Haja o sentido das proporções: Isabel Jonet nem é sagrada pelo que fez, nem diabólica pelo que disse.
Há por aí grande polémica com
as recentes declarações de Isabel Jonet. Uns, diabolizam-na pelo negacionismo da
pobreza; outros, santificam-na pela obra a que deu rosto.
Nessas reações, o que me
desagrada é sentir o maniqueísmo para que nos encaminham as tensões sociais em
curso. As pessoas não se dividem entre santos e diabos; ninguém está acima de
qualquer crítica, assim como ninguém fica abaixo de qualquer elogio. O
exercício da crítica, positiva ou negativa, não é um tabuleiro a preto e branco.
Que Isabel Jonet dá a cara por
uma obra digna de todo o mérito, parece-me indiscutível e tem de ser
reconhecido. Assim como, saliente-se, tem de ser reconhecido que essa obra,
mais do que qualquer outra, vive exclusivamente da solidariedade dos
portugueses. O “Banco Alimentar contra a Fome” é isso mesmo: um banco que vive de
cidadãos anónimos, que aí depositam alimentos sem outra remuneração que não
seja a de manter a esperança em muitos que, de outra forma, a teriam perdido.
Tem muito mérito esta senhora,
como têm muito mérito os milhares de voluntários da organização e outro tanto
para os milhões de portugueses que contribuem. Somos um povo com muitas
virtudes e também com defeitos, com boas obras e também com opções menos
felizes. Assim somos enquanto povo, assim será Isabel Jonet e assim será cada
um de nós.
Feita a ressalva, sinto-me à
vontade para fazer a crítica: não gostei daquilo que lhe ouvi. Ainda assim, a
minha crítica não se prende com tudo aquilo que afirmou. Há uma primeira parte
da sua intervenção que considero uma justa condenação da sociedade de consumo e
que subscrevo por inteiro. Temos de mudar de atitude, disse, “há toda uma
necessidade permanente de bens que (supostamente) conduz à felicidade e isso
não é real”. Completamente de acordo.
Onde me pareceu infeliz, foi
quando entrou naqueles lugares comuns: comer mais ou menos bifes, lavar ou não lavar
os dentes com água corrente. Vindo de quem trabalha há tantos anos nesta área, esperaria
um juízo muito mais fundamentado, o que ficou ainda mais claro quando a
moderadora chamou à realidade dos estudos existentes sobre esta matéria.
Há cada vez mais óbvios sinais de
pobreza (e não de empobrecimento) em Portugal e branquear isso com artifícios parece-me
muito desadequado. “Não gostaria de ver em Portugal a miséria que vi na Grécia”,
disse. Não deveria ignorar que o caminho da Grécia é precisamente o que estamos
a trilhar e que, se a Grécia está pior, é tão só porque foi empurrada para essa
via há mais tempo do que nós.
Também não gostei de ouvir
afirmar que “as pessoas têm de ser ajudadas para que não fiquem complemente
enraivecidas”. Não, não é por isso que as pessoas têm de ser ajudadas. Pelo que
me toca, badamerda à caridade como um negócio em que se dá para evitar a
revolta, para que se mantenha o imobilismo político e social. As pessoas têm de
ser ajudadas é por isso mesmo: porque são pessoas e têm direito à esperança.
Há uma diferença substâncial entre caridade e solidariedade.
Nos momentos de crise, há um
lugar para os bombeiros que apagam os incêndios e há um outro lugar para os que
avaliam medidas de fundo que os impeçam no futuro, para aqueles que analisam os
erros do passado e traçam vias para que não voltem a ser cometidos. Isabel
Jonet é excelente no papel de bombeiro e tem muito mérito nesse domínio, não a transformem
naquilo que não é.
É por tudo isto que não assino
qualquer petição para que se demita, até porque o “Banco Alimentar” é uma
associação e não me compete tal exigência, mas também porque me parece que tem
exercido bem o seu papel. O mesmo se aplica às petições de sinal contrário: não
me compete exigir que fique ou que vá. Haja o sentido das proporções: Isabel Jonet nem é
sagrada pelo que fez, nem diabólica pelo que disse.
No mais, é óbvio que, como muitos
outros, não terei a mínima dúvida em continuar a contribuir na medida das
minhas possibilidades. O que está em causa é, sobretudo, quem beneficia desta
solidariedade. É nesse essencial que
deveriam estar focadas as atenções.
Luís Novais
Links: Declarações de Isabel Jonet. Notícia no Jornal "Público"