segunda-feira, 6 de dezembro de 2010

A agonia do Novo Acordo Social

Foto: SXC.hu
Em Madrid os controladores aéreos largam os seus postos de trabalho e obrigam o Governo espanhol a declarar o estado de emergência pela primeira vez em democracia.

Algures, um até há pouco tempo anónimo cidadão coloca na internet levas sucessivas de documentos confidenciais e secretos e, nuns casos, embaraça o Departamento de Estado americano, noutros, põe o próprio aparelho militar e diplomático em causa.

Vários exemplos poderiam ser dados. Desnecessários ao que interessa aqui, que é tentar responder à seguinte questão: De repente, os cidadãos recorrerem a ações de protesto à margem do que está legalmente estipulado, porquê?

O edifício de legitimação em que o nosso sistema se sustenta segue sendo o famoso Contrato Social. Rousseau, o pai da ideia, concebeu-o como um acordo entre a totalidade da população, o povo, que passaria a chamar-se “cidadãos”, e os seus governantes. Aquele delegava nestes a gestão da coisa pública, mas não a titularidade.

As ideias de Rousseau são um dos sustentáculos ideológicos da Revolução de 1789. Sabemos, porém, quão limitado era o conceito de “cidadão” para os fazedores desta Revolução. Uma limitação que a crescente complexidade social trazida pela industrialização do século XIX abalou, um abalo que acabaria a deitar por terra os axiomas da pax burguesa.

A partir da segunda metade de oitocentos e com cada vez mais frequência, os operários, mais ou menos organizados, começam a largar as fábricas e vêm para as ruas, manifestando-se em confrontos que se revelariam sangrentos, tanto para grevistas como para as forças policiais, militares, ou de segurança privada, estas ultimas sobretudo nos Estados Unidos.

Os exemplos poderiam multiplicar-se: em 1877, no Ohio, o exército mata nove pessoas, em 1886 dá-se a sangrenta revolta de Haymarket que está na origem da designação do primeiro de Maio como dia do trabalhador. Menção ainda para as repressões brutais em Maio de 1891, em França. Uma violência bidirecional: não raras vezes as forças policiais contam com dezenas de vítimas e uma vaga de atentados, geralmente à bomba, mata alguns proprietários de fábricas e dirigentes políticos. Os operários não são, portanto, as únicas vítimas físicas desta situação.

Entretanto, assiste-se a uma cada vez maior organização do movimento operário. Nos finais do século XIX e inícios do XX, multiplicam-se as organizações sindicais que apelam à ação direta, revolucionária e já não de mera luta por algumas regalias. Aquilo que se pretende é, agora, a mudança do próprio sistema político.

Como bem notou Yves Lequin, “o Great labour unrest da Belle Époque resulta do cansaço diante dos palavreados parlamentares e da ansiedade que, como se sabe, desorienta a classe operária.”

Este sindicalismo contestatário, a que chamaria centrífuga, abala a estabilidade do sistema capitalista, razão para as forças centrípetas iniciarem um progressivo movimento no sentido de trazer o movimento operário para o sistema, institucionalizando-o procurando inseri-lo e, assim, torná-lo numa das componentes do sistema.

O fenómeno começa a despontar após a Primeira Guerra Mundial, mas está em clara marcha depois da Segunda, sobretudo a partir da década de cinquenta.

Institui-se então aquilo a que gosto de chamar um Novo Acordo Social. Já não é um acordo bidirecional entre o cidadão/burguês e os gestores da coisa pública, como Rousseau o concebeu, mas uma nova construção onde Estado serve de fiel da balança entre os grandes detentores dos meios de produção (materiais ou financeiros) e a generalidade da população. Um acordo baseado na participação de todos através do sufrágio universal, onde o poder que este sufrágio dá a todos serve de contrapeso ao poder que a concentração de riqueza dá a alguns. A greve passa a ser um direito fundamental inscrito nas constituições da generalidade dos países ocidentais e os sindicatos serão parceiros sociais, saindo a generalidade dos confrontos da rua e instalando-se nas mesas de negociação, onde os Governos sentam patrões e trabalhadores e procuram induzir a concertação.

Graças a esta institucionalização da conflitualidade, é indiscutível que nas décadas de cinquenta e sessenta se assistiu a alguma mobilidade social, apesar de não tanta quanto se pense, como bem o mostrou Pierre Léon. Os Estados assumem o papel de redistribuição da riqueza, tomando para si a função de diminuir o fosso entre os mais ricos e os mais pobres, à custa duma sofisticada política fiscal. Na Alemanha e na Holanda de 1970, entre 5 e 10% dos mais ricos pagam 50% dos impostos sobre rendimentos, proporcionando ao Estado recursos para instalar o famoso Estado de bem estar. Saúde, Educação, passam a ser considerados direitos de todos e os governos esforçam-se para que todos lhes possam aceder.

Foi o Novo Acordo Social que permitiu a estabilidade que o mundo ocidental conheceu na segunda metade do século XX e foi essa estabilidade que permitiu o respetivo crescimento económico. O primado do social sobre o económico revelou-se assim uma medida de grande alcance… económico.

Hoje assistimos a um desagregar deste Novo Acordo Social. Para esta desagregação contribuiram, em minha opinião, sobretudo três grandes fatores.

O primeiro dos fatores terá sido a globalização. Com a queda do Império soviético desaparece a espada de Damocles sobre os principais interessados no centriptismo do sistema e a globalização possibilita a deslocalização para países onde o Novo Acordo Social nunca chegou a instaurar-se. Os detentores dos meios de produção já não precisam de contratualizar e por isso a concertação torna-se-lhes desnecessária. Os antigos fóruns de negociação passaram a ser locais onde as regras destes são facilmente impostas com base na ameaça da deslocalização.

O segundo dos fatores foi a descrença da população num dos principais mecanismos em que assenta o Novo Acordo Social: o sufrágio universal. Hoje são cada vez mais os que não reconhecem utilidade ao voto como forma de ação sobre o sistema, o que se tem traduzido em taxas de abstenção cada vez mais elevadas. Trata-se dum fenómeno que José Saramago levou para o campo da literatura no seu “Ensaio Sobre a Lucidez”, quando imaginou um ato eleitoral em que cem por cento dos eleitores teriam votado em branco.

Julgo que esta descrença no sufrágio advém do fato de, hoje, as principais decisões não serem efetivamente sufragadas, ou, se o são são-no de forma muito indireta, como é o caso das diretivas europeias que, hoje, são transcritas para o direito nacional sem que os eleitores de cada país tenham poder decisório efetivo sobre as mesmas. Ou então na forma como algumas medidas de austeridade se apresentam como inevitáveis para evitar uma não sufragada imposição por parte de organismos internacionais, como seja o FMI.

Ou seja, o voto vale cada vez menos e, consciente disso, o eleitor vota cada vez menos e assim se abala o segundo dos três pilares em que assenta o Novo Acordo Social.

O terceiro pilar está de certa forma relacionado com o anterior e assenta na confiança do eleitor no seu eleito, na crença de que este será o seu efetivo procurador no estabelecimento de equilíbrios com os grandes detentores dos meios de produção. Acontece que esta crença está cada vez mais abalada pela pública e notória promiscuidade que se verifica entre os putativos procuradores dos cidadãos e os grandes concentradores de riqueza. Seja pela facilidade com que aqueles transitam das grandes empresas para a política, seja pela mesma facilidade com que passam da política para as grandes empresas.

A este propósito lembro-me de há não muito tempo ter ouvido um banqueiro português dizer numa entrevista que chamara a atenção dum deputado legitimamente eleito, e portanto titular dum órgão de soberania, para a inconveniência duma certa declaração que este fizera. Acresce o fato de que esse deputado era quadro daquele banco… Quando os banqueiros já nem sequer escondem a preponderância que têm sobre os eleitos e os tratam como meros funcionários, não nos deve admirar que os cidadãos percam a confiança nestes enquanto fieis duma balança tendente ao equilíbrio social e económico.

Temos assim que que estão a cair, se não caíram já, os três pilares em que assentava a paz social da segunda metade do século XX. O tal Novo Acordo Social que terminara com a conflitualidade sangrenta da segunda metade do século XIX e que teve o condão de transformar a generalidade da população em Classe Média, debelando de uma forma quase total a pobreza extrema.

Hoje, a globalização tornou a concertação numa farsa. Hoje os cidadãos deixaram de acreditar na eficácia do sufrágio e, hoje, já não conseguem também ver os seus representantes como seus procuradores.

Posto isto, que instrumentos têm para exprimir a sua revolta? A greve, de tanto ser um direito, foi de tal forma institucionalizada que se tornou praticamente ineficaz como instrumento de pressão. A lei prevê pré-avisos, serviços mínimos, requisições civis. Enfim, uma série de mecanismos destinados a torná-la quase inócua. Acresce a isto o fato de apenas poder ser convocada por um sindicato e da representatividade sindical estar também ela institucionalizada e com boa parte dos mesmos problemas da representatividade política de que já aqui falei.

A insatisfação tem horror ao vazio e é por isso que vão surgindo surgindo novas formas de expressão, levadas a cabo pela imaginação duma classe média culta e criativa que sabe tirar partido dos mecanismos tecnológicos de comunicação que hoje tem ao seu dispor. Não sei como foi convocada a paralisação dos controladores de tráfego aéreo em Espanha. Mas não me admiraria que um deles tivesse desencadeado uma cadeia de SMS que levou à ação, ou então que tenha sido utilizado o Facebook, ou o simples email.

Uma coisa é certa: se tivessem convocado uma greve a sua ação teria sido irrelevante. Mas feitas as coisas desta forma, não foi, bem longe disso.

Podem os responsáveis políticos pôr processos disciplinares e dizer que a paralisação foi ilegal. É certo que foi e por isso é que não foi inócua e esquecem-se os que isto dizem que, há uns cem anos, qualquer greve seria ilegal em qualquer país do Ocidente e que, há pouco mais do que três décadas ,qualquer uma seria ilegal em Espanha.

Outro caso, agora.

Depois dos documentos que lançou sobre a guerra do Iraque e, mais recentemente, sobre a diplomacia americana, a Wikileaks diz que os próximos serão sobre a banca americana. E duma coisa não duvido: Se estivessemos perante um dos tradicionais órgãos de comunicação que, hoje, as tais forças centrípetas controlam obrigando os jornalistas a uma submissão que desconhecíamos há bem pouco tempo, Julian Assange jamais teria sido capaz de apresentar ao mundo tudo o que tem revelado e que, é certo, depois de conhecido, a imprensa tem feito eco.

Bem podem montar-lhe as armadilhas que lhe têm montado (a ultima das quais tem a pérfida de tentar impedir que o comité Nobel lhe possa atribuir um Nobel da Paz, como bem me notou um amigo), tentar silenciar-lhe os servidores, editar Fatahs de morte como a que foi proferida por um assessor do Primeiro-ministro canadiano que sem estremecer disse que Assange deveria ser assassinado (ver http://www.youtube.com/watch?v=bqtIafdoH_g). Até uma “choruda” conta bancária de trinta mil euros já lhe congelaram. Bem podem, mas um fato é inegavel: Assange abalou o sistema de uma maneira que as “formas de luta” institucionalizadas pelo sistema jamais seriam capazes de alcançar.

Se na segunda metade do século XX a classe média conseguiu impor um Novo Acordo Social, isso deve-se ao fato de muitos terem feito greves que eram ilegais no seu tempo. Ao fato de muitos jornalistas terem denunciado situações que hoje já não podem devido à pressão dos detentores dos meios.

Para uma classe média em erosão, uma classe média que vê a pobreza já não como algo de longínquo, a quem cavam cada vez mais fundo o fosso que a separa dos mais ricos, que está a sofrer o maior ataque dos últimos sessenta anos, que vê os seus filhos morrer e os seus recursos serem consumidos em guerras em que não acredita, que já não crê na viabilidade da concertação, que já não pode confiar no sufrágio como instrumento de intervenção política, que já não acredita que os seus eleitos a representem, a quem tolheram a eficácia aos seus meios de manifestação do descontentamento... A essa classe média já não lhe resta mais do que a sua criatividade; uma criatividade que é uma forma de ultrapassar os constrangimentos que lhe impõem, uma forma de dizer um efetivo “não”.

O que está em causa é a manutenção do próprio regime em que eu, e creio que a maioria, gosto de viver: chamamos-lhe Democracia. Essa fantástica criação que garante que o poder do dinheiro é mitigado pelo poder do sufrágio. É nesse regime que eu quero continuar a viver e sei que, desaparecendo a classe média, desaparece também o regime.

É por isso que eu estou com os controladores de tráfego aéreo espanhóis, é por isso que estou com Julian Assange. Qualquer reformista, qualquer Social-democrata, qualquer democrata-cristão, deveria estar também.

É talvez a altura de terminar com as já aqui citadas palavras de Yves Lequin: "O great labour unrest da Belle Époque resulta do cansaço diante dos palavreados parlamentares e da ansiedade que, como se sabe, desorienta."

Luís Novais
2010.12.06

Foto: SXC

3 comentários:

  1. Notável Luis Novais!
    Uma síntese clara , uma análise profunda e uma poderosa fonte inspiradora e mobilizadora!

    Um democrata cristão que não se revê na actual democracia cristã portuguesa, nem no grande partido PSDPS.

    Acrescentaria: a manifestação espontânea deve substituir-se à greve na manifestação contra a forma como somos governados nas duas últimas décadas!

    Carlos Jerónimo

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  2. Bravo. Falta dizer isto mais alto. E espalhá-lo. É assutador pensar que estamos mais próximos de uma revolução do que muitos imaginam possível. Mas não parece haver outra saída. Ou isso ou perecemos todos, num futuro com grandes tendências Orwellianas.

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  3. Pois... percebo a sua ideia "de reformista"e da espontâneidade... Mas não não me parece que a coisa tenha funcionado assim... há aqui o esquecimento de algo grave e manipulador: o facto de os controladores espanhóis ganharem quse todos cerca de 30.000 euros MÊS após anos de GRANDES manipulações/intervenções sindicais que levaram a uma situação claramente insustentável e o Estado espanhol querer equilibrar as coisas. Não necessitaremos, isso sim, de um sindicalismo responsável e não "chupista"l? Em Portugal esse é seguramente necessário, não tenho dúvidas. Mas a revolta é necessária, sem dúvida, mas será apenas quando as pessoas, as mais competentes, se interessarem por intervir na politica, intervir, sem medo, dentro dos próprios partidos. De outra forma será apenas folclore sem consequências.

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