A caricatura de um crime que deu que falar sem nunca ter existido, mostra a facilidade com que alguns círculos das redes sociais fazem acusações infundadas. Em casos como este, uma das vítimas da verdade costuma ser o estabelecimento de uma suposta relação com o aumento do número de imigrantes.
Crónica de um crime imaginário
Recentemente em Braga, dois homens
numa moto lá para os lados da mesma Falperra onde antanho atacava o temível Zé do Telhado,
ameaçaram com pistola e roubaram um supostamente honesto cidadão. Ter-lhe-ão levando
carteira, dinheiro e documentos. A notícia saiu no jornal digital Minho
e no Correio da Manhã. Só no primeiro gerou 523 comentários e 230
partilhas. De entre tantos destaco alguns:
“Os primeiros
a acordar e a ver o que se passava, eram insultados e apelidados de xenófobos,
pois bem, olhando para a frequência com que os crimes ocorrem nesta cidade
atualmente, comparado há uns 4 anos, é tudo coincidências”.
“O Marcelo
falou em reparação as ex-colónias, eles só estão a antecipar, e depois não são
estrangeiros, eles ainda não pisaram o solo português que já têm um cartão de
cidadão português ... assim nem podem ser extraditados”.
“Obrigado PS e
PSD por esta imigração descontrolada”.
“Enquanto não
fecharem portas a esta emigração excessiva , o país vai ter cada vez mais
crimes !! Esta cidade está cheia de criminosos”.
“É Braguil”
“Olhando ao
modus operandi não me parece difícil perceber a origem.. Triste ver o meu país
a ficar sem rumo!”
“Qual era a
nacionalidade ou etnia???? Ponham sem medo
“Isso é filmes à Brasil”
Poderia destacar muitos mais (ver
aqui), com o mesmo tipo de afirmações acusatórias. Tudo isto por um crime
que… afinal não aconteceu!
O violento assalto que antes
de existir já não existiu
Três dias depois e no mesmo
jornal ficávamos a saber que “Homem inventou que foi assaltado de pistola por
dupla de mota em Braga. Só queria boleia da PSP”.
Cansado de caminhar, sem dinheiro
e provavelmente zero de saldo no telemóvel, o espertalhão decidiu ligar para o gratuito
112, queixando-se do suposto assalto para que a polícia o fosse buscar. Compadecido,
um dos agentes da autoridade até lhe deu alguns euros do próprio bolso (ver
aqui).
Escusado será dizer que nenhum
dos comentaristas de acusação fácil veio reconhecer o erro e pedir desculpa
pela difamação.
As redes sociais já nos
habituaram a isto. São também estes que normalmente acusam a imprensa, talvez
porque esta, não sendo isenta de erros, tem um compromisso com a verdade e obedece
aos critérios de confirmação e contraditório que eles não. Foi esse mesmo
compromisso que levou o Minho a repor a verdade sobre a notícia que
antes deu.
Assimetria da mentira
Vi algures um cartoon intitulado
“O princípio de assimetria”, onde se demonstrava que a quantidade de energia para
refutar uma estupidez é muito maior do que a usada para produzi-la. Trata-se de
uma realidade que homens como Donald Trump conhecem muito bem: Gastando os
mesmos recursos com que se fundamenta uma só verdade, geram-se milhares de
mentiras. Além disso, estas são mais espetaculares e tendem a gerar muitas mais
visualizações, o que nestes tempos equivale a dinheiro.
Em conclusão: mentir é barato e tem
uma margem económica infinitamente superior à dispendiosa procura da verdade.
Por esse motivo, já me convenci a
não perder o meu tempo refutando o que por aí vou lendo. Desta vez abro exceção,
porque tal tipo de referências tem-se adensado, permitindo que uma só verdade refute muitas mentiras e melhorando assim a assimétrica relação económica.
Da mentira ao facto
Viajemos até ao abrenuncio das
redes sociais: o mundo dos factos.
Em primeiro lugar, Portugal está
longe de ser um país com elevados índices de insegurança. Segundo o Global
Peace Index (ver),
em 2023 foi o sétimo mais seguro do mundo e o quinto na europa. À nossa frente
e por esta ordem: Singapura, Áustria, Nova Zelândia, Irlanda, Dinamarca e Islândia (p.8), este último um pequeno país de 330.000
habitantes, praticamente no círculo polar Ártico.
A posição portuguesa até melhorou
um posto em comparação com 2022. Isto num contexto de aumento da insegurança
mundial, que piorou 13 vezes nos últimos 15 anos (p.10).
Estamos, portanto, longe de viver
uma onda de insegurança. É certo que este índice considera não só a
criminalidade mas também os conflitos militares internacionais. Ainda assim,
temos de descer até aos três dígitos deste ranking para encontrar um país que
esteja em guerra.
Os dados específicos e exclusivos
sobre a criminalidade em Portugal também existem. Segundo o Relatório Anual
de Segurança Interna (RASI) (Ver),
apesar de um acréscimo, os valores de 2023 estão inseridos numa curva descendente da criminalidade geral e, em particular, da violenta. Para estes números
contribuem crimes graves mas não associados à insegurança de rua, como é o caso
da violência doméstica ou da corrupção.
Os crimes que mais subiram não
podem ser considerados violentos. É o caso de burla com cartão de crédito
(+67%), este muito ligado às redes digitais, de outras burlas (+39%), dos furtos
em edifício comercial sem arrombamento (+16,7%) e os de oportunidade de objeto
não guardado (13,4%).
Por outro lado, baixaram alguns
dos associados à violência: furto em residência com arrombamento (-11,2%) e
furto em veículo motorizado (-6,8%). Baixaram também -7,2% os homicídios
voluntários, dos quais 47% foram em situação relacional (família, vizinhança,
conhecimento etc.) e portanto não
associados à criminalidade organizada. As violações baixaram 4,8% e quase
metade deram-se em contexto de relação de conhecimento; deu-se também uma
descida de 15,3% nos roubos a residências e de 4% noutros roubos (-4%).
Ainda assim, é preocupante o
aumento de 25,8% nas extorsões e de 22% nos raptos, sequestros e tomadas de reféns.
No entanto, devemos notar que se trata de um tipo de crime com baixa incidência
no nosso país: os raptos e sequestros passaram de 250 a 305 e as extorsões de
1.183 a 1.488 (p.39), ou seja, basta um aumento
relativamente pequeno para um desproporcionado reflexo percentual. Além disso,
79% no primeiro grupo são crimes de sequestro, normalmente associados a
contextos familiares e laborais e não à criminalidade organizada. Sem dúvida porém
que se trata de um crescimento preocupante e merecedor de atenção.
Aumentou também outro tipo de
crime, não violento e que normalmente não é praticado por cidadãos
estrangeiros: a criminalidade económico-financeira e a corrupção, com uma
subida de 28,8% nos inquéritos judiciais e de 26% nas detenções (p.7).
Um crime que o relatório
considera ter crescido de forma preocupante é o tráfico de seres humanos. Este
sim associado à imigração, mas uma modalidade que, no mínimo, conta
com a participação de cidadãos nacionais e as vítimas são, por norma, cidadãos estrangeiros. Corrobore-se com a particular incidência de “tráfico
para fins de exploração laboral” (pp.6-7).
Outro que aumentou foi o crime de
ódio, do qual os imigrantes costumam ser as vítimas (p.31).
Já quanto aos estrangeiros que
tentaram entrar ilegalmente no país, deu-se até uma significativa diminuição de
44,2% na fraude documental (p.7).
Braga, onde teria ocorrido o referido
crime imaginário, é um dos distritos que mais estrangeiros tem recebido. Segundo
o Relatório de Imigração, Fronteiras e Asilo 2022 (ver) só entre
2021 e 2022 este número aumentou 19,1%, de 23.619 para 28.127 (p.12). Cai pela
base a retórica da associação entre a imigração e o aumento da criminalidade
quando, segundo o RASI 2023, se trata
do segundo distrito do país onde menos aumentou o número de participações policiais
(0,7%) (p.38) e se registaram apenas mais 19 roubos do que em 2022 (p.41).
Reclusos nacionais e
estrangeiros
A população prisional acompanha a
curva geral de diminuição da criminalidade, havendo 12.913 reclusos, o que
significa menos 190 do que em 2022. Também as penas não privativas de liberdade
decresceram 0,8% (p.10).
Neste campo, a proporção de
estrangeiros é superior à de residentes no país: correspondem a 16,7% dos presos,
contra uma representatividade total de 5,2%, segundo o censo de 2021 (ver).
Apesar da diferença ser
significativa, também aqui é necessária uma análise mais fina, sobretudo porque
os dados disponíveis não informam quantos de esses reclusos são residentes em
Portugal e quantos foram apanhados num contexto de criminalidade internacional.
Não encontrei essa informação sistematizada, mas certamente são números
significativos. Neste contexto, o RASI 2023 refere a ligação de grande
parte dos presos por tráfico de drogas a redes internacionais, além de considerar
que Portugal é frequentemente utilizado como ponto de trânsito e destino para
drogas que chegam por via marítima e aérea. Resultam de aí várias apreensões e
prisões de não residentes, nomeadamente em portos e aeroportos.
Não se trata de uma
excentricidade nacional. Basta referir os cerca de 80 cidadãos portugueses em
prisões peruanas, todos relacionados com o transporte de drogas. Este número
corresponde a uns 26% da pequena comunidade portuguesa residente neste país,
uma comunidade trabalhadora, integrada e que os peruanos estão longe de
considerar como fomentadora do crime. A proporção noutras comunidades nacionais
ainda é maior, como é o caso dos perto de 300 reclusos holandeses, para uma
comunidade provavelmente mais pequena do que a portuguesa.
A insustentável leveza da
mentira
Em conclusão, a facilidade com que algumas vozes acusaram a imigração pelo crime imaginário da Falperra é uma hilariante caricatura da facilidade com que se estabelecem falsas relações entre variáveis que não se conjugam. Mas é claro que a energia despendida para fundamentar esta conclusão pode facilmente ser usada a gerar outras mil maliciosas mentiras.