sábado, 31 de agosto de 2019

DA REVOLUÇÃO FRANCESA À INVOLUÇÃO CONTEMPORÂNEA



Hoje voltamos assistir a reações de medo, bem patentes na eleição de líderes orientados a esse modelo de poder a que o sociólogo Alain Rouquié chamou “democracias hegemónicas”, ou seja, que procuram fundir democracia com autoritarismo, primeiro passo que poderia ser ensaio duma férrea ditadura.

Em Les Origines Culturelles de la Révolution Française (1990) o historiador Roger Chartier desvalorizou o papel fundamental das filosofias iluministas no despontar do espírito revolucionário e, em seu lugar, valorizou o aparecimento ao longo do século XVIII dum novo ente social, composto por indivíduos com sentimento de pertença a uma mesma comunidade baseada no conhecimento e na partilha dum conjunto de valores: a "Opinião Pública".

Diz-nos Chartier que este conceito é oposto ao de opinião popular, porquanto surgiu da expansão da imprensa e se circunscreveu originalmente aos grupos alfabetizados com hábitos de leitura. É, portanto, um grupo elitista e, desmistificando uma ideia pré-concebida, uniu mais a nobreza e a burguesia, do que esta última e o povo iletrado.

Curiosamente, estas conclusões são muito semelhantes às de Benedict Anderson na sua obra fundamental Imagined Communities (1983). Segundo Anderson, a ideia de nação começou a surgir no século XVIII (teria o apogeu no XIX e a tragédia no XX), a partir da comunhão entre pessoas que não se conhecem mas sentem pertencer a uma mesma entidade, essa tal “comunidade imaginada”. Na origem deste espírito, o antropólogo encontrou a mesma expansão da imprensa que Chartier considerou fundadora da “Opinião Pública”.

É curioso que este último desconheça a obra de Anderson e que Anderson tão pouco o cite, mesmo nas edições posteriores. Os dois autores seguiram caminhos muito paralelos e as suas conclusões são semelhantes, embora com objectivos diferentes: encontrar a origem da Revolução Francesa, num, a do nacionalismo, no outro. Em nota de rodapé diria que este desconhecimento mostra bem o longo caminho ainda por percorrer no inter-conhecimento das diferentes ciências sociais, e isto apesar da escola de Chartier ser a chamada História cultural, a mesma que se fecundou bastante com a Antropologia.

De todas as maneiras, tanto a “Opinião Pública” como a “Comunidade Imaginada” terão necessariamente surgido no seio dum grupo social relativamente pequeno, que começou por formar a primeira massa com consciência de si.

Nos dias de hoje assistimos a uma nova grande transformação, apenas comparável àquela que nos proporcionou Gutenberg. O aparecimento do carater tipográfico foi um chão que deu uvas e vindima até aos anos noventa do século passado, mas a partir daí assistimos a uma nova revolução tecnológica, baseada no carater digital transportado em redes de comunicação, capazes não só de transmitir dados, mas de permitir a interação. Numa sociedade completamente alfabetizada (diferente de letrada), esta mudança levou a novas relações e ao aparecimento de novas comunidades necessariamente fragmentadas e fugazes.

As entidades “opinião-publica” de Chartier e “Comunidade Imaginada” de Anderson, já não formam grupos mais ou menos restritos, mais ou menos coesos. Pelo contrário, assistimos a uma explosão da liberdade de emitir ou procurar opinião, para a qual não estávamos provavelmente preparados e que certamente terá grandes consequências, como já tem.

Se o aparecimento e expansão da máquina de imprimir provocou a Revolução Francesa e o aparecimento do Estado Nação, aonde nos levará a internet com todas as suas redes sociais?

Numa obra que marcou a segunda metade do século XX, Erich Fromm, um dos discípulos de Freud, analisou o outro lado da expansão da imprensa, ela mesma muito relacionada com o surgimento do protestantismo, fomentador da leitura pessoal dos textos sagrados. Numa obra com o significativo título de “O Medo da Liberdade”, concluiu que essa mesma liberdade individual implícita na leitura direta da palavra divina, sem a intermediação imposta pela Igreja de Roma, terá gerado uma angústia pela falta de certezas e um consequente medo em busca de superação. Esse medo terá buscado paliativo no determinismo espiritualista de Hegel, no materialista marxista, ou nos intolerantes fenómenos de massas que foram o fascismo, o nacional-socialismo ou o estalinismo.

Postos os indivíduos perante um vendaval de opiniões e instados eles mesmos a opinar, fugir da liberdade pode ter sido o refugio da maioria ou duma grande parte. A verdade e a tolerância deixavam de ser um valor seguro e a fusão pessoal numa massa anónima chefiada por um führer ou por um duce teria sido porto de abrigo contra a temida liberdade.

A revolução digital multiplicou exponencialmente a informação e a divulgação das opiniões, mas também a desinformação e a idiotice, gerando confusão nos espíritos e, digo eu, trazendo de volta o tal medo à liberdade. A imprensa tipográfica originou a libertação protestante, a consciência nacional ou a opinião-pública. Mas terminou numa negação da liberdade, numa anulação do indivíduo e nas ditaduras mais sanguinárias da história, ocorridas na primeira metade do século XX, a tal ponto que foram antídoto e trouxeram de novo o consenso, através duma liberdade apesar de tudo parcial porque controlada por uma opinião publicada e, portanto, editorialmente controlada.

Hoje assistimos novamente a reações de medo, bem patentes na eleição de líderes orientados a esse modelo de poder a que o sociólogo Alain Rouquié chamou “democracias hegemónicas”, ou seja, que procuram fundir democracia com autoritarismo, primeiro passo que poderia ensaio duma férrea ditadura… e escuso-me às referências para centrar o debate nas questões de fundo e não nas emocionais e secundárias.

O moderno “medo da liberdade” teve génese no aparecimento da imprensa e cresceu em espiral até atingir o apogeu na sanguinária primeira metade do século XX. Hoje não são necessários 500 anos para aí chegar: a alfabetização global é uma realidade e a velocidade da comunicação acelera todos os processos mentais. Os fenómenos de intolerância e autoritarismo, os modelos políticos de matriz massificadora como foi o fascismo, são realidades que despontam como cogumelos, incluindo nas democracias mais consolidadas do mundo.

Se a tipografia de carateres levou à Revolução Francesa, estará a digital a conduzir-nos a uma Involução?... temo que sim.



Luís Novais

Foto: WikiImages from Pixabay 

quarta-feira, 28 de agosto de 2019

O ARROGANTE SOU EU?



Se eu entrasse por um laboratório, se começasse a discutir teoria da relatividade ou física quântica com os cientistas, se me mandassem à merda mais às minhas ideias… os arrogantes seriam eles, ou seria eu que nem para aprender serviria?

Os estudiosos de humanidades ou ciências sociais somos várias vezes acusados de arrogantes sempre que saímos do meio académico e nos lançamos a públicos debates. Ainda hoje um bom amigo me atirou à cara, em acalorada discussão numa rede social sobre o Brasil desta era bolsonárica.

É verdade e conhecemos vários casos. Uma inteligência brilhante como era a de Vasco Graça Moura tocava as raias do indecoroso quando tinha de baixar à rua, o reputado académico Augusto Santos Silva chega ao limite do insuportável nos debates públicos, de Boaventura Sousa Santos, um dos sociólogos mais reconhecidos internacionalmente, tão-pouco se pode dizer que seja um querido, todos nos lembramos com saudade da irascibilidade de um dos maiores escritores de sempre que foi (é) José Saramago… os exemplos poder-se-iam suceder.

Quando o meu amigo me acusou de “arrogância livresca” deixou-me a pensar no assunto. Reconheço-a, no sentido positivo de “livresco” e no negativo de “arrogante”, quando saio do meio intelectual donde venho, exceto tendo uma audiência não especialista mas praticamente passiva.

O penúltimo parágrafo surgiu daí, deu-me o conforto da boa companhia e fez-me reflectir sobre o assunto. Entro de frente num debate sobre História, sobretudo História da culturaa incluindo a literatura e a Filosofia, na Antropologia também não recuo e estudo falando como aprendiz de neurociência, principalmente no impacto dos seus avanços nestas referidas áreas. Direito também aceitaria debater com um advogado mas apenas ao nível dos princípios, jamais da técnica, da legislação ou do processo… e fico-me por aí.

Então dei comigo a pensar: “Discutirias Física com um físico? Química com um químico? Matemática com um matemático?” Não e posso supor os seus desesperos se a tal me atrevesse. Nem eu o faço nem ninguém que os não seja costuma fazê-lo, e então, físicos, químicos ou matemáticos têm a felicidade de que nenhum não-físico, não-químico, não-matemático se ponha a debater e a pôr em causa as suas conclusões.

Tenho inveja e é uma sorte que nós, os das Humanidades, os das Ciências Sociais, não temos: Não há quem não se sinta historiador, filósofo antropólogo, sociólogo ou psicólogo e não venha discutir História, Filosofia, Antropologia Sociologia ou Psicologia connosco, geralmente sem saber que o está a fazer.

O melhor seria resistir e não sair a terreiro. Mas não estaríamos numa recusa da divulgação científica? Não seria arrogância maior?

Se eu entrasse por um laboratório, se começasse a discutir teoria da relatividade ou física quântica com os cientistas, se me mandassem à merda mais às minhas ideias… os arrogantes seriam eles, ou seria eu que nem para aprender serviria?


Luís Novais

Nota: Dedicado ao meu querido amigo Joaquim Barbosa
PS: Solidário com os médicos desde que surgiu o Dr. Google.

sexta-feira, 5 de julho de 2019

A VENEZUELA E AS LIÇÕES DA “TERCEIRA VAGA” DEMOCRATIZADORA




A precipitação de Guaidó proclamando-se presidente e a não menos precipitada aceitação de alguma comunidade internacional, não deixa qualquer margem a um reconhecimento mútuo que abra portas à negociação. Neste momento, nem Guaidó pode aceitar Maduro como presidente, nem Maduro Guaidó como líder da oposição, depois de este se ter considerado tão presidente que até embaixadores nomeou em alguns países que o reconheceram.

Procurando explicar aquilo a que chamou "terceira vaga democratizadora", iniciada com a revolução portuguesa de 1974 e terminada na queda do império soviético, Samuel Huntington atribuiu-lhe diversas causas. Entre essas destacaria as seguintes, por serem as que melhor contribuem a uma análise da atual situação venezuelana: 1) Crescimento económico suspendido por crises conjunturais; 2) Perda de sentido dos regimes face aos seus objectivos iniciais estarem atingidos; 3) Quebra da coesão interna sobretudo no seio das forças armadas; 4) Efeito bola de neve provocado pela queda de outros regimes similares e 5) pressão internacional.

O primeiro fator parece estar claramente a verificar-se. O regime de Chavez beneficiou dum extraordinário aumento do preço do petróleo, permitindo-lhe concretizar uma política redistribuidora que deu esperança à grande massa da população. Os números são da ONU (CEPAL) e não deixam margens para dúvidas: Um ano antes de ser presidente, 78% dos venezuelanos viviam entre a pobreza (54,5%) e a pobreza extrema (23,4%). Quando o comandante morreu, em 2013, estas percentagens tinham diminuído para 42%, com os primeiros a baixarem a 32,1% e os segundos a 9,8%. Sem estes resultados não compreenderíamos os sucessivos resultados na frente eleitoral: Venceu quatro eleições em sufrágios reconhecidos pela comunidade internacional, sujeitou-se a um referendo constitucional aprovado com 71%  e, com forte apoio popular, conseguiu esmagar um golpe de Estado claramente apoiado pela CIA e pela Espanha de Aznar.

A bonança acabaria por terminar com a quebra conjuntural do preço do petróleo. Paradoxalmente, se a subida foi uma das causas nos anos setenta para o colapso de muitas ditaduras, incluindo a portuguesa,  aqui  é uma descida que pode levar à queda do regime de Maduro.

O segundo fator pode ser também aplicado, embora inversamente. Segundo Huntigton, alguns regimes autoritários perderam o sentido quando conseguiram atingir os objectivos pelos quais foram criadas, refere como exemplo o caso do Uruguay com a derrota da guerrilha e, diria eu, poderíamos considerar o Peru de Velasco Alvarado, chefe duma revolução que pretendeu acima de tudo libertar os camponeses dum regime de exploração que conseguiria aniquilar com a lei da reforma agrária de 1969.

No caso da Venezuela, a perda de sentido pode estar no facto de se ter estancado a promessa inicialmente exitosa de ascensão económica dos antigos 78% de pobres, ao mesmo tempo que a classe média tem de suportar uma emigração em massa ou condições de vida cada vez mais difíceis. Inicialmente o regime terá então conseguido caminhar rumo aos seus objectivos sociais, mas a economia extremamente dependente do fator petróleo não lhe permitiu ir mais além e começou, até, a verificar-se uma regressão social.

Quanto ao terceiro fator, a quebra de coesão interna, nomeadamente no seio das forças armadas, parece não estar a verificar-se. Os líderes militares mantêm-se firmes na defesa do regime e não estão a responder aos apelos de Guaidó, que até lhes acenou com uma amnistia caso contribuíssem à queda de Maduro e o reconhecessem. Provavelmente sabem que a oposição é muito diversa  e temem que, uma vez no poder, os falcões da direita lhes reservem um rolar de cabeças.

O quarto fator é o efeito bola de neve. É certo que nos últimos anos se verificou a mudança gradual duma América Latina orientada à esquerda, para outra à direita: Tivemos a metamorfose direitista de Ollanta Humala no Peru; no Chile a vitória de Piñera e a saída de Bachelet, que era um cavalo de Tróia de Maduro no Grupo de Lima; a queda de Kirchner e a eleição de Macri na Argentina; a eleição de Ivan Duque na Colômbia e, claro, a de  Bolsonaro no Brasil. Mas, ao mesmo tempo houve sinais no sentido contrário: Evo Morales parece aguentar-se de pedra e cal na Bolívia; no Equador ganhou o candidato de esquerda apesar de estar a virar claramente à direita; na Argentina o governo de Macri enfrenta os conhecidos problemas económicos e crescente contestação; como era expectável Bolsonaro não é um líder à altura do país que tem e, sobretudo, Lopez Obrador foi eleito presidente do México. Parece então claro que Guaidó não pode contar com o tal efeito bola de neve e que, se a bola se começou a formar nos últimos quatro anos, parece estar agora em claro degelo.

Por último temos a pressão internacional e esta tão-pouco parece somar a favor de Guaidó. Ao nível regional já vimos que a América Latina está dividida e quanto às grandes potências a situação é tudo menos clara: os Estados Unidos estão com Guaidó, a Russia e a China com Maduro. Soma-se que, se estes dois últimos têm fortes razões financeiras para suportar o seu aliado, não há motivos objectivos para que os norte-americanos se empenhem a fundo na defesa de Guaidó, mais do que a vazia retórica de Trump. Se na frente regional verificamoss um empate, na global ganha claramente  Maduro.

Temos então que, dos cinco fatores enunciados, apenas dois podem jogar a favor da estratégia de Guaidó: O crescimento económico-social seguido duma crise conjuntural e, relacionado, uma perda de sentido do regime.

Posto isto, voltemos a Huntington, pegando na sua análise sobre as diferentes formas como caíram os regimes autoritários das décadas de 1970 e 1980: 1) Por substituição (replacement), este foi por exemplo o caso de Portugal e da Grécia, quando as forças opositoras conseguiram ser mais fortes do que os governos e forçaram a queda dos regimes sem negociação; 2) Por metamorfose (transformation), foi o caso da União Soviética de Gorbachov, quando membros do próprio regime chegaram ao poder procurando liberalizá-lo ou até democratizá-lo; 3) Transição (transplacement), quando tanto o regime autoritário como a oposição perceberam não terem a força suficientes para se manterem ou chegarem ao poder, situação que os levou a negociar, como aconteceu na Polónia, na África do Sul ou no Chile.

Neste domínio, como está Guaidó? Aparentemente tentou a estratégia de substituição, mas parece claro não ter conseguido partir a espinha do regime estando agora num claro processo de desgaste. Um desgaste  aliás não menor para Maduro e é por isso que, neste momento, tanto uns como os outros deverão estar conscientes de não restar outra opção exceto uma saída duramente negociada.

Ora, esse é o grande problema político de Guaidó. Negociar implica que cada parte reconheça a outra, ou seja e voltando a Huntigton, a oposição deve reconhecer formal ou implicitamente a legitimidade do governo para governar e o governo a representatividade da oposição para falar em nome duma larga margem da sociedade. É precisamente aqui que chegamos a um autêntico quebra-cabeças: A precipitação de Guaidó proclamando-se presidente e a não menos precipitada aceitação de alguma comunidade internacional, não deixa qualquer margem a um reconhecimento mútuo que abra portas à negociação. Neste momento, nem Guaidó pode aceitar Maduro como presidente, nem Maduro Guaidó como líder da oposição, depois de este se ter considerado tão presidente que até embaixadores nomeou em alguns países que o reconheceram.

Qual é então a saída para um nó tão difícil? Huntigton observou nos casos onde se aplicou o modelo de transição que, muitas vezes, os presidentes no poder tiveram de negociar com opositores que antes perseguiram e até prenderam: Foi assim na Polónia, foi assim na África do Sul, foi assim na Checoslováquia. Então e subitamente ganha algum sentido essa aparentemente incompreensível intentona militar de 30 de abril, sem qualquer resultado prático exceto um grupo de militares ter libertado o opositor Leopoldo Lopez da prisão domiciliária em que se encontrava, deixando-o às portas da embaixada do Chile onde pediu “hospedagem”.

A proclamação presidencial de Juan Guaidó destinava-se a conseguir uma mudança de regime por substituição. As contradições internas e externas não lhe permitiram reunir os requisitos indispensáveis para chegar ao poder de facto: Não quebrou a unidade das forças armadas, a frente latino-americana de apoio não é suficientemente forte e as grandes potências estão a bloquear-se mutuamente. Só resta então o modelo de transição, mas esse implica um reconhecimento mútuo entre governo e oposição que o auto-proclamado presidente e o presidente de facto não se podem conceder. Assim sendo, o futuro próximo da Venezuela não deverá passar por Guaidó e, quanto mais rapidamente se derem as condições para que Leopoldo Lopez avance, mais rapidamente começará um processo, ainda assim longo, para desatar o nó em que o país se encontra.



Luís Novais


Referência:
HUNTINGTON, Samuel P. (1993). THE THIRD WAVE. Democratization in the late Twentieth Century. Oklahoma: University of Oklahoma Press.


Foto: Pedrucho



segunda-feira, 3 de junho de 2019

BREXIT PARA UNS, OPORTUNIDADE PARA PORTUGAL



Esta ausência de ideal Europeu na nossa literatura actual e, até, a existência duma ideia, se não antieuropeísta a-europeísta, é algo que nos deveria fazer reflectir. É que a literatura, por emocional, é o texto por excelência da identidade.

Muito se dizia que a participação do reino Unido nas últimas eleições para o parlamento europeu seria uma oportunidade para demonstrar a existência real dum sentimento unionista-europeu nos seus cidadãos. Ir a votos neste sufrágio era um claro paradoxo para os que pretendem sair, mas o resultado foi precisamente o contrário e, se havia alguma dúvida de que os súbditos de Isabel II querem mesmo abandonar o barco, essa dúvida acaba de dissipar-se com o resultados. Paradoxalmente, os claros vencedores foram os geneticamente anti-união.

O partido eurocético de Nigel Farage foi criado neste mesmo ano de 2019 e teve a proeza de sair vencedor com 31,7% dos votos, a uma grande distância do segundo classificado, o união-europeísta partido Liberal Democrata com apenas 19,6%. Os tradicionais Trabalhista e Conservador sofreram a humilhação de conseguirem apenas 13,65% e 8,8% dos votos. Na própria Escócia, Farage obteve 14,8%, ou seja, mais do que os trabalhistas a nível nacional.

Estes resultados acontecem uns longos três anos após o célebre referendo. Foi um triénio caraterizado por uma intensa propaganda anti-saída, durante o qual se argumentou que os eleitores tinham sido enganados e não tiveram a informação correta. Muitos diziam que, havendo novo referendo, o “sim” seria o claro vencedor. Se neste período não conseguiram “esclarecer” e ter a respetiva desforra, então é melhor começarmo-nos a convencer de estarmos realmente perante a vontade soberana dos cidadãos. Pode não agradar, mas a Democracia não está feita ao sabor de nenhuma corrente de pensamento e não é boa apenas quando os resultados são os pretendidos por alguns.

O BREXIT E A DIPLOMACIA PORTUGUESA
Este é um resultado que pode abalar Portugal no curto prazo, mas pode também ser uma oportunidade no médio. Há séculos que o nosso país tem uma diplomacia estruturalmente caracterizada pela procura de apoios alternativos que o desafoguem das forças centrípetas de proximidade, essas que de tão próximas o poderiam absorver.

Esta estratégia foi claramente seguida durante muitos séculos, tanto que ficou como uma marca das nossas relações exteriores. Foi possível graças à posição geográfica periférica, que permitiu uma aproximação aos centros políticos mais poderosos, mas numa distância física que não anulava a autonomia porque estes representavam para nós a mesma oportunidade que nós para eles: a possibilidade de diminuir a força aglutinadora dos que estavam no meio. O célebre universalismo português tem essa raiz: Curiosamente tornamo-nos universais para nos mantermos regionais, procuramos os grandes mas longínquos para evitar os medianos mas próximos (e que em alguns períodos foram até bastante poderosos).

A possibilidade desta estratégia está intrinsecamente relacionada com a posição periférica que sempre tivemos frente às potências centrípetas da história e esta constatação comprova-se pelo facto de ser, até, muito anterior à nacionalidade e, portanto, ter já um profundo cariz provincial antes de nacional. Temos pelo menos três testemunhos documentados desde o distante século IV que nos mostram a existência deste modelo.

O primeiro é o roteiro epistolar de Egéria, uma aristocrata cristã-romanizada da Galécia, província que tinha sede em Bracara Augusta de onde provavelmente provinha, e uma pessoa claramente influente no seio da Igreja local do século IV. Nesse tempo florescia em Ávila a heresia cristã de Prisciliano, fortalecendo-se e ameaçando tornar-se num polo aglutinador de poder dentro da Península Ibérica, a ponto de poder vir a originar uma Igreja local e, com ela, a concentração dum novo poder político asfixiantemente próximo. Egéria viajou à Terra Santa e enviou não só pitorescos relatos dos locais que visitava, mas também uma pormenorizada descrição do rito cristão local, o que só pode interpretar-se como a busca dum cristianismo universal capaz de fazer frente às locais tentativas priscilianistas.

Já no século V, Paulo Orósio, sentindo-se ameaçado pela invasão dos bárbaros suevos, foge  da cidade de Brácara Augusta onde vivia como presbítero, dirigindo-se à distante Hipona e tornando-se discípulo de ninguém menos do que Santo Agostinho, a quem representará em várias ocasiões e em diversos debates que o fizeram viajar por todo o Mediterrâneo. Orósio deixou-nos uma vasta obra, uma das quais redigidas após a morte de Agostinho e afirmando ser escrita a seu pedido[i]. Uma vez mais encontramos um universalismo que procura nos grandes centros a libertação relativamente às forças mais próximas.

De igual maneira Idácio, bispo de Chaves, nos deixou no século V a sua famosa Crónica[ii], uma apologia anti suevos, os mesmo que então se instalavam com um reino próprio no espaço antes definido como Galécia e que incluía o seu bispado. Frente à força dos novos invasores, Idácio usará todos os instrumentos ao seu alcance para manter a autonomia do seu território, a tal ponto que o historiador César Colodrón chegou a vê-lo como líder duma pequena república independente[iii]. Será perseguido pelos novos senhores, chegando a ser preso, e  desenvolveu uma intensa actividade diplomática junto das forças distantes do decadente Império romano, procurando apoios para a sua causa. Nesta luta contra os poderes próximos, também Idácio será um perseverante combatente da heresia priscilianista.

Esta mesma estratégia de procurar os centros universais de poder para se libertar dos regionais, não seria outra se não a do próprio D Afonso Henriques, no seu casamento com D Mafalda, vinda  da poderosa casa de Sabóia, e nas suas aproximações diplomáticas a Roma, que acabaria por reconhecê-lo e servia de contraponto ao poder próximo do primo Afonso VII de Leão. Já o pai fizera o mesmo, aproveitando-se da sua origem borgonhesa e da ligação ao tio, abade da imponente ordem de Cluny. Morto o conde, D Teresa inverte esta estratégia, aliando-se à aristocracia galega. Claro que a força centrípeta duma força tão próxima era insuportavelmente avassaladora, sendo por isso que os infanções locais não a suportaram e deixaram a condessa sem condado o mais depressa que puderam, pondo o próprio filho frente-a-frente com a mãe em 1128.

Em cada crise de sobrevivência da nossa história podemos assistir a esta tendência. Foi assim em 1383-1385 quando fomos em busca do apoio inglês contra Castela e o país conseguiu manter-se soberano, mas assim não foi em 1580, com a consequência do reino ter na prática deixado de existir como entidade política autónoma. A restauração renovará o modelo anterior, buscando a apoio de Londres contra Madrid,  e foi como recuperamos a soberania. Assim se manteve a estratégia diplomática nos séculos seguintes, não sendo por acaso que D Carlos[iv] tinha muito claro existirem dois países com os quais devíamos ter relações privilegiadas: O Reino Unido e o Brasil.

A excessiva continentalização a que a União Europeia nos levou e o seguimento quase monopolar de Bruxelas é um recente interregno neste modelo, mas a verdade é que, discursos à parte, como bem o mostrou um interessante trabalho da socióloga Rita Ribeiro[v] os portugueses  querem estar na União mas numa relação meramente instrumental de benefícios e perdas, portanto, com uma identificação utilitária que se opõe à emocional, ou seja, sem o sentimento de pertença a essa  “comunidade imaginada” como a define Benedict Anderson[vi].

A EUROPA E A LITERATURA NACIONAL
Aliás, basta olhar a literatura. Em cada momento da nossa história se conectaram identidade e literatura. As cantigas populares e cortesãs de D Dinis, com a respectiva oficialização da língua portuguesa, inseriram-se na luta de poder entre a coroa e a aristocracia, assim como as crónicas e os livros de linhagens do século XIV são a afirmação identitária com que esta responde. A cronística de base popular de Fernão Lopes é indissociável da necessidade de legitimar um rei ilegítimo, legitimado apenas pela vontade popular e de aristocratas de segunda linha. A invenção do milagre de Ourique numa crónica de 1419 não teve outra função que não a de criar um super-mito capaz de incentivar os portugueses a partirem para o desconhecido mar, porque o faziam em nome duma profecia divina ao seu primeiro rei, servindo também para legitimar transnacionalmente essa mesma expansão. Podíamos seguir adiante com Camões, António Vieira, Verney, Herculano, a geração de setenta, os modernistas com Pessoa à cabeça… Todos, mesmo todos, os períodos de diferentes buscas identitárias transpiraram para a literatura. No entanto, o recente “grande” desígnio união-europeísta não foi capaz de gerar uma literatura, não criou o mínimo entusiasmo dos escritores porque tão-pouco dos leitores e dos leitores porque tão-pouco dos escritores.

O máximo que a literatura contemporânea portuguesa criou foi o contrário, um rechaço, que está patente em nostálgicas páginas de Lobo Antunes que, na angústia pós-colonial que tanto o inspira, nunca encontrou paliativo na Europa. Em Saramago, onde, numa leitura muito pessoal, encontro uma negação da Europa em História do Cerco de Lisboa e, claramente, em Jangada de Pedra.

E nem se pode dizer que a Europa não é em si mesma estruturalmente inspiradora, porque ela chegou a sê-lo para a Geração de 70, pelo menos até que Eça entrou em crise e escreveu A Cidade e as Serras e, sobretudo, A Ilustre Casa de Ramires.

Esta ausência de ideal Europeu na nossa literatura actual e, até, a existência duma ideia, se não antieuropeísta a-europeísta, é algo que nos deveria fazer reflectir. É que a literatura, por emocional, é o texto por excelência da identidade.

PORTUGAL E O BREXIT
De qualquer forma, a questão era essencialmente outra: o Brexit. Depois das últimas eleições trata-se duma inevitabilidade e, em vez de nos lamentarmos, deveríamos ver a oportunidade. Graças ao Brexit ganhamos  novos polos além da absorvente Bruxelas e, se houve país que tenha sabido manter-se e renovar-se graças à multipolaridade, esse país foi Portugal. Já o sabemos fazer desde a viagem de Egéria à Terra Santa nesse distante século IV, e foi com essa habilidade que nos demos reino e viabilidade.



Luís Novais


 Foto: Elionas




[i] ORÓSIO, Paulo (1986 – 417). História Contra os Pagãos (tradução José Cardoso). Braga: Universidade do Minho.
[ii] IDÁCIO (1995 – 469). Crónica de Idácio (tradução José Cardoso), (segunda edição). Braga: Livraria Minho, 1995
[iii] COLODRÓN, César (s.d.).Análisis de la Figura de Idácio de Chaves a Través de los Condicionantes Socioeconómicos, Políticos y Culturales de la Gallaecia del Silglo V. El Cronicón. (tese de doutoramento). Coruña: Universidad de Coruña.
[iv] RAMOS, Rui (2008). D Carlos. Lisboa: Temas e Debates
[v] RIBEIRO, Rita (2011). A Europa na Identidade Nacional. Lisboa: Edições Afrontamento.
[vi] ANDERSON, Benedict (2017). Comunidades Imaginadas: Reflexões sobre a origem e a expansão do nacinalismo. Lisboa: Edições 70.


PARTIU AGUSTINA



No fundo somos todos como aquele Poema em Linha Reta: tantas vezes reles, tantas porcos, tantas vis, irresponsavelmente parasitas, indesculpavelmente sujos. Mas esperando que um qualquer autor crie personagens capazes de dar transcendente heroísmo à porcaria, vileza, parasitismo e sujidade… e não, os de Agustina não nos fazem esse favor, são gente, apenas gente como a gente que os lê, são tudo isso, mas sem sublime e, sem sublime, já não justificam o crime, o nosso: Não nos servem, servem-se de nós.

Viajou Agustina 96 anos de vida muito vivida. Tenho de memória pelo menos três dos seus livros: Os Meninos de Ouro, A Ronda da Noite e A Sibila. Os dois primeiros há muito tempo, o último recentemente lido, chegado comigo na mala de livros trazida para o Peru na última viagem de regresso a Portugal, afirmação necessariamente polissémica.

Tenho uma relação angustiada com os seus livros, perturbam-me pela dificuldade de não conseguir marcar de onde vêm e aonde vão. Cronos é o grande aliado de qualquer leitor: integra-nos as letras transformadas em palavras, as palavras em frases, as frases em textos, livros. Navegar a obra é preciso, seja “preciso” necessária necessidade ou precisa precisão, e esta última faz-se com mapeio, integrando-a num espaço e num tempo, percebendo onde está, vinda de onde e o que anuncia. A estes portulanos chamamos correntes literárias, também elas uma essência talvez procedente da existência, mas que nos dá segurança, permite-nos um sentimento percebido daquilo que lemos, racionalizada emoção, não fôramos filhos de Atenas.

Dizemos que este é romântico, aquele realista, outro naturalista, aqueloutro modernista ou  até mesmo pós-moderno. Normalmente nenhum é puro, todos são algo antecipando ou chegando de outro algo. Não os deixamos ser, transformamo-los no que deles fazemos, no conforto de não aceitar a espontaneidade da história, do mundo, do drama de ser humano. E assim nos sentimos refugiados do caos, artificialmente seguros.

Sei ser essa é a raiz da minha angústia de Agustina. Agustina aparece-me de geração espontânea, é difícil, se não impossível, dizer com quem foi e quem com ela seguirá, exceto que chega consigo e consigo se vai. Qual a sua corrente literária? A que círculo pertenceria? Que influências lhe encontramos? Que fenómenos socio-literários?... não sei de angustiado não saber, logo a mim que tenho a cronologia, o tempo, como matriz de pensamento.

Depois há aqueles não-personagens… não, não falo de um qualquer anti-personagem que esse precisamente por “anti” é exagerado e por exagerado personagem. No caso de Agustina são ser e não ser, são vida doce e brutal, saem de tugúrios sem qualquer das convenções que permitem ser vivido nas páginas duma obra. Contraditórios, mas de contraditórios estão os livros cheios; normais, mas gente normal é precisamente aquela de quem por anti-personagem se diz ser personagem. Os de Agustina são sem heroísmo, não se deixam à nossa paixão porque numa página nobres, noutra vilãos, mas sem exageros, tal qual a gente que somos. Exagero é loucura e a loucura é o que dela fazemos, mas sempre e sempre para-humana. E afinal não é isso a vida? Não somos isso cada um? Não tentamos eternamente superar essa inerente mediocridade? Não estamos umas vezes além do bem e outras aquém do mal?

Talvez por isso Agustina inquieta. Nos seus livros existem pessoas, sem artifícios literários, sem exageros estilísticos, pessoas, apenas pessoas, nem heróis nem anti-heróis. Acostumados que estamos desde Homero a seres simultaneamente bons e maus, amantes e cruéis, de braços a Penélope e de espada aos pretendentes, de beijos e sangue, esperamos desses ficcionados seres que sejam capazes de superar-se e superando-se nos superaram. Podem ser imperfeitos, mas superando, bons e maus, superando, cruéis, superando, amantes, superando. E superando superam essa vida nossa tão rasteiramente vivida.

No fundo somos todos como aquele Poema em Linha Reta: tantas vezes reles, tantas porcos, tantas vis, irresponsavelmente parasitas, indesculpavelmente sujos. Mas esperando que um qualquer autor crie personagens que possam dar transcendente heroísmo à porcaria, vileza, parasitismo e sujidade… e não, os de Agustina não nos fazem esse favor, são gente, apenas gente como a gente que os lê, são tudo isso, mas sem sublime e, sem sublime, já não justificam o crime, o nosso: Não nos servem, servem-se de nós.

Morreu Agustina, inquietude à sua alma, a que não nos serviu mas de nós foi servida.



Luís Novais

quarta-feira, 8 de maio de 2019

DUMA CASA DE RAMIRES ATÉ UM CERCO A LISBOA

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Curiosos, os caminhos das releituras e das nossas evoluções analíticas. Li "História do Cerco de Lisboa" quando Saramago o publicou em 1989; já então e há muito lera também "A Ilustre Casa de Ramires", de Eça. Nesse tempo não estabeleci qualquer ponte entre as duas obras, mas agora e relendo o "Cerco" parece-me impossível entendê-lo, sem leitura paralela do segundo. Até o nome dos personagens está cheio de reminiscencias: Ramires de apelido, o aristocrata que é Portugal, Raimundo de nome próprio, o plebeu revisor, Portugal não menos. Ambos escrevendo e procurando no passado, o que foram, à força da memória, ou o que poderiam ter sido, à duma simples palavra "não". São dois portugais, frente a frente, cada um do seu tempo: O primeiro levantando-se dum ultimatum e duma bancarrota, o segundo acabado de receber asfixiante abraço europeu. 

E se o texto da História seguisse o da história? E se fosse não onde foi sim?



segunda-feira, 8 de abril de 2019

"FERNANDO PESSOA Y EL MITO EN LA CULTURA PORTUGUESA"



Comparto el texto de la conferencia que di el 26 de julio del 2018 en la Feria Internacional del Libro de Lima. Organizada por la embajada de Portugal y por la Asociación de Profesores de Lengua Portuguesa en Perú.

"FERNANDO PESSOA Y EL MITO EN LA CULTURA PORTUGUESA"
(texto em castelhano)

Bajar aquí el PDF - descarregar aqui o PDF

sábado, 30 de março de 2019

REVOLUÇÕES GEMINADAS?




Tese que defendi na Universidade do Minho (Instituto de Ciências Sociais) no passado dia 7 de março de 2019.
Para quem esteja interessado no tema, abordo o impacto internacional do 25 de Abril, enfocando-me depois no caso peruano, nesse momento a viver também um período revolucionário de origem militar: o Gobierno Revolucionario de la Fuerza Armada.
Agradeço a todos os que me apoiaram neste trabalho, particularmente à minha família e à orientadora, Doutora Fátima Ferreira. Sem esse apoio, o resultado não teria sido possível.


quinta-feira, 14 de fevereiro de 2019

DA RECENTE POLÉMICA SOBRE PESSOA

Pessoa era isso mesmo, uma pessoa, naturalmente com todos os constrangimentos inerentes à condição humana, à qual nem sequer os grandes génios escapam. Não escreveu para agradar a nenhum tipo de pós-modernos ou a correntes de pensamento mais ou menos dominantes na actualidade. Nem sequer quis ser popular e por isso não foi pelo caminho da afirmação fácil e com muito potencial replicador. Foi genial, mas foi um homem, com defeitos e muitas virtudes intelectuais e literárias. Nesta óbvia humanidade, porém, não é legítimo atribuir-lhe pensamentos que, claramente, não teve e, entre esses, seria ridículo se não fosse desconhecimento da sua obra, dizê-lo defensor da escravatura e, pior ainda, seu “acérrimo defensor”.


Depois da polémica em torno de Padre António Vieira, figura grande das nossas letras, humanista e defensor dos grupos mais desprotegidos da sociedade do seu tempo, acusado recentemente de esclavagista, surpreendemo-nos agora com idêntica controvérsia em torno de Fernando Pessoa.

Segundo um jornal cabo-verdiano, logo secundado por Luzia Moniz, presidente da Plataforma para o Desenvolvimento da Mulher Africana, Pessoa teria tido, não só afirmações racistas como, até, defensoras da escravatura.

Uma acusação destas, sobre quem deixou tantos testemunhos do seu pensamento, não pode ser feita de forma ligeira. Tenho muito respeito pelo ativismo e reconheço o marcante papel de defensores dos direitos humanos, como Mamadou Ba, com o qual estive em desacordo quando lançou a polémica sobre o padre António Vieira. Não conheço o trabalho de Luzia Moniz nem a sua plataforma, mas estou certo de que também desenvolverá um trabalho meritório na defesa dos direitos da mulher, num continente marcado pelo machismo mais primário.

Mas nestes casos, um como a outra, entraram claramente num campo que não dominam, ou dominam apenas superficialmente. Não me vou agora referir ao caso do pregador seiscentista, mas ao de Pessoa.

Segundo o Diário de Notícias, a activista africana terá dito: “Não sei se Pessoa é ou não bom poeta. Isso pouco interessa para o caso. A minha inquietação é o uso da CPLP para branquear o pensamento dum acérrimo defensor do mais hediondo crime contra a humanidade: A escravatura”. Realce-se a franqueza: Luzia Moniz reconhece não conhecer a obra, a ponto de não saber sequer se é ou não um bom poeta, mas logo a seguir afirma-o como “acérrimo defensor” da escravatura. Ora, dum acérrimo espera-se quase uma fixação, uma afirmação contínua e continuada. A mim, por exemplo, que sou um acérrimo anti-racista e defensor dos Direitos Humanos, não é difícil encontrar constantes intervenções relativas as estes dois temas, bastando para isso dar uma espreitadela à minha obra publicada e às redes sociais em que participo. Um “acérrimo” é isso mesmo.

Ora, se consultarmos o arquivo de Fernando Pessoa, uma base de dados dirigida por Leonor Amaral, contendo toda ou quase toda a obra de Pessoa, e fazendo aí uma pesquisa pela palavra “escravatura”, encontramo-la em onze textos, divididos pelos seguintes heterónimos: dois de António Mora, dois de Álvaro de Campos, um de Bernardo Soares, um de Raphael Baldaia e cinco do próprio Pessoa.

Comprovando a vastidão da obra pessoana, só de temas este arquivo está dividido em vinte e dois. De entre estes, apenas um deles, a poesia de Álvaro de Campos, conta com 320 títulos. Não me dei ao trabalho de contar a totalidade, mas se considerarmos para cada tema uma média de cem textos, temos um total de 2.200. Ou seja, 2.200 escritos, entre os quais a escravatura é referia em onze: 0,005% do total da sua obra. Para um “acérrimo defensor” da escravatura, convenhamos ser menos do que muito pouco.

Feita a comprovação estatística, partamos agora para a mais importante, ou seja, a qualitativa. Que nos dizem sobre a escravatura?

Em “Todo o processo civilizacional”, não datado e assinado por António Mora, analisa-se a dialética civilizacional, um pouco ao estilo do coevo Spengler, concluindo nascer toda a civilização “da decadência de uma civilização anterior”. Em seguida observa-se como o cristianismo continha, em si, as sementes da decadência do Império Romano, por ir

contra os princípios de acentuada desigualdade que eram basilares no paganismo; contra o princípio da escravatura, contra o da subordinação da mulher ao homem; contra o da subordinação de povo a povo. No que atitude mística e cosmopolita, o cristianismo vai contra o basilar conceito da cidade-estado, sobre o qual a vida antiga assentava; vai contra o conceito de patriotismo, tal qual a alma antiga o concebia; vai contra o princípio guerreiro.

Trata-se, portanto, dum texto de análise social, assinado por um personagem (que os heterónimos são isso mesmo), participando num debate muito em voga na época: o do processo civilizacional e a sua decadência. Vários filósofos desse tempo entraram de frente neste tipo de análise, o mais famoso dos quais foi Oswald Spengler (1880-1936), nascido e morto quase em simultâneo com Pessoa, cuja obra mais famosa, “O Declínio do Ocidente”, foi publicada em 1918. É impossível encontrar aqui qualquer apologia da escravatura, pelo que, dos onze textos onde esta poderia ter sido feita, já só ficamos com dez.

Seguindo a ordem dos “autores”, o segundo artigo de António Mora intitula-se “Com o assédio e a decadência da religião cristista”, considerado pelo Arquivo de Pessoa como sendo provavelmente de 1917. Trata-se dum trecho claramente sequenciado ao anterior e que se deveria destinar a fazer corpo numa obra sociológica sobre o processo civilizacional. Aqui, a referência à escravatura é feita na mera perspetiva analítica dum sociólogo, na busca de compreender o modelo de organização social e mental greco-romano:

os pagãos tinham a noção do Limite. Foram os primeiros a tê-la. Em tudo que foi deles essa noção se releva. Na sua estatuária, que é de homens compreendores da forma, na sua literatura onde, pela primeira vez no mundo aparece a noção da unidade, da construção, da organicidade da obra de arte, na sua vida social, onde de princípio se assenta a sociedade na base de uma rigorosa distinção de classes, qual a que a escravatura marca, e que representa uma noção, se alguma coisa, rigorosa de mais, exageradamente nítida, dos factos sociais.

Ou seja, uma vez mais, a referência à escravatura não é feita em termos apologéticos, tão só de análise histórica, num contexto onde Pessoa parecia nitidamente interessado em encontrar uma dialética. Note-se a data provável deste texto (1917) e repare-se que se inseria perfeitamente no contexto dos debates empreendidos pelas ciências sociais desse tempo. Ou seja, para encontrar alguma “defesa acérrima” da escravatura, já só nos restam nove textos.

Continuando por heterónimos, vejamos agora o que nos diz “Raphael Baldaia” no único parágrafo onde refere a escravatura, inserido no documento intitulado “Princípios de Metafísica Esotérica”, também sem data. Aqui, procede-se a uma reflexão sobre o movimento religioso chamado Teosofia: “Essa religião pretende ser a da Verdade; se não tivesse essa pretensão não seria uma religião. Pretende estar por detrás de todas as religiões”. 

Buscando fazer uma crítica deste movimento, a qual não nos interessa para o objetivo deste artigo, a determinado passo Raphael Baldaia afirma o seguinte: “O vagar que as classes superiores tinham nos tempos da escravatura torna possível uma extensa investigação científica”. Isto é mera análise histórica, não há compêndio de História contemporâneo que não diga isso mesmo referindo-se ao aparecimento da filosofia entre os gregos. Ou seja, uma vez mais, zero de apologia, e aí vão 8 textos.

Entremos agora em Álvaro de Campos, que assina dois. O primeiro é “Ultimatum”, publicado no Nº1 de “Portugal Futurista” (1917). Num estilo apologético, quase profético, semelhante ao de “Ode Triunfal” (1914), do mesmo heterónimo, processa uma crítica feroz a diversas nações, começando por afirmar:

Falência geral de tudo por causa de todos!
Falência geral de todos por causa de tudo!
Falência dos povos e dos destinos — falência total!
Desfile das nações para o meu Desprezo!


Em seguida concretiza essa crítica (sublinhado meu): 
Tu organização britânica, com Kitchener no fundo do mar desde o princípio da guerra!
(It's a long, long way to Tipperary, and a jolly sight longer way to Berlin!)
Tu, cultura alemã, Esparta podre com azeite de cristianismo e vinagre de nietzschização, colmeia de lata, transbordeamento imperialóide de servilismo engatado!
Tu, Áustria-súbdita, mistura de sub-raças, batente de porta tipo K!
Tu, Von Bélgica, heróica à força, limpa a mão à parede que foste!
Tu, escravatura russa, Europa de malaios, libertação de mola desoprimida porque se partiu!
Tu, 'imperialismo' espanhol, salero em política, com toureiros de sambenito nas almas ao voltar da esquina e qualidades guerreiras enterradas em Marrocos !
Tu, Estados Unidos da America, síntese-bastardia da baixa-Europa, alho da açorda transatlântica, pronúncia nasal do modernismo inestético!
E tu, Portugal-centavos, resto de Monarquia a apodrecer República, extrema-unção-enxovalho da Desgraça, colaboração artificial na guerra com vergonhas naturais em África!
         
Ou seja, novamente não encontramos qualquer apologia esclavagista, com a “escravatura” usada numa perspetiva meramente metafórica mas profundamente crítica. Ficamos, então, com sete textos.

O último de Álvaro de Campos, é uma entrevista imaginária de 1919, intitulada “Álvaro de Campos, Engenheiro Naval e Poeta Futurista”, sobre “A situação da Inglaterra — A situação da Europa — A situação de Portugal”, com “Pontos de vista originalíssimos”. Num dado momento, o entrevistado faz uma afirmação e leva o entrevistador a exclamar: “Mas isso é bolchevismo”. Campos responde da seguinte forma:

Não é, e é. Não é bolchevismo porque nada vai aqui de interesse pelas plebes, pelos operários, que devem ser reduzidos a uma condição de escravatura ainda mais intensa e rígida que aquilo a que eles chamam a ‘escravatura’ capitalista. A massa humana deve ser compelida a amalgamar-se numa classe composta do actual proletariado e dos restos das classes médias.

Pela voz dum heterónimo, recorde-se um engenheiro dominado pelo pensamento matemático, apologista do progresso e tocado por uma espécie de eficiência amoral (pelo menos nesta sua fase futurista), não está aqui mínima apologia, menos ainda da escravatura clássica. Os escritores servem-se dos seus personagens para fazer crítica social, dizer o contrário seria afirmar, por exemplo, que Eça subscrevia o seu Padre Amaro, ou o seu Abranhos e, já agora eu, os meus Parricida, Alípio Traques, ou o major Fangueira Fagundes. Se algo se encontra aqui, é uma crítica à massificação do trabalho, espécie de “escravatura”, usando para isso um personagem que a defende. E vão seis.

Entremos agora em Bernardo Soares, o heterónimo de “O Livro do desassossego”, um quase Pessoa. “Estou num dia que me pesa” é, aliás, um trecho dessa mesma obra, onde Soares afirma:

Estou num dia em que me pesa, como uma entrada no cárcere, a monotonia de tudo. A monotonia de tudo não é, porém, senão a monotonia de mim. Cada rosto, ainda que seja o de quem vimos ontem, é outro hoje, pois que hoje não é ontem. Cada dia é o dia que é, e nunca houve outro igual no mundo. Só em nossa alma está a identidade - a identidade sentida, embora falsa, consigo mesma - pela qual tudo se assemelha e se simplifica. O mundo é coisas destacadas e arestas diferentes; mas, se somos míopes, é uma névoa insuficiente e contínua.

Com este sentimento termina manifestando o desejo de fugir, para logo chegar a uma conclusão:

A escravatura é a lei da vida, e não há outra lei, porque esta tem de cumprir-se, sem revolta possível nem refúgio que achar. Uns nascem escravos, outros tornam-se escravos, e a outros a escravidão é dada. O amor cobarde que todos temos à liberdade - que, se a tivéssemos, estranharíamos, por nova, repudiando-a - é o verdadeiro sinal do peso da nossa escravidão.

Apologia? Não, obviamente. É desnecessário ser um mediano hermeneuta para ver a clara utilização metafórica da ideia de “escravatura” transportada para a vida actual. E, se não me engano, sobram-nos cinco textos para encontrar essa tal “acérrima defesa”, um número que, por si só, já a nega.

Os que ficam são, talvez, os mais interessantes, porquanto são assinados pelo próprio Pessoa, podendo, assim, ser com mais propriedade considerados como pensamento próprio e não dos seus auto-personagens.

A guerra actual é uma guerra entre dois princípios sociológicos”, diz-nos o título de um deles. O caracter sociológico da análise está expresso no próprio título, o documento não está datado mas, pelo tema, compreende-se claramente estar algures entre 1914 e 1918, o período da I Guerra mundial. Interessa-me aqui analisar apenas como e porquê usa o conceito de escravatura e, por isso, vou direto a essa parte, onde começa por defender uma união de esforços, uma aliança, entre Portugal e Espanha, para logo denunciar os inimigos desse objectivo e concluir

Olhemos bem para estes inimigos. Mas há quem tenha a coragem de os combater? Duvido. Duvido da alma ibérica bem formada capaz de compreender que é preciso combater ao mesmo tempo o catolicismo e a maçonaria, tão vergadas ao peso de antigas escravaturas as almas ibéricas se encontram (sublinhado meu).

A clareza da inexistência de apologia esclavagista nesta passagem escusa-me a mais comentários. Vejamos então os restantes quatro escritos.

Um deles é parte de “O Templo de Jano”, redigido numa época em que Pessoa andava obcecado por encontrar paradoxos. Numa passagem do seu diário de 26 de fevereiro de 1913, sabemos ter decidido nessa manhã “escrever em português ‘O Templo de jano’”. Segundo os mesmos registos, no dia 23 lembrou-se de “alguns paradoxos menores”. A 24, “De manhã e durante o dia tive várias ideias para paradoxos”; no próprio dia 26 teve  “Várias ideias paradoxais” e no seguinte “Tive (…) várias ideias para paradoxos; mas não foram muitas nem foram extraordinárias”.

Com esta bagagem, entremos agora no texto em questão, “Caímos na teorização estéril”. É muito breve (apenas 372 palavras em quatro parágrafos), e Pessoa parece em busca de encontrar uma síntese entre a Democracia dirigida pelas elites, um pouco ao estilo platónico, em que parecia acreditar, “conservando o indispensável domínio das classes dirigentes, mas não pondo um inútil dique à ambição popular, que sobe e monta”. A dialética do “Poder e o Povo” (para usar um título de Vasco Pulido Valente), era recorrente nessa época, quando a Europa parecia ter chegado a um beco de saída estreita, mais ainda Portugal, atolado nas consecutivas instabilidades do fim da monarquia e da quase ingovernabilidade da I República. Lembremos como Pessoa julgou ter encontrado em Sidónio Pais essa síntese, entre liderança e ambição popular.

A referência à escravatura encontra-se aqui:

Caímos na teorização estéril, seguindo, como a fogos-fátuos, todas as teorias que não são mais que as exalações letais da civilização decomposta. Desde a teoria da democracia, concebida à moderna, e fora da sua coexistência com o princípio corrigente da escravatura, como na antiguidade.

Uma apologia de Democracia com escravatura em pleno século XX? Seria preciso ter mais imaginação do que Pessoa para concluir tal coisa. O que está em causa é a descrença num poder popular sem liderança das elites e o exemplo da antiguidade é claramente dado nessa perspetiva metafórica. Num período da sua vida, como vimos, em que parece obstinado com paradoxos (se é que não esteve até ao fim), Pessoa vê a Democracia instável do seu tempo como um paradoxo entre a liderança e o caos. O trecho é pequeno para revelar a sua síntese, mas sabemos bem algumas das que foi encontrado, nomeadamente em Sidónio Pais. Esta referência à escravatura como mitigadora duma democracia caótica durante a época clássica, não é mais do que uma metáfora para aquilo que ele mesmo afirma e já citei: “conservando o indispensável domínio das classes dirigentes, mas não pondo um inútil dique à ambição popular”.

O texto “Para que serve a liberdade às plebes?”, datado de 1917, é ainda mais pequeno (apenas 277 palavras) e parece enquadrado na mesma linha. Podemos discordar do pensamento expresso, e seria muito fácil se caíssemos no erro de não o enquadrar social e cronologicamente. De qualquer forma, trata-se dum excerto tão breve que se torna completamente abusivo tirar conclusões, sobretudo tratando-se de tão ínfima partícula duma obra tão vasta. Além disso, patenteia muito mais uma tentativa de pensamento sociológico, do que ideológico.

As plebes são, por sua natureza, aquela parte da sociedade sobre quem incide, quer por divisão social, como a escravatura, quer por compulsão económica, o trabalho manual ou com ele relacionado, o trabalho do artífice.

Até aqui, portanto, nenhuma apologia, apenas uma definição de “plebe” onde inclui a escravatura, no passado, e o trabalho manual, no presente. Prossegue, defendendo não a liberdade mas a ausência de opressão para essa “plebe”:

A que serve ao artífice a liberdade? O que [é] à plebe devido não é a liberdade, é a ausência de opressão, que é devida a todos, e o seu direito natural de homens. É esse o direito do homem; esse, e não a liberdade. A que se reduz esse direito? O de não haver mais ingerência na vida das plebes do que a natural; e a natural é a sua condição definida de escravos no tempo da escravatura; e a sua condição económica de compelidos ao trabalho quotidiano e manual, no tempo da chamada concorrência (da concorrência universal).

Trata-se duma visão datada, não compete aqui comentá-la, exceto para concluir estarmos muito longe duma defesa da escravatura. Além disso é um pequeníssimo texto duma vasta obra, provavelmente destinado a integrar algum trabalho, ou a fazer parte de algum pensamento de algum personagem nunca chegado a nascer. Sei por experiência própria como o caderno dum escritor está cheio de ideias e pensamentos, não próprios mas destinados aos seus personagens e, geralmente, quando mais tarde integrados no contexto da obra, servem de crítica e não de apologia. De qualquer forma, como sabemos, Pessoa tendia para o elitismo intelectual, nisso seguia bem a tradição platónica patente em muitos aspectos da sua obra. Pode bem este texto corresponder a pensamento próprio, do que não se trata é duma apologia da escravatura.

Sobram-nos dois textos, ou seja, pela estimativa inicial, 0,0009% da sua obra. Deixei-os para o fim por serem também aqueles que estiveram na base das polémicas lançadas tanto por Luzia Moniz, como pelo jornal cabo-verdiano.

Um desses textos é claramente de sociologia política e, na crítica feita, confunde-se a análise com a opinião do autor. Intitulado “O imperialismo de expansão tem um sentido normal”, a busca é claramente para determinar quais são os factores legitimadores usados pelos processos imperialistas.

O imperialismo de expansão tem um sentido normal, para que cumpra os seus fins civilizacionais, em ir ocupar territórios, ou desertos, ou povoados apenas por povos fora da civilização. Esse imperialismo comporta três graus, sendo mais justificado no primeiro que no segundo, no segundo que no terceiro.

Pessoa encontra três factores correspondentes a outros tantos tipos de imperialismo, e é no segundo onde refere a escravatura:

Em segundo lugar, há a ocupação de territórios habitados por povos, não já selvagens ou incivilizáveis, mas degenerados de uma civilização antiquíssima. (…) Recordemo-nos sempre que o fim de colonizar ou ocupar territórios não é civilizar a gente que lá está, mas sim levar para esses territórios elementos de civilização. O fim não é altruísta, mas puramente egoísta e civilizacional. É o prolongamento da sua própria civilização que o imperialismo expansivo busca e deve buscar; não é, de modo algum, as vantagens que daí possam advir para os habitantes desse país. A escravatura é lógica e legítima; um zulu ou um landim não representa coisa alguma de útil neste mundo. Civilizá-lo, quer religiosamente, quer de outra forma qualquer, é querer-lhe dar aquilo que ele não pode ter. O legítimo é obrigá-lo, visto que não é gente, a servir os fins da civilização. Escravizá-lo é que é lógico, o degenerado conceito igualitário, com que o cristianismo envenenou os nossos conceitos sociais, prejudicou, porém, esta lógica atitude. Povos, como o inglês, hipocritizaram o conceito, e assim conseguiram servir a civilização.

Note-se que o texto é analítico e não apologético, Pessoa está nitidamente em busca de criar uma teoria do imperialismo, encontrando três modelos, um dos quais é o da ocupação de territórios ocupados por outros povos. Neste contexto, o pensamento é expresso não segundo o próprio, mas segundo aqueles que praticam esse tipo de imperialismo. Neste caso, o “sociólogo” sai de si mesmo, criando um distanciamento e falando pela cabeça do colonizador-imperialista. A questão semântica é, aqui, essencial: Se um sociólogo afirma legitimar-se a escravatura pelo princípio da superioridade duma civilização sobre a outra, isso é completamente diferente dum político ou ideólogo dizerem textualmente o mesmo. No primeiro caso, analisa-se o porquê, no segundo, defende-se o modelo. Então, este parágrafo descontextualizado da intenção geral do texto, infere uma conclusão completamente errada; contextualizando-o, já nem digo na obra mas apenas em si mesmo, percebemos não estarmos frente a qualquer apologia da escravatura, como foi afirmado.

Deixei para o final o texto mais polémico: “Régie, Monopólio, Liberdade”. Curiosamente trata-se da expressão dum pensamento económico sobre liberdade de mercado e intervenção do Estado e, por isso, o objeto deste artigo não tem nada que ver com a destacada questão da escravatura. Mas é aqui onde Pessoa fez a afirmação que mais brado deu na presente polémica:

Quem nos diz que a escravatura não seja uma lei natural da vida das sociedades sãs? Ninguém o pode dizer, porque ninguém sabe quais são as leis naturais da vida das sociedades e essa pode portanto ser uma delas.

Parece chocante, mas (certamente não por má fé mas pelo desconhecimento de quem apenas leu uma citação, não o próprio texto e, menos ainda, a obra) omite-se ao que veio esta afirmação e isso está precisamente na abertura do parágrafo em questão:

A lei aparentemente mais justa, a lei mais de acordo com os nossos sentimentos de equidade, pode ser contrária a qualquer lei natural, pois pode bem ser que as leis naturais nada tenham com a nossa “justiça” e em nada se ajustem às nossas ideias do que é bom e justo. Por o que conhecemos da operação de algumas dessas leis — por exemplo, a da hereditariedade —, a Natureza parece frequentemente timbrar em ser injusta e tirânica. 

Temos, então, uma oposição entre “a lei mais de acordo com os nossos sentimentos de equidade” (ou seja, a que é submetida à moral) e a lei natural, isto é aquela que “parece frequentemente timbrar em ser injusta e tirânica”. E neste e só neste contexto, Pessoa pergunta se essa lei natural (injusta e tirânica) não admitirá a escravatura, ao contrário, fica claro, da lei humana. Eu diria que sim, claramente a lei natural, tão brutal ela é, integraria a escravatura e até coisas ainda piores do que a escravatura, por isso sou humanista e contrário a qualquer espécie de darwinismo social.

Veja-se, então, como até o texto aparentemente mais chocante e também o mais usado pelos próceres desta polémica para provarem uma pretensa defesa da escravatura em Pessoa, não tem absolutamente o caráter que lhe quiseram dar, mas precisamente o contrário.

Em conclusão, é absolutamente falso afirmar ter Pessoa sido um “acérrimo defensor” da escravatura. Primeiro, porque a estatística dos seus milhares de textos, na qual esta questão ocupa uma ínfima parte, desmente o “acérrimo”. Segundo, porque a análise qualitativa demonstra que, além de não ser acérrimo como vimos, não era sequer defensor. Das suas poucas referências só podemos concluir pela utilização metafórica, nuns casos, e analítica ou condenatória, nos outros.

Pessoa era isso mesmo, uma pessoa, naturalmente com todos os constrangimentos inerentes à condição humana, à qual nem sequer os grandes génios escapam. Não escreveu para agradar a nenhum tipo de pós-modernos ou a correntes de pensamento mais ou menos dominantes na actualidade. Nem sequer quis ser popular e por isso não foi pelo caminho da afirmação fácil e com muito potencial replicador. Foi genial, mas foi um homem, com defeitos e com muitas virtudes intelectuais e literárias. Nesta óbvia humanidade, porém, não é legítimo atribuir-lhe pensamentos que, claramente, não teve e, entre esses, seria ridículo se não fosse desconhecimento da sua obra, dizê-lo defensor da escravatura e, pior ainda, seu “acérrimo defensor”.

E quem, se não ele, pela pena de Álvaro de Campos, para se afirmar pessoa? Apetece-me acabar com esse poema, também um paradigma de vida:

Nunca conheci quem tivesse levado porrada.
Todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo.
E eu, tantas vezes reles, tantas vezes porco, tantas vezes vil,
Eu tantas vezes irrespondivelmente parasita,
Indesculpavelmente sujo,
Eu, que tantas vezes não tenho tido paciência para tomar banho,
Eu, que tantas vezes tenho sido ridículo, absurdo,
Que tenho enrolado os pés publicamente nos tapetes das etiquetas,
Que tenho sido grotesco, mesquinho, submisso e arrogante,
Que tenho sofrido enxovalhos e calado,
Que quando não tenho calado, tenho sido mais ridículo ainda;
Eu, que tenho sido cómico às criadas de hotel,
Eu, que tenho sentido o piscar de olhos dos moços de fretes,
Eu, que tenho feito vergonhas financeiras, pedido emprestado sem pagar,
Eu, que, quando a hora do soco surgiu, me tenho agachado,
Para fora da possibilidade do soco;
Eu, que tenho sofrido a angústia das pequenas coisas ridículas,
Eu verifico que não tenho par nisto tudo neste mundo.
Toda a gente que eu conheço e que fala comigo
Nunca teve um acto ridículo, nunca sofreu enxovalho,
Nunca foi senão príncipe — todos eles príncipes — na vida...
Quem me dera ouvir de alguém a voz humana
Que confessasse não um pecado, mas uma infâmia;
Que contasse, não uma violência, mas uma cobardia!
Não, são todos o Ideal, se os oiço e me falam.
Quem há neste largo mundo que me confesse que uma vez foi vil?
Ó príncipes, meus irmãos,
Arre, estou farto de semideuses!
Onde é que há gente no mundo?
Então sou só eu que é vil e erróneo nesta terra?
Poderão as mulheres não os terem amado,
Podem ter sido traídos — mas ridículos nunca!
E eu, que tenho sido ridículo sem ter sido traído,
Como posso eu falar com os meus superiores sem titubear?
Eu, que tenho sido vil, literalmente vil,
Vil no sentido mesquinho e infame da vileza.

Álvaro de Campos, s.d.





Luís Novais