quinta-feira, 18 de julho de 2024

Matam Kant em Gaza, matam Kant em Kiev

 


É isso que esquecem todos aqueles que rasgam as vestes pelo criminoso ataque a um hospital em Gaza e não o fazem por igual crime na Ucrânia; por um criminoso ataque na Ucrânia e não em Gaza. 

O ser humano tem uma tendência natural ao sectarismo, provavelmente originária dos tempos em que a estrita coesão do grupo caçador e a defesa dos territórios de recoleção eram essenciais à sobrevivência.

Quando observamos os animais selvagens, não assistimos a qualquer dúvida moral perante o ataque de predadores a presas, ou a rivais alimentares e sexuais da mesma espécie. Claro que isto advém do facto de que só nós temos consciência do outro e só nós tivemos por isso a necessidade (e a capacidade), para desenvolver um pensamento moral que nos estabeleça uma  fronteira entre o bem e o mal.

Quanto mais além estamos de um comportamento ditado por essa fronteira, mais humanos e racionais somos, quanto mais aquém, tanto mais irracionais. Por extensão, podemos dizer que o sectarismo, que nos conduz a ver todo o mal daquele lado que não é o nosso e o bem apenas no nosso, é um regresso a esses tempos paleo-humanos, quando a espécie ainda estava mais próxima de ser uma alcateia ou manada do que uma sociedade ou civilização.

Permitindo a criação de bolhas sectárias, as redes sociais acentuam esse lado mais animal. Curiosamente, as tecnologias digitais mais avançadas conduzem-nos ao tempo da pedra inicial.

Vem isto a propósito do que tenho assistido de forma aleatória e sem presunção sistematizadora. Basta estar atento ao perfil e ao pensamento político de quem partilha posições e imagens no Facebook: por norma, os que defendem a causa palestiniana consideram Israel agressor e partilham imagens relacionadas, tais como as dos criminosos ataques a hospitais na Faixa de Gaza. Do outro lado, os que condenam a agressão Russa à Ucrânia, apontam o dedo ao agressor e partilham imagens em tudo semelhantes à anterior, como seja a do recente ataque ao hospital pediátrico de Kiev. 

A norma é que os palestinianistas esqueçam os crimes contra as populações civis na Ucrânia; o mesmo para os ucranianistas na palestina. Apresentando-se uns e outros como defensores de vítimas, não estão a fazer mais do que usar essas mesma vítimas em defesa das suas posições sectárias, sacrificando a moral universal no altar da horda a que se juntam.

Jean-François Lyotard defeniu a pós modernidade como sendo uma crise das narrativas predominantes herdadas da modernidade, ou seja, do pensamento iluminista que criou os modelos políticos e sociais que continuam a ser predominantes, e onde muitos de nós (acredito que a maioria) queremos continuar a viver.

Não podemos afirmar que Kant, o primeiro a definir o iluminismo, tenha sido um iluminista. O filósofo de Konigsberg morreu em 1804: 49 anos depois de Montesquieu, 26 depois de Voltaire e Rousseau, 21 anos depois de terminada a Revolução Americana e 15 depois da Francesa. Morre precisamente no mesmo ano em que Napoleão consolida o poder alcançado em 1799 e está prestes a ser coroado imperador.

Kant já não é portanto um homem da ilustração enquanto movimento de pensadores. Pertence à geração seguinte, que viveu a progressiva implementação desses ideais, indissociável do Espírito das Leis e do Contrato Social, ou seja, de uma inversão total do princípio da legitimidade, que já não era transferida de Deus ao soberano, mas do povo ao governante.

Como pós iluminista, competiu-lhe atar muitas pontas que os seus antecessores deixaram soltas. Desde logo, a relação entre perene e volátil, entre o apreendido pelos sentidos e pela razão, que a agonia de Deus veio ressuscitar desses remotos tempos de Heraclito e Parménides.

Kant resolve este binómio contraditório com a relação entre fenómeno e noumenon, entre razão prática e pura. Com isto abriu o caminho para que a Ciência se pudesse constituir em nova liturgia de acesso à verdade, observando o fenoménico diverso e conseguindo unificá-lo no nouménico universal.

Havia porém outra ponta solta deixada pelos seus predecessores, resultante dessa nova fonte de legitimidade, que já não era o Deus uno, mas um corpo de cidadãos diversos. Esse corpo sofreria de anomia se não tivesse uma normatividade mínima, capaz de o unir.

Com o famoso imperativo categórico, a moral kantiana vem resolver o problema pendente:  Handle so, daß die Maxime deines Willens jederzeit zugleich als Prinzip einer allgemeinen Gesetzgebung gelten könne“ ("Age de tal modo que a máxima da tua vontade possa ser sempre considerada como o princípio de uma lei geral").

Uma sociedade de massas assente no princípio da soberania popular é disfuncional se não estamos de acordo com alguns princípios morais elementares, e o “imperativo categórico” constituiu-se em átomo desses princípios. Agir como se a nossa vontade pudesse ser uma lei geral implica não ser sectário, implica olhar para o outro como parte de uma universalidade, fundir a diversidade humana com a universalidade do direito.

É isso que esquecem todos aqueles que rasgam as vestes pelo criminoso ataque a um hospital em Gaza e não o fazem por igual crime na Ucrânia; por um criminoso ataque na Ucrânia e não em Gaza.  

A primeira declaração dos direitos do Homem é um fruto do iluminismo, indissociável de uma adjetivação substantiva que lhe foi introduzida pela Assembleia Geral das Nações Unidas em 1948: Universal. Os que se sentem ungidos dessa ideia apenas para defender posições sectárias, matam Kant e distorcem o direito.

 

Luís Novais

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