aqui pescou; que iniciou o ciclo imparável dos que regressando oferecem peixe aos que vão…

A piranhas começam a morder: sente-se na cana. “Primeiro só mordiscam. Quando derem o segundo ou terceiro esticão é que deves tirar a linha da água”, Carlos instrui-me e eu assim faço. Conversamos conforme vamos pescando. Dentro da canoa já se ouve o sapateado de uma meia dúzia. “Podem resistir até quatro horas fora de água”, Carlos o guia.

E não. Não são aquele terrível animal que o cinema nos vende. Menos ainda têm aquele aspecto sanguinário das que depois de secas são colocadas em suporte de madeira como objecto de decoração. De mau gosto, diga-se. Até qualquer humano ficaria com um ar terrífico se o secassem e o empalassem sobre um paralelepípedo de madeira. Com a diferença de que o humano é mesmo perigoso; selvagem. As piranhas que retiramos do anzol, não: parecem até razoavelmente inofensivas. Carlos o guia: “Já tirei da barriga duma piranha o dedo dum alemão que estava a pescar comigo”. Não fora a advertência de Carlos e nem sequer teria muitos cuidados. Na verdade o dedo do alemão em barriga de piranha não me sai da cabeça. É sempre Carlos quem tem de tirar as minhas do anzol; e as dele, claro.

Onde a vista alcança vejo algumas crianças nativas. Lavam-se e brincam na água indiferentes à má fama destes peixes dentudos. “Não têm medo das piranhas?”, pergunto. “As piranhas são inofensivas”, Carlos o guia. A minha expressão deverá ser de descrença. Carlos insiste: “É verdade. Nunca nos atacam. Já levo cinquenta e quatro anos de Amazónia e nunca soube de alguém comido por piranhas.” Como para provar o que diz: Carlos começa a tirar a roupa. Faz tenção de se atirar à água. “Tem cuidado Carlos. Não quero ficar sozinho e perdido no meio do Amazonas.” Rimo-nos. “Também podes vir Luisito. Tira a roupa e tchás.” Carlos fala assim: por onomatopeias. Talvez uma réstia dos idiomas indígenas que lhe correm nas veias. “Tens a certeza?” “Claro. Vais senti-las a aproximarem-se de ti. São muito curiosas. E depois sentirás os seus dentes. Mas suavemente. Quase como uma pequena beliscada. Umas cócegas até. Mas não te mordem. São inofensivas para nós.” Carlos já se atirou à água. “Já estão à volta de mim”, gritar a rir. E eu ganho coragem. Tiro a roupa. E já me atirei às águas do Amazonas. E já estou rodeado de inofensivas piranhas que com suavidade me vêm saudar. Entraria em pânico, claro: não fora Carlos ter-me avisado que não passariam daí. Ainda assim não tive a mesma confiança que Carlos tem: não saltei para o grande rio sem calções.

Estamos a regressar. Três golfinhos acompanham-nos algum tempo. Um é rosado e os outros dois são cinzentos. Carlos tira o remo da água e liga o motor. Ao som do motor sou conduzido para as aulas onde me fui fazendo eu. Do pensamento mitológico à racionalidade. Nós somos os da racionalidade. Penso nas piranhas, agora. Afinal tão inofensivas apesar de Hollywood. E penso no que irão dizer os meus amigos quando lhes disser que nadei entre piranhas. Que falsa é a ideia de que somos racionais e livres do mito. Também temos os nossos feiticeiros ou chamans ou balobeiros ou sacerdotes tribais; conforme lhes queiramos chamar: o cinema ou a literatura ou a imprensa. Tudo a criar-nos os mitos sem os quais nos recusamos afinal a viver.

Carlos voltou a parar o motor. Prosseguimos a remo. E vejo os golfinhos e nas margens mais um grupo de crianças indígenas que se atiram à água e oiço a piranhas que pescamos e que insistem em saltar contra a madeira do barco. As piranhas. As perigosas piranhas. E Carlos que “as piranhas são deliciosas.” E o mito. O mito da piranha devoradora de gente e que afinal é apenas uma deliciosa piranha para essa mesma gente.

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