sábado, 23 de fevereiro de 2013

Aforismos I


Dia de aforismos, o de ontem.

A espera no Instituto faz-se esperar. “O voo do Sr. Eng. atrasou-se”, a rececionista mamalhuda. “Não sei se poderá recebê-lo, já deveria ter começado a reunião do Directório”. Lembro-me da secretária. “A señorita viajou com o engenheiro”, agora é com despeito que o rosto não contradiz. Eu, eu apenas olho as mamas. “Não faz mal, posso esperar”.

Um sofá; há muitos naquela receção. Escolho um. Dois tipos, também à espera. Reconheço-os. Televisiva gente: desses que fazem paraísos em crimes ambientais.

Ao sofá, já o escolhi: fico naquele canto, que dali vejo tudo sem que muito me vejam.

Penso em mim e no meu papel. Tantos que desempenho. Quantos eus terá o eu?

Darwin assalta-me: as espécies que sobrevivem não são as mais fortes mas as que melhor se adaptam. À frase, escrevo-a como me veio à cabeça, já não vale confirmar, que vá à wiki quem queira citação bem citada; eu não que não estou para isso. Perdeu qualquer valor, ser culto, enciclopédico. Ainda bem: que tratem de criar, os enciclopedistas. Esqueçam, se querem ser gente.

Darwin de novo: a mesma frase. Adaptar: “Ajustar uma coisa a outra, de modo que possa servir ou ser usada”. Apanhado em flagrante, eu: não escapei à tentação. Chegado a casa vou ao dicionário.

…”de modo que possa servir ou ser usada”. É isso, sobreviver, afinal: servir e ser usado. Múltiplas servidões e múltiplos usos. “Vamos soldado, tens o inimigo à tua frente”, “são bombas, senhor: vêm do céu”, “ataque na retaguarda”… múltiplas situações, múltiplos usos, múltiplas servidões.

Situação-servidão, servidão-uso, uso-situação, situação-situações, situações, situações, situações. Viva as situações, viva! A todas temos de servir: múltiplos eus. Quantos eus tem o eu?

Já cá tardava, finalmente cago aforismos: instrumento de salvação, a esquizofrenia. Os múltiplos egos para as múltiplas situações: está salva a servidão. Que nos usem todos, que todos nos usem. Vos postulo nova verdade: sois múltiplos, sois múltiplos. Aleluia, aleluia.

À noite é teatro, perfomance, assim se diz: três em nudez de seu caminhar. Depois conversa-se. Um dos eus quer falar e fala. Talvez a arte seja isso: fuga à racionalidade imposta. Dizem-nos racionais, não? Como se não fossemos gente sem essa tal. Tamanha imposição: sem lógica, nem pessoas seriamos. Abençoada arte que nos permite fugir. Fica eu para eu. Esquecemos a servidão, usámo-nos sem que nos usem.

Mas o jovem convicto diz que não. Que a arte tem de ser combate, que não se trata de estética ou transcendência. Que tem de ser real para que seja denúncia. Ou é denúncia, ou é mero deleite da burguesia. Sinto a naftalina da palavra. Podem ser bem velhos, afinal: os jovens.

Concordo com ele: sim, a arte é combate. Falta que a vida não se faz dum só e nem às mesmas servidões todos nos desajustamos, os usos. 

Luis Novais

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