segunda-feira, 3 de junho de 2019

PARTIU AGUSTINA



No fundo somos todos como aquele Poema em Linha Reta: tantas vezes reles, tantas porcos, tantas vis, irresponsavelmente parasitas, indesculpavelmente sujos. Mas esperando que um qualquer autor crie personagens capazes de dar transcendente heroísmo à porcaria, vileza, parasitismo e sujidade… e não, os de Agustina não nos fazem esse favor, são gente, apenas gente como a gente que os lê, são tudo isso, mas sem sublime e, sem sublime, já não justificam o crime, o nosso: Não nos servem, servem-se de nós.

Viajou Agustina 96 anos de vida muito vivida. Tenho de memória pelo menos três dos seus livros: Os Meninos de Ouro, A Ronda da Noite e A Sibila. Os dois primeiros há muito tempo, o último recentemente lido, chegado comigo na mala de livros trazida para o Peru na última viagem de regresso a Portugal, afirmação necessariamente polissémica.

Tenho uma relação angustiada com os seus livros, perturbam-me pela dificuldade de não conseguir marcar de onde vêm e aonde vão. Cronos é o grande aliado de qualquer leitor: integra-nos as letras transformadas em palavras, as palavras em frases, as frases em textos, livros. Navegar a obra é preciso, seja “preciso” necessária necessidade ou precisa precisão, e esta última faz-se com mapeio, integrando-a num espaço e num tempo, percebendo onde está, vinda de onde e o que anuncia. A estes portulanos chamamos correntes literárias, também elas uma essência talvez procedente da existência, mas que nos dá segurança, permite-nos um sentimento percebido daquilo que lemos, racionalizada emoção, não fôramos filhos de Atenas.

Dizemos que este é romântico, aquele realista, outro naturalista, aqueloutro modernista ou  até mesmo pós-moderno. Normalmente nenhum é puro, todos são algo antecipando ou chegando de outro algo. Não os deixamos ser, transformamo-los no que deles fazemos, no conforto de não aceitar a espontaneidade da história, do mundo, do drama de ser humano. E assim nos sentimos refugiados do caos, artificialmente seguros.

Sei ser essa é a raiz da minha angústia de Agustina. Agustina aparece-me de geração espontânea, é difícil, se não impossível, dizer com quem foi e quem com ela seguirá, exceto que chega consigo e consigo se vai. Qual a sua corrente literária? A que círculo pertenceria? Que influências lhe encontramos? Que fenómenos socio-literários?... não sei de angustiado não saber, logo a mim que tenho a cronologia, o tempo, como matriz de pensamento.

Depois há aqueles não-personagens… não, não falo de um qualquer anti-personagem que esse precisamente por “anti” é exagerado e por exagerado personagem. No caso de Agustina são ser e não ser, são vida doce e brutal, saem de tugúrios sem qualquer das convenções que permitem ser vivido nas páginas duma obra. Contraditórios, mas de contraditórios estão os livros cheios; normais, mas gente normal é precisamente aquela de quem por anti-personagem se diz ser personagem. Os de Agustina são sem heroísmo, não se deixam à nossa paixão porque numa página nobres, noutra vilãos, mas sem exageros, tal qual a gente que somos. Exagero é loucura e a loucura é o que dela fazemos, mas sempre e sempre para-humana. E afinal não é isso a vida? Não somos isso cada um? Não tentamos eternamente superar essa inerente mediocridade? Não estamos umas vezes além do bem e outras aquém do mal?

Talvez por isso Agustina inquieta. Nos seus livros existem pessoas, sem artifícios literários, sem exageros estilísticos, pessoas, apenas pessoas, nem heróis nem anti-heróis. Acostumados que estamos desde Homero a seres simultaneamente bons e maus, amantes e cruéis, de braços a Penélope e de espada aos pretendentes, de beijos e sangue, esperamos desses ficcionados seres que sejam capazes de superar-se e superando-se nos superaram. Podem ser imperfeitos, mas superando, bons e maus, superando, cruéis, superando, amantes, superando. E superando superam essa vida nossa tão rasteiramente vivida.

No fundo somos todos como aquele Poema em Linha Reta: tantas vezes reles, tantas porcos, tantas vis, irresponsavelmente parasitas, indesculpavelmente sujos. Mas esperando que um qualquer autor crie personagens que possam dar transcendente heroísmo à porcaria, vileza, parasitismo e sujidade… e não, os de Agustina não nos fazem esse favor, são gente, apenas gente como a gente que os lê, são tudo isso, mas sem sublime e, sem sublime, já não justificam o crime, o nosso: Não nos servem, servem-se de nós.

Morreu Agustina, inquietude à sua alma, a que não nos serviu mas de nós foi servida.



Luís Novais

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