O alertas dramáticos que Mário Soares começou a
lançar nos governos europeus, de que havia orientações de Moscovo e Portugal estava
para cair na esfera soviética, não serviram para mais do que cortar um dos elos
do nó górdio em que o seu projecto de poder estava metido.
Temos tendência para
analisar os acontecimentos com base num binómio intuitivo entre provável e improvável.
É isso que nos leva a refletir com base em causalidades óbvias e facilmente identificáveis.
Políticos e comunicadores sabem-no perfeitamente, e é por esse motivo que tendem a
transformar a realidade-real numa realidade-comunicada. Para isso, a mensagem
tem de ser o mais simples e óbvia possível. Geralmente conseguem, impondo mitos
que duram gerações.
Quando o senso comum
tenta explicar o Período Revolucionário português, que vai de abril de 1974 a
novembro de 1975, a explicação óbvia é que tínhamos um Partido Comunista
apoiado por Moscovo, que queria sovietizar o país e seguia fielmente instruções
vindas da URSS.
Fora dos meios académicos, raramente se refere que, em 1974, estávamos em pleno nesse período a que se chamou a détente, que poderíamos traduzir como “desanuviamento”, um processo
de aproximação entre leste e ocidente que terminou na assinatura dos acordos de
Helsínquia em 1975. Alguns historiadores falam mesmo no fim da I Guerra fria,
situando o início duma segunda em 1979, com a invasão do Afeganistão e a
chegada da era Reagen.
Este processo de
desanuviamento começa por 1968 e foi impulsionado por interesses conjuntos da
União Soviética, da Alemanha Federal e dos Estados Unidos, estes últimos movidos
pela dupla Kissinger-Nixon, para mim e fora de qualquer dúvida, o melhor presidente
dos Estados Unidos no pós-guerra… eu sei, eu sei, presos às imagens criadas, o
sensos comuns não pensam assim.
Só para dar alguns exemplos:
Nixon abriu as relações diplomáticas com a China Popular, assinou os acordos
SALT II de desarmamento, terminou a presença americana no atoleiro vietnamita,
que foi uma herança sem sentido da administração Johnson, conseguiu estabelecer
com Moscovo uma cooperação científica nos campos da medicina e da conquista do
espaço etc etc. Presos a preconceitos e a imagens que nos formularam, preferimos
achar que o herói foi um Presidente claramente impreparado, que entregou Cuba
de mão beijada à URSS por andar a brincar aos cow boys na Baía dos Porcos (1961), ou que dizia frases muito
estilosas mas que não resolveram nada, tal como essa cheia de glamour: “Ich
Been ein Berliner” (1963).
Se é verdade que em 1974 a
URSS estava interessada em Angola, não tinha interesse estratégico em Portugal,
como bem o demonstra o discurso neutral e orientado à conciliação com que Cunhal
aterrou em Lisboa no dia 30 de abril de 1974, depois de 14 anos de exílio em
Moscovo.
Quem realmente deu força
ao PCP para uma progressiva radicalização, foi a República Democrática da
Alemanha (RDA), que se sentia ameaçada pela aproximação entre Bona e Moscovo, iniciada
desde que Willy Brandt chegou ao poder. Um Portugal sovietizado acicataria
receios no eleitorado federal alemão e por certo seria politicamente
explorado pela direita, prejudicando a Ostpolitik
de Brandt, que tinha um objectivo claro: a reunificação, ou seja, o fim da RDA.
Os alertas dramáticos que
Mário Soares começou a lançar nos governos europeus, de que havia orientações de
Moscovo e Portugal estava para cair na esfera soviética, não serviram para mais
do que cortar um dos elos do nó górdio em que o seu projecto de poder estava
metido: Um PCP com implantação, com experiência política e interessado em
cooperar, era uma ameaça para um PS ainda imberbe. Soares sabia bem que os
apoios aos comunistas não vinham de Moscovo, mas de Berlim Oriental, e sabia
bem porquê. Sabia ele e sabia Willy Brandt, que alinhou no discurso porque a
ameaça global que poderia mover o mundo ocidental era a soviética, não a da Alemanha
de leste.
A outra frente desse nó
górdio era a direita militar, representada por Spínola, com um modelo de
democracia cesarista, que não era conciliável com o civilismo soarista. Spínola
caiu porque nenhum partido o apoiou e nenhum partido o apoiou porque o general
tinha ligações à caserna, mas faltava-lhe a confiança da sociedade civil
partidarizada, que tinha outro projecto de poder.
Foi por isso que Soares
teve de jogar em duas frentes, a primeira implicava impulsar a esquerda militar
e política, para aniquilar Spínola. A segunda, e uma vez acabada a ameaça
spinolista, aniquilar o PCP e a esquerda militar. É também por isso que os
ataques ao PCP se intensificam a partir do 11 de Março, quando o general ficou
fora de jogo, e que só então se dramatizou ao limite, usando o caso “Republica”
para acusar o PCP de querer dominar a imprensa. Num pico de confronto, Soares
abandonou o governo, fazendo-o cair e obrigando à constituição do V Provisório,
sem apoio de qualquer partido, exceto do PCP, ainda assim um apoio muito
tímido.
A União Soviética tinha
razões estruturais para que Portugal não valesse um recomeço da conflitualidade
com o ocidente: Depois dos eufóricos anos 50, a sua economia vinha
desacelerando-se progressivamente e todos os planos quinquenais tiveram um
crescimento inferior ao anterior. Além disso, segundo um relatório da CIA já
desclassificado, o atraso tecnológico soviético era de 4 anos nas máquinas
assistidas por computador, 7 a 8 nas mainframes
e 4 a 6 em microcomputadores. Acresce que, em toda a década de sessenta, o país
tinha sido exportador de grãos e carne, mas na seguinte tornou-se o maior
importador mundial. Em 1985 o PIB da URSS era apenas igual ao dos EUA 20 anos
antes (CIA, 1985).
Moscovo precisava duma
estratégia e tinha-a: Apostar tudo por tudo na exportação de petróleo, usando
para isso tecnologia adquirida no ocidente (MAZAT, 2013).
Mas esta dupla necessidade, importar
cada vez mais tecnologia ocidental e receber cada vez mais petrodólares,
dependia dum desanuviamento da relação geopolítica. E assim percebemos que a
política de détente era essencial
para o crescimento económico soviético, aliás, para a sobrevivência do próprio
país e do seu império, como ficou claro com a extinção da URSS em 1991, na
sequência do relançamento da guerra fria em 1979, com o consequente falhanço da
estratégia.
É por isso que, exercida
alguma pressão ocidental sobre Brejnev em Julho-Agosto de 1975, este não esperou muito para falar com
Honecker, o líder leste alemão, mandando-lhe que acabasse com todo o apoio que
estava a dar aos comunistas portugueses. O aviso foi tão explicito, que terá
dito não estar disposto a prejudicar a política de aproximação ao ocidente,
“por uma mão cheia de comunistas portugueses ansiosos” (WAGNER, 2006). A partir
de aí, Berlim Leste deixa de apoiar o PCP e é, precisamente, também a partir daí,
que o discurso de Cunhal, que se vinha radicalizando desde dezembro de 1974,
volta a moderar-se, até terminar no célebre comício do campo pequeno, em
dezembro de 1975, já no rescaldo do 25
de novembro, onde se alinhou claramente pelo modelo de democracia
representativa ocidental e atacou os extremismos revolucionários.
Há vários factores que
levam a opinião pública a acreditar numa ameaça soviética durante o período revolucionário, mas nenhum corresponde à verdade. Um, é
o discurso que praticaram todos os partidos à direita e à esquerda do PCP, acusando-o de ser um "lacaio" de Moscovo. Outro, é uma certa mania das grandezas:
Objetivamente, ter a URSS como inimiga, é um muito mais apetecível do que uma
mera RDA. Trata-se dum mito, mas é um mito que fez mover a política… lá dizia Pessoa: “O mito é o
nada que é tudo”.
Num próximo artigo,
abordarei a questão das nacionalizações que se seguiram ao 11 de março de 1975,
outro tema que também está cheio de mitos.
Luís Novais
Bibliografia:
CIA
MAZAT, Numa
2013 “Uma Análise estrutural da Vulnerabilidade
Externa Econômica e Geopolítica da Russia” (Tese de doutoramento). Rio de
Janeiro: UFRJ.
WAGNER, Tilo
2006 “Portugal e a RDA durante a
Revolução dos Cravos. In: Relações
Internacionais, n.º 11, Setembro, pp 79-89