Sanguinetti pertence a uma geração que toda a vida lutou pela Democracia representativa na América Latina, que acreditou que a Democracia traria liberdade, que traria mais justiça social. Nos nossos dias, esta geração vê-se confrontada com a realidade: o modelo que defendiam é, hoje, hegemónico mas cheio de debilidades e, por outro lado, as massas sem as quais não há a tal intermediação representativa, afastam-se cada vez mais dos seus representantes, não os reconhecendo e tornando-se em seara dos que defendem outras formas de Democracia menos elitistas e mais populares, menos intermediadas e mais diretas.
Esta semana assisti a numa conferência proferida por José Maria Sanguinetti na Universidade de Lima. Duas vezes Presidente do Uruguai (1985-1990 e 1995-2000), nascido em 1936, Sanguinetti entrou para a política em 1963, como deputado. O golpe militar de 1973, que instaurou a chamada ditadura civil e militar, encontrou-o como ministro da Educação. Demitido dessa função após o golpe e privado de todos os direitos políticos em 1976, dedicou-se ao jornalismo, defendendo sempre a causa do Estado de Direito Democrático e, em 1981, fez parte da comissão interpartidária que negociou com os militares a transição pacífica para a Democracia. Em 1985 viria a ser o primeiro Presidente eleito depois de 12 anos de ditadura.
O homem que me preparava para ouvir pertencia, portanto, à geração ideológica que, na América Latina, pugnou pela Democracia Representativa, pelo Estado de Direito Democrático. O meu principal interesse nesta conferência consistia em perceber como é que essa geração perspetiva o momento atual. O tema prometia: “Nuestra America Latina en la Nueva Globalización”. O orador não frustrou a minha expetativa.
O mote para a intervenção, seria dado pela Reitora da Universidade de Lima, que fez um breve discurso prévio: “Vivemos tempos de globalização, mas também de confusão”.
Sangunetti seguiria precisamente esse caminho e, na forma como o fez, mostrou a angustia hoje sentida pelos da sua geração. Primeiro, abordou as incertezas do presente: “já nada resta das certezas do século XX e eu pertenço a uma geração que passou por todas elas. Quando nasci, as opções que se colocavam eram muito claras: a via do fascismo, do liberalismo ou do comunismo. Uns optavam por uma, outros, por outra. Mas não havia dúvida sobre onde nos posicionarmos”. Depois, “ficamos com a opção marxista ou a liberal. O marxismo falhou quando acreditou que o Estado poderia resolver todos os problemas e por isso, nos finais do Sec. XX, parecia que nos restava uma última certeza, uma última opção: o liberalismo”. Mas também esta opção acabaria por mostras as suas debilidades, “antítese do comunismo, o liberalismo, como hoje bem se vê, falhou porque acreditou que o mercado, por si só, poderia resolver tudo”.
Daqui, partiu para a angustia pós-moderna das “verdades” construídas. “Hoje estamos sobre-noticiados e sub-informados. A globalização não é uma ideologia, mas antes o resultado dos desenvolvimentos tecnológicos que nos permitem um acesso permanente à informação, um acervo tão grande que não estamos preparados para digerir”.
Destaco esta última parte, porque me parece ser esta a situação que realmente angustia a sua geração de velhos democratas, formados na tradição jacobina que originaria o modelo da Democracia representativa que hoje é consensual em todo o mundo, ao ponto de até as ditaduras procurarem legitimar-se através duma paródia eleitoral, como recordou Fareed Zakaria (“The Future of Freedom”).
Fiel à sua origem jacobina, a Democracia representativa é, também, um regime aristocrático, onde governam as elites que são eleitas e onde há todo um sistema de filtros que garante que o poder esteja nas mãos dessas elites. Sanguinetti, a sua geração, deverão rever-se no pensamento de Zakaria: os problemas que a Democracia enfrenta, são de excesso de Democracia e de perda de poder das elites. Ou seja, a única forma de defender a Democracia seria, na opinião do conhecido neoconservador norte-americano, com menos Democracia.
Será por isso que, “nesta época de globalização mas também de confusão”, Sanguinetti destaca tanto a questão das tecnologias e do excessivo acesso à informação que elas proporcionam. Ou seja, o povo não está preparado para digerir tanta informação, somos necessários “nós”, os seus representantes, os seus intermediários, para pensar em seu nome e para o dirigir.
A forma como o velho democrata terminou a conferência é bem significativa desta visão. “O homem que transformou o mundo”, diz, “não foi Gorbachov mas sim Deng Xiao Ping. Estava a Perestroika a decorrer quando me encontrei com o líder chinês. Perguntei-lhe: o que pensa de Gorbachov? Está perdido, disse-me, quer fazer a reforma política antes de fazer a reforma económica, esquece-se de que a reforma política come a reforma económica e, depois, esta come aquela”. Sanguinetti elogiaria este pensamento, num reconhecimento implícito do imperativo da elite. Uma posição curiosa dum democrata em relação ao ditador de Tianamen.
Tudo o que ouvia, levava-me a sentir o desconforto da sua geração. Por um lado, o acesso à informação e a fácil partilha, estão a fazer despontar novas reivindicações de Democracia popular e desintermediada. Por outro lado, a Democracia elitista que sempre defenderam, dá provas de não estar consolidada. “Na América Latina”, disse”, “já temos eleições em quase todos os países. Mas não basta isso para fazer uma Democracia. Em alguns países, por exemplo, sofremos dum modelo de autosucessão cesarista, uma eternização no poder, quer seja individual quer seja familiar”. Também a liberdade de imprensa continua a não ser uma garantia, “como se viu recentemente no Equador, onde uma farsa judicial pressionada pelo Presidente, levou a que um jornal fosse multado em 20 milhões de dólares”. Isto para concluir que “a nossa Democracia ainda tem muitas debilidades, inclusive no domínio social. As estatísticas da diminuição da pobreza em alguns países são ilusórias. Esses que saíram da pobreza extrema graças a apoios do Estado, não estão a ganhar autonomia e, se lhes retiram o apoio, regressam à situação anterior”.
Sanguinetti pertence a uma geração que toda a vida lutou pela Democracia representativa na América Latina, que acreditou que a Democracia traria liberdade, que traria mais justiça social. Nos nossos dias, esta geração vê-se confrontada com a realidade: o modelo que defendiam é, hoje, hegemónico mas cheio de debilidades e, por outro lado, as massas sem as quais não há a tal intermediação representativa, afastam-se cada vez mais dos seus representantes, não os reconhecendo e tornando-se em seara dos que defendem outras formas de Democracia menos elitistas e mais populares, menos intermediadas e mais diretas.
Não admira portanto que, para ele e para a sua geração, estejamos a “viver tempos de globalização, mas também de confusão”.
Luís Novais