Pessoa era isso mesmo, uma pessoa,
naturalmente com todos os constrangimentos inerentes à condição humana, à qual
nem sequer os grandes génios escapam. Não escreveu para agradar a nenhum tipo
de pós-modernos ou a correntes de pensamento mais ou menos dominantes na
actualidade. Nem sequer quis ser popular e por isso não foi pelo caminho da afirmação fácil e com muito potencial replicador. Foi genial, mas foi
um homem, com defeitos e muitas virtudes intelectuais e literárias. Nesta óbvia
humanidade, porém, não é legítimo atribuir-lhe pensamentos que, claramente, não teve e, entre esses, seria ridículo se não fosse desconhecimento da sua
obra, dizê-lo defensor da escravatura e, pior ainda, seu “acérrimo defensor”.
Depois da
polémica em torno de Padre António Vieira, figura grande das nossas letras,
humanista e defensor dos grupos mais desprotegidos da sociedade do seu tempo,
acusado recentemente de esclavagista, surpreendemo-nos agora com idêntica
controvérsia em torno de Fernando Pessoa.
Segundo um
jornal cabo-verdiano, logo secundado por Luzia Moniz, presidente da Plataforma
para o Desenvolvimento da Mulher Africana, Pessoa teria tido, não só afirmações
racistas como, até, defensoras da escravatura.
Uma
acusação destas, sobre quem deixou tantos testemunhos do seu pensamento, não
pode ser feita de forma ligeira. Tenho muito respeito pelo ativismo e reconheço
o marcante papel de defensores dos direitos humanos, como Mamadou Ba, com o
qual estive em desacordo quando lançou a polémica sobre o padre António Vieira.
Não conheço o trabalho de Luzia Moniz nem a sua plataforma, mas estou certo de
que também desenvolverá um trabalho meritório na defesa dos direitos da mulher,
num continente marcado pelo machismo mais primário.
Mas nestes
casos, um como a outra, entraram claramente num campo que não dominam, ou
dominam apenas superficialmente. Não me vou agora referir ao caso do pregador
seiscentista, mas ao de Pessoa.
Segundo o Diário
de Notícias, a activista africana terá dito: “Não sei se Pessoa é ou não
bom poeta. Isso pouco interessa para o caso. A minha inquietação é o uso da
CPLP para branquear o pensamento dum acérrimo defensor do mais hediondo crime
contra a humanidade: A escravatura”. Realce-se a franqueza: Luzia Moniz
reconhece não conhecer a obra, a ponto de não saber sequer se é ou não
um bom poeta, mas logo a seguir afirma-o como “acérrimo defensor” da
escravatura. Ora, dum acérrimo espera-se quase uma fixação, uma afirmação
contínua e continuada. A mim, por exemplo, que sou um acérrimo anti-racista e
defensor dos Direitos Humanos, não é difícil encontrar constantes intervenções
relativas as estes dois temas, bastando para isso dar uma espreitadela à minha
obra publicada e às redes sociais em que participo. Um “acérrimo” é isso mesmo.
Ora, se
consultarmos o arquivo de Fernando Pessoa,
uma base de dados dirigida por Leonor Amaral, contendo toda ou quase toda a
obra de Pessoa, e fazendo aí uma pesquisa pela palavra “escravatura”,
encontramo-la em onze textos, divididos pelos seguintes heterónimos: dois de
António Mora, dois de Álvaro de Campos, um de Bernardo Soares, um de Raphael
Baldaia e cinco do próprio Pessoa.
Comprovando
a vastidão da obra pessoana, só de temas este arquivo está dividido em vinte e
dois. De entre estes, apenas um deles, a poesia de Álvaro de Campos, conta com
320 títulos. Não me dei ao trabalho de contar a totalidade, mas se
considerarmos para cada tema uma média de cem textos, temos um total de 2.200.
Ou seja, 2.200 escritos, entre os quais a escravatura é referia em onze: 0,005%
do total da sua obra. Para um “acérrimo defensor” da escravatura, convenhamos ser
menos do que muito pouco.
Feita a
comprovação estatística, partamos agora para a mais importante, ou seja, a
qualitativa. Que nos dizem sobre a escravatura?
Em “Todo o processo civilizacional”,
não datado e assinado por António Mora, analisa-se a dialética civilizacional, um
pouco ao estilo do coevo Spengler, concluindo nascer toda a civilização “da decadência de uma civilização anterior”. Em seguida
observa-se como o cristianismo continha, em si, as sementes da decadência do
Império Romano, por ir
contra os princípios de acentuada desigualdade que eram basilares no
paganismo; contra o princípio da escravatura, contra o da subordinação da
mulher ao homem; contra o da subordinação de povo a povo. No que atitude
mística e cosmopolita, o cristianismo vai contra o basilar conceito da
cidade-estado, sobre o qual a vida antiga assentava; vai contra o conceito de
patriotismo, tal qual a alma antiga o concebia; vai contra o princípio
guerreiro.
Trata-se,
portanto, dum texto de análise social, assinado por um personagem (que os
heterónimos são isso mesmo), participando num debate muito em voga na época: o
do processo civilizacional e a sua decadência. Vários filósofos desse tempo
entraram de frente neste tipo de análise, o mais famoso dos quais foi Oswald
Spengler (1880-1936), nascido e morto quase em simultâneo com Pessoa, cuja obra
mais famosa, “O Declínio do Ocidente”, foi publicada em 1918. É impossível
encontrar aqui qualquer apologia da escravatura, pelo que, dos onze textos onde
esta poderia ter sido feita, já só ficamos com dez.
Seguindo a
ordem dos “autores”, o segundo artigo de António Mora intitula-se “Com o assédio e a decadência da
religião cristista”, considerado pelo Arquivo de Pessoa como sendo provavelmente
de 1917. Trata-se dum trecho claramente sequenciado ao anterior e que se
deveria destinar a fazer corpo numa obra sociológica sobre o processo
civilizacional. Aqui, a referência à escravatura é feita na mera perspetiva
analítica dum sociólogo, na busca de compreender o modelo de organização social
e mental greco-romano:
os pagãos tinham a noção do Limite. Foram os primeiros a tê-la. Em tudo que
foi deles essa noção se releva. Na sua estatuária, que é de homens
compreendores da forma, na sua literatura onde, pela primeira vez no mundo
aparece a noção da unidade, da construção, da organicidade da obra de arte, na
sua vida social, onde de princípio se assenta a sociedade na base de uma
rigorosa distinção de classes, qual a que a escravatura marca, e que representa
uma noção, se alguma coisa, rigorosa de mais, exageradamente nítida, dos factos
sociais.
Ou seja, uma vez mais, a referência à escravatura não é feita em termos
apologéticos, tão só de análise histórica, num contexto onde Pessoa parecia
nitidamente interessado em encontrar uma dialética. Note-se a data provável
deste texto (1917) e repare-se que se inseria perfeitamente no contexto dos
debates empreendidos pelas ciências sociais desse tempo. Ou seja, para
encontrar alguma “defesa acérrima” da escravatura, já só nos restam nove
textos.
Continuando por heterónimos, vejamos agora o que nos diz “Raphael Baldaia”
no único parágrafo onde refere a escravatura, inserido no documento intitulado
“Princípios de Metafísica
Esotérica”, também sem data. Aqui, procede-se a uma reflexão sobre o movimento
religioso chamado Teosofia: “Essa religião pretende ser a da Verdade; se não
tivesse essa pretensão não seria uma religião. Pretende estar por detrás de
todas as religiões”.
Buscando fazer uma crítica deste movimento, a qual não nos interessa para o
objetivo deste artigo, a determinado passo Raphael Baldaia afirma o seguinte: “O
vagar que as classes superiores tinham nos tempos da escravatura torna possível
uma extensa investigação científica”. Isto é mera análise histórica, não há
compêndio de História contemporâneo que não diga isso mesmo referindo-se ao
aparecimento da filosofia entre os gregos. Ou seja, uma vez mais, zero de
apologia, e aí vão 8 textos.
Entremos
agora em Álvaro de Campos, que assina dois. O primeiro é “Ultimatum”, publicado no Nº1 de
“Portugal Futurista” (1917). Num estilo
apologético, quase profético, semelhante ao de “Ode Triunfal” (1914), do mesmo
heterónimo, processa uma crítica feroz a diversas nações, começando por
afirmar:
Falência geral de tudo por causa de todos!
Falência geral de todos por causa de tudo!
Falência dos povos e dos destinos — falência total!
Desfile das nações para o meu Desprezo!
Em seguida concretiza essa crítica (sublinhado meu):
Tu organização britânica, com Kitchener no fundo do mar desde o princípio
da guerra!
(It's a long, long way to Tipperary, and a jolly sight longer way to Berlin!)
Tu, cultura alemã, Esparta podre com azeite de cristianismo e vinagre de
nietzschização, colmeia de lata, transbordeamento imperialóide de servilismo
engatado!
Tu, Áustria-súbdita, mistura de sub-raças, batente de porta tipo K!
Tu, Von Bélgica, heróica à força, limpa a mão à parede que foste!
Tu, escravatura russa, Europa
de malaios, libertação de mola desoprimida porque se partiu!
Tu, 'imperialismo' espanhol, salero em política, com toureiros de sambenito
nas almas ao voltar da esquina e qualidades guerreiras enterradas em Marrocos !
Tu, Estados Unidos da America, síntese-bastardia da baixa-Europa, alho da
açorda transatlântica, pronúncia nasal do modernismo inestético!
E tu, Portugal-centavos, resto de Monarquia a apodrecer República,
extrema-unção-enxovalho da Desgraça, colaboração artificial na guerra com
vergonhas naturais em África!
Ou seja, novamente não encontramos qualquer apologia esclavagista, com a “escravatura”
usada numa perspetiva meramente metafórica mas profundamente crítica. Ficamos, então, com sete textos.
O último de Álvaro de Campos, é uma entrevista imaginária de 1919,
intitulada “Álvaro de Campos, Engenheiro Naval e Poeta Futurista”, sobre “A situação da Inglaterra — A
situação da Europa — A situação de Portugal”, com “Pontos de vista
originalíssimos”. Num dado momento, o
entrevistado faz uma afirmação e leva o entrevistador a exclamar: “Mas isso é
bolchevismo”. Campos responde da seguinte forma:
Não é, e é. Não é bolchevismo porque nada vai aqui de interesse pelas
plebes, pelos operários, que devem ser reduzidos a uma condição de escravatura
ainda mais intensa e rígida que aquilo a que eles chamam a ‘escravatura’
capitalista. A massa humana deve ser compelida a amalgamar-se numa classe
composta do actual proletariado e dos restos das classes médias.
Pela voz dum heterónimo, recorde-se um engenheiro dominado pelo pensamento
matemático, apologista do progresso e tocado por uma espécie de eficiência amoral (pelo menos nesta sua fase futurista), não está aqui mínima apologia, menos ainda
da escravatura clássica. Os escritores servem-se
dos seus personagens para fazer crítica social, dizer o contrário seria
afirmar, por exemplo, que Eça subscrevia o seu Padre Amaro, ou o seu Abranhos
e, já agora eu, os meus Parricida, Alípio Traques, ou o major Fangueira Fagundes. Se algo se
encontra aqui, é uma crítica à massificação do trabalho, espécie de
“escravatura”, usando para isso um personagem que a defende. E vão seis.
Entremos agora em Bernardo Soares, o heterónimo de “O Livro do
desassossego”, um quase Pessoa. “Estou num dia que me pesa” é, aliás, um trecho dessa mesma obra, onde Soares afirma:
Estou num dia em que me pesa, como uma entrada no cárcere, a monotonia de
tudo. A monotonia de tudo não é, porém,
senão a monotonia de mim. Cada rosto, ainda que seja o de quem vimos ontem, é
outro hoje, pois que hoje não é ontem. Cada dia é o dia que é, e nunca houve
outro igual no mundo. Só em nossa alma está a identidade - a identidade
sentida, embora falsa, consigo mesma - pela qual tudo se assemelha e se simplifica.
O mundo é coisas destacadas e arestas
diferentes; mas, se somos míopes, é uma névoa insuficiente e contínua.
Com este sentimento termina manifestando o desejo de fugir, para logo
chegar a uma conclusão:
A escravatura é a lei da vida, e não há outra lei, porque esta tem de
cumprir-se, sem revolta possível nem refúgio que achar. Uns nascem escravos, outros tornam-se escravos, e a outros a
escravidão é dada. O amor cobarde
que todos temos à liberdade - que, se a tivéssemos, estranharíamos, por nova,
repudiando-a - é o verdadeiro sinal do peso da nossa escravidão.
Apologia?
Não, obviamente. É desnecessário ser um mediano hermeneuta para ver a clara
utilização metafórica da ideia de “escravatura” transportada para a vida
actual. E, se não me engano, sobram-nos cinco textos
para encontrar essa tal “acérrima defesa”, um número que, por si só, já a nega.
Os que ficam são, talvez, os mais interessantes, porquanto são assinados
pelo próprio Pessoa, podendo, assim, ser com mais propriedade considerados como
pensamento próprio e não dos seus auto-personagens.
“A guerra actual é uma guerra entre dois princípios sociológicos”, diz-nos o título de um deles. O caracter sociológico da análise está expresso no próprio título,
o documento não está datado mas, pelo tema, compreende-se claramente estar
algures entre 1914 e 1918, o período da I Guerra mundial. Interessa-me aqui analisar apenas como e
porquê usa o conceito de escravatura e, por isso, vou direto a essa parte, onde
começa por defender uma união de esforços, uma aliança, entre Portugal e
Espanha, para logo denunciar os inimigos desse objectivo e concluir
Olhemos bem para estes inimigos. Mas há quem tenha a coragem de os
combater? Duvido. Duvido da alma
ibérica bem formada capaz de compreender que é preciso combater ao mesmo tempo
o catolicismo e a maçonaria, tão vergadas ao peso de antigas escravaturas
as almas ibéricas se encontram (sublinhado meu).
A clareza da inexistência de apologia esclavagista nesta passagem escusa-me
a mais comentários. Vejamos então os
restantes quatro escritos.
Um deles é parte de “O Templo de Jano”, redigido numa época em que Pessoa
andava obcecado por encontrar paradoxos. Numa passagem do seu diário
de 26 de fevereiro de 1913, sabemos ter decidido nessa manhã “escrever em
português ‘O Templo de jano’”. Segundo os mesmos registos, no dia 23 lembrou-se
de “alguns paradoxos menores”. A 24, “De
manhã e durante o dia tive várias ideias para paradoxos”; no próprio dia 26
teve “Várias ideias paradoxais” e no seguinte “Tive (…) várias ideias
para paradoxos; mas não foram muitas nem foram extraordinárias”.
Com esta bagagem, entremos agora no texto em questão, “Caímos na teorização estéril”. É muito breve (apenas 372 palavras em quatro parágrafos), e Pessoa
parece em busca de encontrar uma síntese entre a Democracia dirigida pelas
elites, um pouco ao estilo platónico, em que parecia acreditar, “conservando o
indispensável domínio das classes dirigentes, mas não pondo um inútil dique à
ambição popular, que sobe e monta”. A dialética do “Poder e o Povo” (para usar
um título de Vasco Pulido Valente), era recorrente nessa época, quando a Europa
parecia ter chegado a um beco de saída estreita, mais ainda Portugal, atolado
nas consecutivas instabilidades do fim da monarquia e da quase
ingovernabilidade da I República. Lembremos como Pessoa julgou ter encontrado em Sidónio Pais essa síntese,
entre liderança e ambição popular.
A referência à escravatura encontra-se aqui:
Caímos na teorização estéril, seguindo, como a fogos-fátuos, todas as
teorias que não são mais que as exalações letais da civilização decomposta.
Desde a teoria da democracia, concebida à moderna, e fora da sua coexistência
com o princípio corrigente da escravatura, como na antiguidade.
Uma apologia de Democracia com escravatura em pleno século XX? Seria preciso ter mais imaginação do que Pessoa para concluir tal
coisa. O que está em causa é a descrença num poder popular sem liderança das
elites e o exemplo da antiguidade é claramente dado nessa perspetiva
metafórica. Num período da sua vida, como vimos, em que parece obstinado com paradoxos
(se é que não esteve até ao fim), Pessoa vê a Democracia instável do seu
tempo como um paradoxo entre a liderança e o caos. O trecho é pequeno para
revelar a sua síntese, mas sabemos bem algumas das que foi encontrado, nomeadamente
em Sidónio Pais. Esta referência
à escravatura como mitigadora duma democracia caótica durante a época clássica,
não é mais do que uma metáfora para aquilo que ele mesmo afirma e já citei: “conservando
o indispensável domínio das classes dirigentes, mas não pondo um inútil dique à
ambição popular”.
O texto “Para que serve a liberdade às plebes?”, datado de 1917, é ainda mais pequeno
(apenas 277 palavras) e parece enquadrado na mesma linha. Podemos discordar do pensamento expresso, e seria muito fácil se
caíssemos no erro de não o enquadrar social e cronologicamente. De
qualquer forma, trata-se dum excerto tão breve que se torna completamente
abusivo tirar conclusões, sobretudo tratando-se de tão ínfima partícula duma
obra tão vasta. Além disso,
patenteia muito mais uma tentativa de pensamento sociológico, do que
ideológico.
As plebes são, por sua natureza, aquela parte da sociedade sobre quem
incide, quer por divisão social, como a escravatura, quer por compulsão
económica, o trabalho manual ou com ele relacionado, o trabalho do artífice.
Até aqui, portanto, nenhuma apologia, apenas uma definição de “plebe” onde
inclui a escravatura, no passado, e o trabalho manual, no presente. Prossegue,
defendendo não a liberdade mas a ausência de opressão para essa “plebe”:
A que serve ao artífice a liberdade? O que [é] à plebe devido não
é a liberdade, é a ausência de opressão, que é devida a todos, e o seu direito
natural de homens. É esse o direito do homem; esse, e não a liberdade. A que se
reduz esse direito? O de não haver
mais ingerência na vida das plebes do que a natural; e a natural é a sua
condição definida de escravos no tempo da escravatura; e a sua condição
económica de compelidos ao trabalho quotidiano e manual, no tempo da chamada
concorrência (da concorrência universal).
Trata-se duma visão datada, não compete aqui comentá-la, exceto para concluir
estarmos muito longe duma defesa da escravatura. Além disso é um pequeníssimo texto duma vasta obra, provavelmente
destinado a integrar algum trabalho, ou a fazer parte de algum pensamento de
algum personagem nunca chegado a nascer. Sei por experiência própria como o
caderno dum escritor está cheio de ideias e pensamentos, não próprios mas
destinados aos seus personagens e, geralmente, quando mais tarde integrados no
contexto da obra, servem de crítica e não de apologia. De qualquer forma, como sabemos,
Pessoa tendia para o elitismo intelectual, nisso seguia bem a tradição
platónica patente em muitos aspectos da sua obra. Pode bem este texto corresponder a pensamento
próprio, do que não se trata é duma apologia da escravatura.
Sobram-nos dois textos, ou seja, pela estimativa inicial, 0,0009% da sua
obra. Deixei-os para o fim por serem também aqueles que estiveram na base das
polémicas lançadas tanto por Luzia Moniz, como pelo jornal cabo-verdiano.
Um desses textos é claramente de sociologia política e, na crítica feita,
confunde-se a análise com a opinião do autor. Intitulado “O imperialismo de expansão tem um sentido normal”, a busca é claramente para determinar quais
são os factores legitimadores usados pelos processos imperialistas.
O imperialismo de expansão tem um sentido normal, para que cumpra os seus
fins civilizacionais, em ir ocupar territórios, ou desertos, ou povoados apenas
por povos fora da civilização. Esse imperialismo comporta três graus, sendo
mais justificado no primeiro que no segundo, no segundo que no terceiro.
Pessoa encontra três factores correspondentes a outros tantos tipos de imperialismo,
e é no segundo onde refere a escravatura:
Em segundo lugar, há a ocupação de territórios habitados por povos, não já
selvagens ou incivilizáveis, mas degenerados de uma civilização
antiquíssima. (…) Recordemo-nos
sempre que o fim de colonizar ou ocupar territórios não é civilizar a gente que
lá está, mas sim levar para esses territórios elementos de civilização. O fim
não é altruísta, mas puramente egoísta e civilizacional. É o prolongamento da
sua própria civilização que o imperialismo expansivo busca e deve buscar; não
é, de modo algum, as vantagens que daí possam advir para os habitantes desse
país. A escravatura é lógica e legítima; um zulu ou um landim não representa
coisa alguma de útil neste mundo. Civilizá-lo, quer religiosamente, quer de
outra forma qualquer, é querer-lhe dar aquilo que ele não pode ter. O legítimo
é obrigá-lo, visto que não é gente, a servir os fins da civilização.
Escravizá-lo é que é lógico, o degenerado conceito igualitário, com que o
cristianismo envenenou os nossos conceitos sociais, prejudicou, porém, esta
lógica atitude. Povos, como o
inglês, hipocritizaram o conceito, e assim conseguiram servir a civilização.
Note-se que o texto é analítico e não apologético, Pessoa está nitidamente
em busca de criar uma teoria do imperialismo, encontrando três modelos, um dos
quais é o da ocupação de territórios ocupados por outros povos. Neste contexto, o pensamento é expresso não segundo o próprio, mas
segundo aqueles que praticam esse tipo de imperialismo. Neste caso, o “sociólogo”
sai de si mesmo, criando um distanciamento e falando pela cabeça do
colonizador-imperialista. A questão semântica é, aqui, essencial: Se um
sociólogo afirma legitimar-se a escravatura pelo princípio da superioridade
duma civilização sobre a outra, isso é completamente diferente dum político ou
ideólogo dizerem textualmente o mesmo. No primeiro caso, analisa-se o porquê,
no segundo, defende-se o modelo. Então, este parágrafo descontextualizado da intenção geral do texto, infere
uma conclusão completamente errada; contextualizando-o, já nem digo na obra mas apenas em
si mesmo, percebemos não estarmos frente a qualquer apologia da escravatura, como
foi afirmado.
Deixei para o final o texto mais polémico: “Régie, Monopólio, Liberdade”. Curiosamente trata-se da expressão dum pensamento económico sobre
liberdade de mercado e intervenção do Estado e, por isso, o objeto deste
artigo não tem nada que ver com a destacada questão da escravatura. Mas é aqui onde Pessoa fez a afirmação que
mais brado deu na presente polémica:
Quem nos diz que a escravatura não seja uma lei natural da vida das
sociedades sãs? Ninguém o pode dizer, porque ninguém sabe quais são as leis
naturais da vida das sociedades e essa pode portanto ser uma delas.
Parece chocante, mas (certamente não por má fé mas pelo desconhecimento de
quem apenas leu uma citação, não o próprio texto e, menos ainda, a obra) omite-se
ao que veio esta afirmação e isso está precisamente na abertura do parágrafo em
questão:
A lei aparentemente mais justa, a lei mais de acordo com os nossos
sentimentos de equidade, pode ser contrária a qualquer lei natural, pois pode
bem ser que as leis naturais nada tenham com a nossa “justiça” e em nada se
ajustem às nossas ideias do que é bom e justo. Por o que conhecemos da operação
de algumas dessas leis — por exemplo, a da hereditariedade —, a Natureza parece
frequentemente timbrar em ser injusta e tirânica.
Temos, então, uma oposição entre “a lei mais de acordo com os nossos
sentimentos de equidade” (ou seja, a que é submetida à moral) e a lei natural,
isto é aquela que “parece frequentemente timbrar em ser injusta e tirânica”. E neste e só neste contexto, Pessoa pergunta se essa lei natural
(injusta e tirânica) não admitirá a escravatura, ao contrário, fica claro, da
lei humana. Eu diria que sim,
claramente a lei natural, tão brutal ela é, integraria a escravatura e até coisas ainda piores do que a escravatura, por isso sou humanista e contrário a
qualquer espécie de darwinismo social.
Veja-se, então, como até o texto aparentemente mais chocante e também o
mais usado pelos próceres desta polémica para provarem uma pretensa defesa da
escravatura em Pessoa, não tem absolutamente o caráter que lhe quiseram dar,
mas precisamente o contrário.
Em conclusão, é absolutamente falso afirmar ter Pessoa sido um “acérrimo
defensor” da escravatura. Primeiro, porque a
estatística dos seus milhares de textos, na qual esta questão ocupa uma ínfima
parte, desmente o “acérrimo”. Segundo, porque a análise qualitativa demonstra
que, além de não ser acérrimo como vimos, não era sequer defensor. Das suas poucas referências só podemos
concluir pela utilização metafórica, nuns casos, e analítica ou condenatória, nos
outros.
Pessoa era isso mesmo, uma pessoa, naturalmente com todos os
constrangimentos inerentes à condição humana, à qual nem sequer os grandes
génios escapam. Não escreveu para agradar a
nenhum tipo de pós-modernos ou a correntes de pensamento mais ou menos
dominantes na actualidade. Nem sequer quis ser popular e por isso não foi pelo
caminho da afirmação fácil e com muito potencial replicador. Foi
genial, mas foi um homem, com defeitos e com muitas virtudes intelectuais e
literárias. Nesta óbvia humanidade,
porém, não é legítimo atribuir-lhe pensamentos que, claramente, não teve e,
entre esses, seria ridículo se não fosse desconhecimento da sua obra, dizê-lo
defensor da escravatura e, pior ainda, seu “acérrimo defensor”.
E quem, se não ele, pela pena de Álvaro de Campos, para se afirmar pessoa?
Apetece-me acabar com esse poema, também um paradigma de vida:
Nunca conheci quem tivesse
levado porrada.
Todos os meus conhecidos têm
sido campeões em tudo.
E eu, tantas vezes reles,
tantas vezes porco, tantas vezes vil,
Eu tantas vezes
irrespondivelmente parasita,
Indesculpavelmente sujo,
Eu, que tantas vezes não
tenho tido paciência para tomar banho,
Eu, que tantas vezes tenho
sido ridículo, absurdo,
Que tenho enrolado os pés
publicamente nos tapetes das etiquetas,
Que tenho sido grotesco,
mesquinho, submisso e arrogante,
Que tenho sofrido enxovalhos
e calado,
Que quando não tenho calado,
tenho sido mais ridículo ainda;
Eu, que tenho sido cómico às
criadas de hotel,
Eu, que tenho sentido o
piscar de olhos dos moços de fretes,
Eu, que tenho feito vergonhas
financeiras, pedido emprestado sem pagar,
Eu, que, quando a hora do
soco surgiu, me tenho agachado,
Para fora da possibilidade do
soco;
Eu, que tenho sofrido a
angústia das pequenas coisas ridículas,
Eu verifico que não tenho par
nisto tudo neste mundo.
Toda a gente que eu conheço e
que fala comigo
Nunca teve um acto ridículo,
nunca sofreu enxovalho,
Nunca foi senão príncipe —
todos eles príncipes — na vida...
Quem me dera ouvir de alguém
a voz humana
Que confessasse não um
pecado, mas uma infâmia;
Que contasse, não uma
violência, mas uma cobardia!
Não, são todos o Ideal, se os
oiço e me falam.
Quem há neste largo mundo que
me confesse que uma vez foi vil?
Ó príncipes, meus irmãos,
Arre, estou farto de
semideuses!
Onde é que há gente no mundo?
Então sou só eu que é vil e
erróneo nesta terra?
Poderão as mulheres não os
terem amado,
Podem ter sido traídos — mas
ridículos nunca!
E eu, que tenho sido ridículo
sem ter sido traído,
Como posso eu falar com os
meus superiores sem titubear?
Eu, que tenho sido vil,
literalmente vil,
Vil no sentido mesquinho e
infame da vileza.
Álvaro de Campos, s.d.
Luís Novais