quinta-feira, 28 de fevereiro de 2013

Uma Carta Sobre a Guiné-Bissau

Crianças numa tabanca da Guiné-Bissau
Em Agosto de 2008 estava eu em Portugal, recém chegado da Guiné Bissau.
Acabara de receber missiva dum amigo português que por lá conheci. Estava amargado, ele, crítico do funcionamento do Estado local.
Hoje, andei a fazer algumas arrumações no meu programa de email e deparei-me com a minha resposta. Deu para notar que já me rondava na cabeça o personagem Jaquité, esse guineense emigrado para o imaginário país Ocidental Praia de "O Heróico Major Fangueira Fagundes".
Sem cometer inconfidência relativamente ao destinatário original, resolvi partilhar.


Jaquité, personagem deste livro,
 já me rondava na cabeça
Caro XXXXX

Compreendo o desespero de quem tem de lidar com o Governo local e esse é o teu caso. Mas eu vejo as coisas por outro lado. E o que vejo são os benefícios inerentes a uma sociedade que vive sem Estado. Uma sociedade que consegue auto-organizar-se sem intervenção estatal.
O Estado é a parte que não lhes está no gene cultural. A colonização foi muito tardia e só ficou terminada em 1936, quando Portugal declarou a posse e colonização efectiva de todo o território. Para trás ficaram quinhentos anos dum ténue domínio da faixa costeira. E a atestar quão ténue, está o facto de até 1941 a capital não estar sequer no continente, mas em Bolama.
Em 1959 é criado o PAIGCV e estala a guerra.
Ou seja: em quinhentos anos de presença portuguesa só houve 23 anos de colonização efectiva sem guerra.
O que concluir? Que o modelo europeu de Estado centralizado não teve tempo de se impor e é artificial. E também que o modelo local é o da tribo e da tabanca.
Se esqueceres as relações com o Estado. Se esqueceres os ministros e os Directores-gerais. Se esqueceres os tribunais e o parlamento. Enfim, se esqueceres os 4 ou 5% da população que domina este aparelho de Estado (e que coloniza a restante população): vais ao encontro da tabanca. E acredita, se o fizeres ficarás surpreendido: a coisa funciona! Não funciona nos nossos moldes ocidentais, é certo. Mas funciona à sua maneira. Funciona como jamais nós conseguiríamos que funcionasse aqui se tivessemos o Estado (ou a falta dele) que eles têm.
E não me refiro à tabanca rural nem a qualquer espécie de mito do “bom selvagem”. Refiro-me também a essa, mas refiro-me sobretudo à tabanca sub-urbana. Essa tabanca que cá se chamaria bairro de lata ou favela no Brasil. Eu entrei aí. Dois brancos no que aparentemente seria uma favela. Dois brancos vestidos como brancos, com máquina fotográfica e alguns sinais de riqueza, se outros fossem necessários para além da cor da própria pele. Não vi polícia. Não vi qualquer sinal da presença do Estado. Vi uma sociedade em auto-gestão e com capacidade para o fazer. E senti-me seguro. Comuniquei. Não corri qualquer risco.
Nós temos o Estado. Eles têm isto. E não os compreendemos se olharmos para o seu Estado que, é verdade, não existe. Não existe porque se calhar não precisa de existir. Algo que para nós é difícil de compreender.
Há vinte e cinco séculos que acreditamos na força do indivíduo (e eu acredito, sou um claro fruto do Ocidente). Mas ao mesmo tempo que acreditamos nessa força, temos medo dela. E por isso inventamos o nosso Estado. Inventámo-lo porque o poder da pessoa numa sociedade que é orgulhosamente individualista tinha de ser mitigado. Inventámo-lo, até, para conseguirmos salvar a individualidade de cada um contra o excesso de individualidade de cada outro.
E agora o que temos? Em nome da salvaguarda do indivíduo temos um Estado que o esmaga. Um Estado que, sendo assim, é a contradição da sua própria razão de ser. Um Estado que controla cada um dos nossos nanomomentos. Um Estado que nos regula a vida. E tudo sob a capa de que este controle e esta regulação servem para a salvaguarda do indivíduo.
Com este esmagamento asfixiamos as relações inter-individuais. Esmagamos a vizinhança. Esmagamos a solidariedade entre pessoas, que também essa foi nacionalizada. Esmagamos, enfim, a parte positiva daquilo que seria um tribalismo à nossa moda.
Enfim, não sei que te diga. Nem sequer sei dizer claramente o que prefiro. Não sei se prefiro os carros sem matricula que eles aí têm. Não sei se prefiro os chips que querem meter nas nossas matriculas. Não sei. Mas sei que talvez eles tenham muito a aprender connosco. Têm certamente. Mas também nós temos muito a aprender com eles. Temos certamente.
Vou terminar. Não sem antes aflorar outra questão: a da contradição da Guiné-Bissau. É que esse país não existe enquanto tal. A única coisa que o une como nação é o seu passado de colónia. Não há Guiné-Bissau sem ter havido colonização. E essa é uma contradição que eles talvez tenham dificuldade em sintetizar, talvez durante séculos… pelo menos se continuarem a existir enquanto tal.

Termino-me. Espero que recuperes bem. Eu também apanhei um problema gástrico quando aí estive… o nosso aparelho digestivo também tem dificuldade em se adaptar...

Um abraço

Luís

terça-feira, 26 de fevereiro de 2013

Aforismos II. Van Gogh


Ao filme já o tinha visto há muitos anos. Deve ser dos sessenta, talvez setenta. Revi-o. De o ver em miúdo, uma recordação forte: o desespero, o corte da orelha. E também uma imagem: o campo com corvos e aquele tiro final.
Sai-me outro aforismo que estou em época deles. Há sadismo no apreciar da arte: deleitados na dor alheia, nasce-nos a catarse.  

sábado, 23 de fevereiro de 2013

Aforismos I


Dia de aforismos, o de ontem.

A espera no Instituto faz-se esperar. “O voo do Sr. Eng. atrasou-se”, a rececionista mamalhuda. “Não sei se poderá recebê-lo, já deveria ter começado a reunião do Directório”. Lembro-me da secretária. “A señorita viajou com o engenheiro”, agora é com despeito que o rosto não contradiz. Eu, eu apenas olho as mamas. “Não faz mal, posso esperar”.

Um sofá; há muitos naquela receção. Escolho um. Dois tipos, também à espera. Reconheço-os. Televisiva gente: desses que fazem paraísos em crimes ambientais.

Ao sofá, já o escolhi: fico naquele canto, que dali vejo tudo sem que muito me vejam.

Penso em mim e no meu papel. Tantos que desempenho. Quantos eus terá o eu?

Darwin assalta-me: as espécies que sobrevivem não são as mais fortes mas as que melhor se adaptam. À frase, escrevo-a como me veio à cabeça, já não vale confirmar, que vá à wiki quem queira citação bem citada; eu não que não estou para isso. Perdeu qualquer valor, ser culto, enciclopédico. Ainda bem: que tratem de criar, os enciclopedistas. Esqueçam, se querem ser gente.

Darwin de novo: a mesma frase. Adaptar: “Ajustar uma coisa a outra, de modo que possa servir ou ser usada”. Apanhado em flagrante, eu: não escapei à tentação. Chegado a casa vou ao dicionário.

…”de modo que possa servir ou ser usada”. É isso, sobreviver, afinal: servir e ser usado. Múltiplas servidões e múltiplos usos. “Vamos soldado, tens o inimigo à tua frente”, “são bombas, senhor: vêm do céu”, “ataque na retaguarda”… múltiplas situações, múltiplos usos, múltiplas servidões.

Situação-servidão, servidão-uso, uso-situação, situação-situações, situações, situações, situações. Viva as situações, viva! A todas temos de servir: múltiplos eus. Quantos eus tem o eu?

Já cá tardava, finalmente cago aforismos: instrumento de salvação, a esquizofrenia. Os múltiplos egos para as múltiplas situações: está salva a servidão. Que nos usem todos, que todos nos usem. Vos postulo nova verdade: sois múltiplos, sois múltiplos. Aleluia, aleluia.

À noite é teatro, perfomance, assim se diz: três em nudez de seu caminhar. Depois conversa-se. Um dos eus quer falar e fala. Talvez a arte seja isso: fuga à racionalidade imposta. Dizem-nos racionais, não? Como se não fossemos gente sem essa tal. Tamanha imposição: sem lógica, nem pessoas seriamos. Abençoada arte que nos permite fugir. Fica eu para eu. Esquecemos a servidão, usámo-nos sem que nos usem.

Mas o jovem convicto diz que não. Que a arte tem de ser combate, que não se trata de estética ou transcendência. Que tem de ser real para que seja denúncia. Ou é denúncia, ou é mero deleite da burguesia. Sinto a naftalina da palavra. Podem ser bem velhos, afinal: os jovens.

Concordo com ele: sim, a arte é combate. Falta que a vida não se faz dum só e nem às mesmas servidões todos nos desajustamos, os usos. 

Luis Novais