É isso que esquecem todos aqueles que rasgam as vestes pelo criminoso ataque a um hospital em Gaza e não o fazem por igual crime na Ucrânia; por um criminoso ataque na Ucrânia e não em Gaza.
O ser humano tem uma tendência
natural ao sectarismo, provavelmente originária dos tempos em que a estrita
coesão do grupo caçador e a defesa dos territórios de recoleção eram essenciais
à sobrevivência.
Quando observamos os animais
selvagens, não assistimos a qualquer dúvida moral perante o ataque de
predadores a presas, ou a rivais alimentares e sexuais da mesma espécie. Claro
que isto advém do facto de que só nós temos consciência do outro e só nós
tivemos por isso a necessidade (e a capacidade), para desenvolver um pensamento
moral que nos estabeleça uma fronteira
entre o bem e o mal.
Quanto mais além estamos de um
comportamento ditado por essa fronteira, mais humanos e racionais somos, quanto
mais aquém, tanto mais irracionais. Por extensão, podemos dizer que o
sectarismo, que nos conduz a ver todo o mal daquele lado que não é o nosso e o
bem apenas no nosso, é um regresso a esses tempos paleo-humanos, quando a
espécie ainda estava mais próxima de ser uma alcateia ou manada do que uma
sociedade ou civilização.
Permitindo a criação de bolhas
sectárias, as redes sociais acentuam esse lado mais animal. Curiosamente, as
tecnologias digitais mais avançadas conduzem-nos ao tempo da pedra inicial.
Vem isto a propósito do que tenho assistido de forma aleatória e sem presunção sistematizadora. Basta estar atento ao perfil e ao pensamento político de quem partilha posições e imagens no Facebook: por norma, os que defendem a causa palestiniana consideram Israel agressor e partilham imagens relacionadas, tais como as dos criminosos ataques a hospitais na Faixa de Gaza. Do outro lado, os que condenam a agressão Russa à Ucrânia, apontam o dedo ao agressor e partilham imagens em tudo semelhantes à anterior, como seja a do recente ataque ao hospital pediátrico de Kiev.
A norma é que os palestinianistas
esqueçam os crimes contra as populações civis na Ucrânia; o mesmo
para os ucranianistas na palestina. Apresentando-se uns e outros como
defensores de vítimas, não estão a fazer mais do que usar essas mesma vítimas em
defesa das suas posições sectárias, sacrificando a moral universal no altar da
horda a que se juntam.
Jean-François Lyotard defeniu a pós
modernidade como sendo uma crise das narrativas predominantes herdadas da
modernidade, ou seja, do pensamento iluminista que criou os modelos políticos e
sociais que continuam a ser predominantes, e onde muitos de nós (acredito que a
maioria) queremos continuar a viver.
Não podemos afirmar que Kant, o
primeiro a definir o iluminismo, tenha sido um iluminista. O filósofo de
Konigsberg morreu em 1804: 49 anos depois de Montesquieu, 26 depois de Voltaire
e Rousseau, 21 anos depois de terminada a Revolução Americana e 15 depois da
Francesa. Morre precisamente no mesmo ano em que Napoleão consolida o poder
alcançado em 1799 e está prestes a ser coroado imperador.
Kant já não é portanto um homem da
ilustração enquanto movimento de pensadores. Pertence à geração seguinte, que viveu a progressiva implementação desses ideais, indissociável do Espírito
das Leis e do Contrato Social, ou seja, de uma inversão total do princípio da
legitimidade, que já não era transferida de Deus ao soberano, mas do povo ao
governante.
Como pós iluminista, competiu-lhe
atar muitas pontas que os seus antecessores deixaram soltas. Desde logo, a relação
entre perene e volátil, entre o apreendido pelos sentidos e pela razão, que a
agonia de Deus veio ressuscitar desses remotos tempos de Heraclito e
Parménides.
Kant resolve este binómio
contraditório com a relação entre fenómeno e noumenon, entre razão prática e
pura. Com isto abriu o caminho para que a Ciência se pudesse constituir em nova
liturgia de acesso à verdade, observando o fenoménico diverso e conseguindo unificá-lo
no nouménico universal.
Havia porém outra ponta solta
deixada pelos seus predecessores, resultante dessa nova fonte de legitimidade,
que já não era o Deus uno, mas um corpo de cidadãos diversos. Esse corpo sofreria
de anomia se não tivesse uma normatividade mínima, capaz de o unir.
Com o famoso imperativo categórico,
a moral kantiana vem resolver o problema pendente: „Handle so, daß die Maxime deines Willens
jederzeit zugleich als Prinzip einer allgemeinen Gesetzgebung gelten könne“
("Age de tal modo que a máxima da tua vontade possa ser sempre considerada
como o princípio de uma lei geral").
Uma sociedade de massas assente
no princípio da soberania popular é disfuncional se não estamos de acordo com
alguns princípios morais elementares, e o “imperativo categórico” constituiu-se
em átomo desses princípios. Agir como se a nossa vontade pudesse ser uma lei
geral implica não ser sectário, implica olhar para o outro como parte de uma
universalidade, fundir a diversidade humana com a universalidade do direito.
É isso que esquecem todos aqueles que rasgam as vestes pelo criminoso ataque a um hospital em Gaza e não o fazem por igual crime na Ucrânia; por um criminoso ataque na Ucrânia e não em Gaza.
A primeira declaração dos
direitos do Homem é um fruto do iluminismo, indissociável de uma adjetivação
substantiva que lhe foi introduzida pela Assembleia Geral das Nações Unidas em
1948: Universal. Os que se sentem ungidos dessa ideia apenas para defender posições
sectárias, matam Kant e distorcem o direito.
Luís Novais