segunda-feira, 3 de junho de 2019

BREXIT PARA UNS, OPORTUNIDADE PARA PORTUGAL



Esta ausência de ideal Europeu na nossa literatura actual e, até, a existência duma ideia, se não antieuropeísta a-europeísta, é algo que nos deveria fazer reflectir. É que a literatura, por emocional, é o texto por excelência da identidade.

Muito se dizia que a participação do reino Unido nas últimas eleições para o parlamento europeu seria uma oportunidade para demonstrar a existência real dum sentimento unionista-europeu nos seus cidadãos. Ir a votos neste sufrágio era um claro paradoxo para os que pretendem sair, mas o resultado foi precisamente o contrário e, se havia alguma dúvida de que os súbditos de Isabel II querem mesmo abandonar o barco, essa dúvida acaba de dissipar-se com o resultados. Paradoxalmente, os claros vencedores foram os geneticamente anti-união.

O partido eurocético de Nigel Farage foi criado neste mesmo ano de 2019 e teve a proeza de sair vencedor com 31,7% dos votos, a uma grande distância do segundo classificado, o união-europeísta partido Liberal Democrata com apenas 19,6%. Os tradicionais Trabalhista e Conservador sofreram a humilhação de conseguirem apenas 13,65% e 8,8% dos votos. Na própria Escócia, Farage obteve 14,8%, ou seja, mais do que os trabalhistas a nível nacional.

Estes resultados acontecem uns longos três anos após o célebre referendo. Foi um triénio caraterizado por uma intensa propaganda anti-saída, durante o qual se argumentou que os eleitores tinham sido enganados e não tiveram a informação correta. Muitos diziam que, havendo novo referendo, o “sim” seria o claro vencedor. Se neste período não conseguiram “esclarecer” e ter a respetiva desforra, então é melhor começarmo-nos a convencer de estarmos realmente perante a vontade soberana dos cidadãos. Pode não agradar, mas a Democracia não está feita ao sabor de nenhuma corrente de pensamento e não é boa apenas quando os resultados são os pretendidos por alguns.

O BREXIT E A DIPLOMACIA PORTUGUESA
Este é um resultado que pode abalar Portugal no curto prazo, mas pode também ser uma oportunidade no médio. Há séculos que o nosso país tem uma diplomacia estruturalmente caracterizada pela procura de apoios alternativos que o desafoguem das forças centrípetas de proximidade, essas que de tão próximas o poderiam absorver.

Esta estratégia foi claramente seguida durante muitos séculos, tanto que ficou como uma marca das nossas relações exteriores. Foi possível graças à posição geográfica periférica, que permitiu uma aproximação aos centros políticos mais poderosos, mas numa distância física que não anulava a autonomia porque estes representavam para nós a mesma oportunidade que nós para eles: a possibilidade de diminuir a força aglutinadora dos que estavam no meio. O célebre universalismo português tem essa raiz: Curiosamente tornamo-nos universais para nos mantermos regionais, procuramos os grandes mas longínquos para evitar os medianos mas próximos (e que em alguns períodos foram até bastante poderosos).

A possibilidade desta estratégia está intrinsecamente relacionada com a posição periférica que sempre tivemos frente às potências centrípetas da história e esta constatação comprova-se pelo facto de ser, até, muito anterior à nacionalidade e, portanto, ter já um profundo cariz provincial antes de nacional. Temos pelo menos três testemunhos documentados desde o distante século IV que nos mostram a existência deste modelo.

O primeiro é o roteiro epistolar de Egéria, uma aristocrata cristã-romanizada da Galécia, província que tinha sede em Bracara Augusta de onde provavelmente provinha, e uma pessoa claramente influente no seio da Igreja local do século IV. Nesse tempo florescia em Ávila a heresia cristã de Prisciliano, fortalecendo-se e ameaçando tornar-se num polo aglutinador de poder dentro da Península Ibérica, a ponto de poder vir a originar uma Igreja local e, com ela, a concentração dum novo poder político asfixiantemente próximo. Egéria viajou à Terra Santa e enviou não só pitorescos relatos dos locais que visitava, mas também uma pormenorizada descrição do rito cristão local, o que só pode interpretar-se como a busca dum cristianismo universal capaz de fazer frente às locais tentativas priscilianistas.

Já no século V, Paulo Orósio, sentindo-se ameaçado pela invasão dos bárbaros suevos, foge  da cidade de Brácara Augusta onde vivia como presbítero, dirigindo-se à distante Hipona e tornando-se discípulo de ninguém menos do que Santo Agostinho, a quem representará em várias ocasiões e em diversos debates que o fizeram viajar por todo o Mediterrâneo. Orósio deixou-nos uma vasta obra, uma das quais redigidas após a morte de Agostinho e afirmando ser escrita a seu pedido[i]. Uma vez mais encontramos um universalismo que procura nos grandes centros a libertação relativamente às forças mais próximas.

De igual maneira Idácio, bispo de Chaves, nos deixou no século V a sua famosa Crónica[ii], uma apologia anti suevos, os mesmo que então se instalavam com um reino próprio no espaço antes definido como Galécia e que incluía o seu bispado. Frente à força dos novos invasores, Idácio usará todos os instrumentos ao seu alcance para manter a autonomia do seu território, a tal ponto que o historiador César Colodrón chegou a vê-lo como líder duma pequena república independente[iii]. Será perseguido pelos novos senhores, chegando a ser preso, e  desenvolveu uma intensa actividade diplomática junto das forças distantes do decadente Império romano, procurando apoios para a sua causa. Nesta luta contra os poderes próximos, também Idácio será um perseverante combatente da heresia priscilianista.

Esta mesma estratégia de procurar os centros universais de poder para se libertar dos regionais, não seria outra se não a do próprio D Afonso Henriques, no seu casamento com D Mafalda, vinda  da poderosa casa de Sabóia, e nas suas aproximações diplomáticas a Roma, que acabaria por reconhecê-lo e servia de contraponto ao poder próximo do primo Afonso VII de Leão. Já o pai fizera o mesmo, aproveitando-se da sua origem borgonhesa e da ligação ao tio, abade da imponente ordem de Cluny. Morto o conde, D Teresa inverte esta estratégia, aliando-se à aristocracia galega. Claro que a força centrípeta duma força tão próxima era insuportavelmente avassaladora, sendo por isso que os infanções locais não a suportaram e deixaram a condessa sem condado o mais depressa que puderam, pondo o próprio filho frente-a-frente com a mãe em 1128.

Em cada crise de sobrevivência da nossa história podemos assistir a esta tendência. Foi assim em 1383-1385 quando fomos em busca do apoio inglês contra Castela e o país conseguiu manter-se soberano, mas assim não foi em 1580, com a consequência do reino ter na prática deixado de existir como entidade política autónoma. A restauração renovará o modelo anterior, buscando a apoio de Londres contra Madrid,  e foi como recuperamos a soberania. Assim se manteve a estratégia diplomática nos séculos seguintes, não sendo por acaso que D Carlos[iv] tinha muito claro existirem dois países com os quais devíamos ter relações privilegiadas: O Reino Unido e o Brasil.

A excessiva continentalização a que a União Europeia nos levou e o seguimento quase monopolar de Bruxelas é um recente interregno neste modelo, mas a verdade é que, discursos à parte, como bem o mostrou um interessante trabalho da socióloga Rita Ribeiro[v] os portugueses  querem estar na União mas numa relação meramente instrumental de benefícios e perdas, portanto, com uma identificação utilitária que se opõe à emocional, ou seja, sem o sentimento de pertença a essa  “comunidade imaginada” como a define Benedict Anderson[vi].

A EUROPA E A LITERATURA NACIONAL
Aliás, basta olhar a literatura. Em cada momento da nossa história se conectaram identidade e literatura. As cantigas populares e cortesãs de D Dinis, com a respectiva oficialização da língua portuguesa, inseriram-se na luta de poder entre a coroa e a aristocracia, assim como as crónicas e os livros de linhagens do século XIV são a afirmação identitária com que esta responde. A cronística de base popular de Fernão Lopes é indissociável da necessidade de legitimar um rei ilegítimo, legitimado apenas pela vontade popular e de aristocratas de segunda linha. A invenção do milagre de Ourique numa crónica de 1419 não teve outra função que não a de criar um super-mito capaz de incentivar os portugueses a partirem para o desconhecido mar, porque o faziam em nome duma profecia divina ao seu primeiro rei, servindo também para legitimar transnacionalmente essa mesma expansão. Podíamos seguir adiante com Camões, António Vieira, Verney, Herculano, a geração de setenta, os modernistas com Pessoa à cabeça… Todos, mesmo todos, os períodos de diferentes buscas identitárias transpiraram para a literatura. No entanto, o recente “grande” desígnio união-europeísta não foi capaz de gerar uma literatura, não criou o mínimo entusiasmo dos escritores porque tão-pouco dos leitores e dos leitores porque tão-pouco dos escritores.

O máximo que a literatura contemporânea portuguesa criou foi o contrário, um rechaço, que está patente em nostálgicas páginas de Lobo Antunes que, na angústia pós-colonial que tanto o inspira, nunca encontrou paliativo na Europa. Em Saramago, onde, numa leitura muito pessoal, encontro uma negação da Europa em História do Cerco de Lisboa e, claramente, em Jangada de Pedra.

E nem se pode dizer que a Europa não é em si mesma estruturalmente inspiradora, porque ela chegou a sê-lo para a Geração de 70, pelo menos até que Eça entrou em crise e escreveu A Cidade e as Serras e, sobretudo, A Ilustre Casa de Ramires.

Esta ausência de ideal Europeu na nossa literatura actual e, até, a existência duma ideia, se não antieuropeísta a-europeísta, é algo que nos deveria fazer reflectir. É que a literatura, por emocional, é o texto por excelência da identidade.

PORTUGAL E O BREXIT
De qualquer forma, a questão era essencialmente outra: o Brexit. Depois das últimas eleições trata-se duma inevitabilidade e, em vez de nos lamentarmos, deveríamos ver a oportunidade. Graças ao Brexit ganhamos  novos polos além da absorvente Bruxelas e, se houve país que tenha sabido manter-se e renovar-se graças à multipolaridade, esse país foi Portugal. Já o sabemos fazer desde a viagem de Egéria à Terra Santa nesse distante século IV, e foi com essa habilidade que nos demos reino e viabilidade.



Luís Novais


 Foto: Elionas




[i] ORÓSIO, Paulo (1986 – 417). História Contra os Pagãos (tradução José Cardoso). Braga: Universidade do Minho.
[ii] IDÁCIO (1995 – 469). Crónica de Idácio (tradução José Cardoso), (segunda edição). Braga: Livraria Minho, 1995
[iii] COLODRÓN, César (s.d.).Análisis de la Figura de Idácio de Chaves a Través de los Condicionantes Socioeconómicos, Políticos y Culturales de la Gallaecia del Silglo V. El Cronicón. (tese de doutoramento). Coruña: Universidad de Coruña.
[iv] RAMOS, Rui (2008). D Carlos. Lisboa: Temas e Debates
[v] RIBEIRO, Rita (2011). A Europa na Identidade Nacional. Lisboa: Edições Afrontamento.
[vi] ANDERSON, Benedict (2017). Comunidades Imaginadas: Reflexões sobre a origem e a expansão do nacinalismo. Lisboa: Edições 70.


PARTIU AGUSTINA



No fundo somos todos como aquele Poema em Linha Reta: tantas vezes reles, tantas porcos, tantas vis, irresponsavelmente parasitas, indesculpavelmente sujos. Mas esperando que um qualquer autor crie personagens capazes de dar transcendente heroísmo à porcaria, vileza, parasitismo e sujidade… e não, os de Agustina não nos fazem esse favor, são gente, apenas gente como a gente que os lê, são tudo isso, mas sem sublime e, sem sublime, já não justificam o crime, o nosso: Não nos servem, servem-se de nós.

Viajou Agustina 96 anos de vida muito vivida. Tenho de memória pelo menos três dos seus livros: Os Meninos de Ouro, A Ronda da Noite e A Sibila. Os dois primeiros há muito tempo, o último recentemente lido, chegado comigo na mala de livros trazida para o Peru na última viagem de regresso a Portugal, afirmação necessariamente polissémica.

Tenho uma relação angustiada com os seus livros, perturbam-me pela dificuldade de não conseguir marcar de onde vêm e aonde vão. Cronos é o grande aliado de qualquer leitor: integra-nos as letras transformadas em palavras, as palavras em frases, as frases em textos, livros. Navegar a obra é preciso, seja “preciso” necessária necessidade ou precisa precisão, e esta última faz-se com mapeio, integrando-a num espaço e num tempo, percebendo onde está, vinda de onde e o que anuncia. A estes portulanos chamamos correntes literárias, também elas uma essência talvez procedente da existência, mas que nos dá segurança, permite-nos um sentimento percebido daquilo que lemos, racionalizada emoção, não fôramos filhos de Atenas.

Dizemos que este é romântico, aquele realista, outro naturalista, aqueloutro modernista ou  até mesmo pós-moderno. Normalmente nenhum é puro, todos são algo antecipando ou chegando de outro algo. Não os deixamos ser, transformamo-los no que deles fazemos, no conforto de não aceitar a espontaneidade da história, do mundo, do drama de ser humano. E assim nos sentimos refugiados do caos, artificialmente seguros.

Sei ser essa é a raiz da minha angústia de Agustina. Agustina aparece-me de geração espontânea, é difícil, se não impossível, dizer com quem foi e quem com ela seguirá, exceto que chega consigo e consigo se vai. Qual a sua corrente literária? A que círculo pertenceria? Que influências lhe encontramos? Que fenómenos socio-literários?... não sei de angustiado não saber, logo a mim que tenho a cronologia, o tempo, como matriz de pensamento.

Depois há aqueles não-personagens… não, não falo de um qualquer anti-personagem que esse precisamente por “anti” é exagerado e por exagerado personagem. No caso de Agustina são ser e não ser, são vida doce e brutal, saem de tugúrios sem qualquer das convenções que permitem ser vivido nas páginas duma obra. Contraditórios, mas de contraditórios estão os livros cheios; normais, mas gente normal é precisamente aquela de quem por anti-personagem se diz ser personagem. Os de Agustina são sem heroísmo, não se deixam à nossa paixão porque numa página nobres, noutra vilãos, mas sem exageros, tal qual a gente que somos. Exagero é loucura e a loucura é o que dela fazemos, mas sempre e sempre para-humana. E afinal não é isso a vida? Não somos isso cada um? Não tentamos eternamente superar essa inerente mediocridade? Não estamos umas vezes além do bem e outras aquém do mal?

Talvez por isso Agustina inquieta. Nos seus livros existem pessoas, sem artifícios literários, sem exageros estilísticos, pessoas, apenas pessoas, nem heróis nem anti-heróis. Acostumados que estamos desde Homero a seres simultaneamente bons e maus, amantes e cruéis, de braços a Penélope e de espada aos pretendentes, de beijos e sangue, esperamos desses ficcionados seres que sejam capazes de superar-se e superando-se nos superaram. Podem ser imperfeitos, mas superando, bons e maus, superando, cruéis, superando, amantes, superando. E superando superam essa vida nossa tão rasteiramente vivida.

No fundo somos todos como aquele Poema em Linha Reta: tantas vezes reles, tantas porcos, tantas vis, irresponsavelmente parasitas, indesculpavelmente sujos. Mas esperando que um qualquer autor crie personagens que possam dar transcendente heroísmo à porcaria, vileza, parasitismo e sujidade… e não, os de Agustina não nos fazem esse favor, são gente, apenas gente como a gente que os lê, são tudo isso, mas sem sublime e, sem sublime, já não justificam o crime, o nosso: Não nos servem, servem-se de nós.

Morreu Agustina, inquietude à sua alma, a que não nos serviu mas de nós foi servida.



Luís Novais