Dia de aforismos, o de ontem.
A espera no Instituto faz-se esperar. “O voo do Sr. Eng. atrasou-se”, a rececionista
mamalhuda. “Não sei se poderá recebê-lo, já deveria ter começado a reunião do
Directório”. Lembro-me da secretária. “A señorita viajou com o engenheiro”,
agora é com despeito que o rosto não contradiz. Eu, eu apenas olho as mamas. “Não
faz mal, posso esperar”.
Um sofá; há muitos naquela receção. Escolho um. Dois tipos, também à espera. Reconheço-os. Televisiva gente: desses que fazem paraísos em crimes
ambientais.
Ao sofá, já o escolhi: fico naquele canto, que dali vejo tudo sem que muito
me vejam.
Penso em mim e no meu papel. Tantos que desempenho. Quantos eus terá o eu?
Darwin assalta-me: as espécies que sobrevivem não são as mais fortes mas as
que melhor se adaptam. À frase, escrevo-a como me veio à cabeça, já não vale
confirmar, que vá à wiki quem queira citação bem citada; eu não que não estou
para isso. Perdeu qualquer valor, ser culto, enciclopédico. Ainda bem: que tratem
de criar, os enciclopedistas. Esqueçam, se querem ser gente.
Darwin de novo: a mesma frase. Adaptar: “Ajustar uma coisa a outra, de modo
que possa servir ou ser usada”. Apanhado em flagrante, eu: não escapei à
tentação. Chegado a casa vou ao dicionário.
…”de modo que possa servir ou ser usada”. É isso, sobreviver, afinal: servir
e ser usado. Múltiplas servidões e múltiplos usos. “Vamos soldado, tens o
inimigo à tua frente”, “são bombas, senhor: vêm do céu”, “ataque na retaguarda”…
múltiplas situações, múltiplos usos, múltiplas servidões.
Situação-servidão, servidão-uso, uso-situação, situação-situações, situações,
situações, situações. Viva as situações, viva! A todas temos de servir: múltiplos
eus. Quantos eus tem o eu?
Já cá tardava, finalmente cago aforismos: instrumento de salvação, a
esquizofrenia. Os múltiplos egos para as múltiplas situações: está salva a
servidão. Que nos usem todos, que todos nos usem. Vos postulo nova verdade:
sois múltiplos, sois múltiplos. Aleluia, aleluia.
À noite é teatro, perfomance, assim se diz: três em nudez de seu caminhar. Depois
conversa-se. Um dos eus quer falar e fala. Talvez a arte seja isso: fuga à
racionalidade imposta. Dizem-nos racionais, não? Como se não fossemos gente
sem essa tal. Tamanha imposição: sem lógica, nem pessoas seriamos. Abençoada arte
que nos permite fugir. Fica eu para eu. Esquecemos a servidão, usámo-nos sem que nos usem.
Mas o jovem convicto diz que não. Que a arte tem de ser combate, que não se
trata de estética ou transcendência. Que tem de ser real para que seja denúncia. Ou
é denúncia, ou é mero deleite da burguesia. Sinto a naftalina da palavra. Podem
ser bem velhos, afinal: os jovens.
Concordo com ele: sim, a arte é combate. Falta que a vida não se faz dum só
e nem às mesmas servidões todos nos desajustamos, os usos.
Luis Novais
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