Esta é a crise que enfrentamos. Uma crise que se mascara de
várias roupagens, veste-se aqui de crise económica, ali de crise de valores,
acolá de crise social. Mas, afinal, por muitas diferentes roupas que lhe
vistamos, é uma e única: Uma crise filosófica; esses mesmos fundamentos
filosóficos que nos permitiram chegar aqui, entraram num curto-circuito que não
estamos a conseguir resolver.
Com uma clara
influência das leituras ávidas que sempre fiz dos livros de António Damásio, que
tenho em Portugal com pena de não os dispor na minha biblioteca peruana,
percebi que a característica filogenética distintiva da nossa espécie é essa capacidade única
que temos: A consciência do eu, baseada naquilo a que o próprio Damásio chama “memória
autobiográfica”.
Somos a nossa
memória e somos o personagem “eu” que, graças a ela, criamos. Todo o nosso
corpo é constante mudança, a matéria que nos compõe é renovação permanente e grande
parte dela não era “nós” há uma ou duas semanas. Mas continuamos a ser “eu” e,
ao sermos “eu”, parimos o “outro”. Cria-se uma fronteira entre o "mim" e o "não
mim", a unidade cósmica perdeu-se no meio da evolução que atingimos.
A mitologia sempre procurou
resolver este drama, umas vezes encontrando nele um castigo que temos de
padecer, para um dia, redimidos, voltarmos ao eterno absoluto. Que é o jardim
do paraíso? O que é, se não essa unidade perdida? Essa consciência de quem se
atreveu a morder o fruto do conhecimento e, mordendo-o, tomou consciência de
si. Adão cobriu-se de Eva e Eva cobriu-se de Adão, porque Adão percebeu que Adão não
é Eva e Eva percebeu que Eva não é Adão.
Noutros mitos, Prometeu
expia a culpa universal porque foi ele quem deu a luz à humanidade, a luz, eterna metáfora do conhecimento e da consciência. Essa mesma culpa que será, depois, expiada também por esse outro grande personagem histórico que é Cristo.
Noutras latitudes,
os nativos shipibas, da Amazónia, são conhecidos pelas linhas que traçam em
todos os seus utensílios, em todos os seus tecidos. Eles creem que o mundo já
foi um só todo, unido, sem separação, e essas linhas são a sua eterna procura da união perdida.
Quando entramos na
filosofia, pensemos como, na nossa civilização ocidental, o problema foi criteriosamente
resolvido por Platão. Somos unos e divididos, divididos na matéria, que é fonte de
falsidade, unos e universais nesse mundo das ideias, onde reside a verdade. E é
por isso que, para Sócrates, o conhecimento é um lento despertar, um
exercício da recordação que trazemos desse mundo que nos transcende e donde viemos. Em Fédon,
Sócrates está feliz porque vai morrer, já que, morrendo, acredita que irá regressar à eterna Verdade.
A transcendência e a Verdade universal que aí se encontra, são os dois pilares da sociedade
ocidental. Buscamos a verdade porque acreditamos na transcendência. Nenhum
sistema ocidental deixou de crer nisso, ainda que tenham variado os modelos e
as liturgias para alcançar esse eterno absoluto.
A aventura dos
sentidos que foi o renascimento e, posteriormente, o positivismo que se vai
paulatinamente afirmando no século XIX, apenas momentaneamente refreado pela
reação romântica, vão criando um problema de difícil solução. Já Descartes (1596-1650) o
escancarou, quando foi incapaz de encontrar coerente resposta para o contacto
entre res cogita e a res extensa. Esse ponto de união seria a busca
obsessiva duma geração de pós-cartesianos, que incluiu o faustoso Leibnitz (1646-1716) e o
humilde Espinoza (1632-1677). Mas eram respostas insuficientes e a quase infantil
teoria Leibnitizana seria, e bem, até ridicularizada no “Cândido” de Voltaire (1694-1778).
Não compreendemos a
importância de encontrar uma resposta, se não nos consciencializamos de que qualquer
civilização nasce a partir da solução que encontra para o problema filogenético humano, e é por isso que nenhuma se mantém
se deixa de poder suportar-se nesse pilar fundador que, no nosso caso, é precisamente aquele que Platão
cimentou: A transcendência, que reúne o que se separou, e a Verdade que daí
resulta.
Nietzche (1844-1900) diria que
o cristianismo é platonismo com Deus, e o crescimento cristão no ocidente, numa
altura em que o próprio império que o expandiu estava em risco de desagregar-se,
como viria a suceder, explica-se pelo caldo cultural em que se tornou num modelo
religioso, num modelo de vida e até num modelo de racionalidade. Porque isso é
certo: Desde os áticos que o racionalismo se impôs no ocidente e o primeiro desafio da novel
religião foi unir pontas que pudessem ligar racionalidade com religiosidade,
tarefa que se empreendeu desde São Justino (100-165), com picos sublimes, como aqueles
que atingiram Santo Agostinho (354-430) ou São Tomás de Aquino (1225-1274). Desde esses primórdios
que estão presentes os modelos platónicos, desde eses primórdios que se procura resolver os
respetivos problemas que ficaram em aberto e que se empreende uma síntese entre o mundo racional e o
religioso. Sem que os primeiros filósofos cristãos tivessem feito esse
esforço, a nova religião jamais atingiria aquele patamar que as elites exigiam
para aderirem a algo que, de contrário, seria visto como meramente plebeu e
fruto da ignorância.
Se fizermos uma
ponte entre a medieval questão dos universais, e a capacidade de Kant (1724-1804) para
resolver o paradoxo do absoluto e do contingente, percebemos que foi o professor
de Koningsberg quem deu ao século XIX as bases filosóficas essenciais para que
pudesse seguir o método científico como nova liturgia de chegada, ou de aproximação,
a uma verdade transcendente, condição sine
qua non para que o ocidente prosseguisse, sem perder o contexto dos seus
pilares fundadores.
Entretanto, muitas
coisas foram mudando e, nessa incessante busca pela transcendência, fomos
chegando a outras conclusões. A primeira, que de uma mesma realidade se podem
fazer diversas “verdades”. A perspectivação modernista, que inclui os ângulos
múltiplos de Picasso (1881-1973), ou o desdobrar de personalidades de Pessoa (1888-1935), têm esse
significado, tendo-se chegado a extremos de negação dum sentido para tudo, na
orgia dadaista, ou no refugio dentro dum mundo interior, subjetivo, na loucura
de Dali (1904-1989).
Mas a voragem não
ficava por aí. Chomsky (1928 - ) mostrou bem como as técnicas de comunicação começaram a
criar um abismo entre o real e o percepcionado, e como a manipulação da mensagem
podia criar um real manipulado. E eis que começamos a entrar de frente na
angústia pós-moderna, uma crise mental de grandes proporções, se tivermos em
conta que esta perda de convicção numa verdade que seja em si mesma, não surge
numa civilização qualquer, se não naquela que desenvolveu 2.500 anos de
pensamento tendo-a como base para a resolução do mais humano dos problemas, a
consciência de nós, com a consequente desfragmentação da unidade cósmica.
Mudo de parágrafo,
para dar às frases que se seguem o destaque que lhes quero dar, uma espécie
de perspectiva do problema da actualidade: Foi a crença na transcendência que nos
obcecou pela procura de uma verdade absoluta, e foi essa procura que nos levou
a concluir que a verdade é que a transcendência não existe e, consequentemente,
nem sequer a verdade ela mesma.
Esta é a crise que
enfrentamos. Uma crise que se mascara de várias roupagens: Veste-se aqui de
crise económica, ali de crise de valores, acolá de crise social. Mas, afinal,
por muitas diferentes roupas que lhe vistamos, é uma e única: Uma crise
filosófica; esses mesmos fundamentos filosóficos que nos permitiram chegar onde chegamos como civilização,
entraram num curto-circuito que não estamos a conseguir resolver. E é por isso que
andamos perdidos, em busca de novos absolutos, de novas morais que cada grupo
ou micro-grupo procura impor absolutamente. O politicamente correto e as vestes
que se rasgam contra aqueles que não o seguem, feminismo, nacionalismo, novas
religiões, vegetarianos, ascetas, radicais dos direitos animais, neo-espiritualidades, micro-causas, bem intencionadas, mas agigantadas como se fossem o absoluto fundamento... Tudo isto são procuras
desesperadas de novos universais, tudo são substituições de um algo que sentimos
ter perdido sem que tenhamos bem consciência de quê. Por fim, tudo nada
resolve, porque somos uma civilização de absoluto absoluto, e quem assim nasce
não se reencontra em parcelas absolutamente emparceladas.
Precisamos
urgentemente de voltar aos fundamentos. Precisamos urgentemente de sair da orgia
tecnológica em que nos afundamos, para debater o que é ser-se humano e o que é
ser-se parte duma civilização.
Terminemos com uma metáfora. Enquanto em Lisboa se organizava um evento
superficial chamado Web Summit, com todo o impacto que significativamente possa
ter, em Abrantes fazia-se um Festival de Filosofia. Quantos não souberam do
primeiro, e quantos souberam do segundo?
Luís Novais
Foto: A Expulsão do paraíso, Capela Sistina.