Em nome dum capitalismo que já não tem qualquer tipo de ética e que tem poder para levar os Estados a esquecerem que o contrato social serve para proteger os cidadãos e não o lucro de algumas multinacionais, estamos a assistir ao maior e mais impune ato de pirataria alguma vez ocorrido: uns, roubam-nos a capacidade de sermos nós; outros, apropriam-se dum património, o natural, que é de todos.
Ontem fui surpreendido por esta notícia: o consumo de medicação infantil para a concentração aumentou 78% em cinco anos. De acordo com a mesma, um pediatra alertou para a ruptura no fornecimento de uma dessas drogas, com uma afirmação que me estarreceu: “As crianças querem estudar e não conseguem. Sem estudo e concentração não conseguem boas notas. Estão a ser empurradas para o insucesso e até para a reprovação” (ionline)
Dias antes, li algo que, não estando aparentemente relacionado, liguei imediatamente com esta situação. No artigo “A ditadura chegou ao campo” (JN), Daniel Deusdado dá conta de que “o esmagador poder financeiro da indústria química quer multiplicar leis, por todo o Mundo, para impedir os agricultores de serem livres de usar sementes não certificadas nas colheitas seguintes”. Deusdado dá o exemplo da Monsanto, uma multinacional da manipulação genética “que consegue perseguir e levar à falência vários produtores rurais. O argumento é simples: se no campo deste agricultor houver plantas cultivadas com sementes Monsanto e ele não for cliente da empresa, é processado por estar a usar sementes patenteadas, mesmo que elas tenham sido propagadas pelo vento e estejam misturadas com as suas”. Em seguida, conclui que “a natureza passou a ter dono” e, ligando este artigo ao anterior, eu diria que a nossa cabeça também.
Todas as crianças que estão agora a ser medicadas, serão adultos dependentes do consumo dum químico para desenvolverem uma atividade e para se socializarem. Ninguém questiona a dependência que isso cria?
Na minha infância, ao contrário de me encherem a cabeça de químicos, os meus pais falavam-me dos perigos da toxicodependência e alertavam-me em relação a umas pessoas a quem chamavam traficantes. Hoje, esses traficantes usam gravata, visitam consultórios, oferecem viagens e patrocinam congressos. Testas de ferro duma indústria poderosíssima e que absorve milhões de dólares de investimento, estão a criar uma dependência química de que muitas das nossas crianças padecerão até ao último dos seus dias.
Este autêntico narcotráfico parece-me tão mais irreal, quanto por todo o mundo se intensificam as campanhas contra o consumo de outros estupefacientes, os ilegais, ao mesmo tempo que os seus agentes, sejam produtores, “grossistas” ou “retalhistas”, são denunciados, perseguidos e presos.
Entender, não entendo e, por isso, lembro-me de Enzenberger e do seu livro “Política e Crime”: “o que é punido é um crime, o que é um crime é punido; tudo aquilo que é punível merece ser punido e vice-versa. O modelo sintático deste género de definição deve ser procurado no dogma bíblico: ‘Eu sou Aquele que é’. Coloca-se o legislador para além de toda a lógica, para além de toda a racionalidade”. A este propósito, refere o mesmo autor, tanto na enciclopédia britânica como na legislação alemã, o crime é definido duma forma muito simples: crime é tudo o que constitua uma infração à legislação criminal, ponto final.
Só dentro desta lógica, em que a lei é irracional e está a servir de guardiã do modelo económico capitalista e de protetora dos interesses das grandes multinacionais, se pode compreender tal dualidade de critérios entre “bom” e o “mau” narcotraficante.
Argumentam os defensores destas medicações que, assim, se consegue aumentar a concentração e memória das crianças para, nas palavras de uma progenitora entrevistada no artigo em questão, “poderem lidar com a guerra da escola e os novos desafios”. Remeto-me para a célebre frase de Jiddu Krishnamurti: “Não é uma boa aferição de saúde, estar bem adaptado a uma sociedade profundamente doente”.
É doente, uma sociedade que não ensina aos seus filhos que a realização está em descobrirem e desenvolverem as suas próprias potencialidades, mas que, pelo contrário, lhes incute uma noção de sucesso por pressão social, que vem de fora para dentro em vez de dentro para fora, nem que seja à custa de lhes dopar o cérebro, nem que seja à custa de deixarem de ser proprietários do seu ser, meros gestores dum corpo cujo pensamento está arrendado à Novartis, o laboratório que produz a mais conhecida dessas drogas.
Daqui, regresso à coluna de Deusdado, porque as consequências daquilo que se passa com a Monsanto são similares. Acaso a Monsanto criou o milho, a batata, o feijão ou o arroz? Não, tudo isto nos foi dado pela natureza ou por Deus, conforme as crenças, e resultou dum processo de desenvolvimento que demorou milhares, ou melhor, milhões de anos. Com que direito as monsantos deste mundo pegam num património que é de todos e, modificando-lhe algo, se consideram donas e senhoras do que nos pertence? Acaso pagam à humanidade direitos sobre o património que modificaram? E tudo isto, chegando-se ao ponto de, por outro processo de manipulação, o político, podermos ser condenados por semear um pé de feijão sem lhes pagar direitos. É que, além da pressão no legislador para que se acabe com as sementes tradicionais, as plantas manipuladas também contaminam as naturais e, se a Monsanto me pode processar por uma contaminação de que não fui responsável, eu não posso processar a Monsanto por me contaminar uma produção que quero que continue a ser natural.
Recentemente, a questão da pirataria voltou às páginas dos jornais depois de, no Golfo de Aden, surgirem uns maltrapilhos que saqueavam os cargueiros que por aí passavam. Para os combater foram convocados exércitos de todo o mundo e aquela zona é, agora, das mais policiadas do globo.
Quando oiço falar de pirataria, recordo também notícias esparsas de uma ou outra pessoa que foi condenada por ter transferido um ou mais ficheiros musicais na internet.
Ao mesmo tempo, e em nome dum capitalismo que já não tem qualquer tipo de ética e que tem poder para levar os Estados a esquecerem que o contrato social serve para proteger os cidadãos e não o lucro de algumas multinacionais, estamos a assistir ao maior e mais impune ato de pirataria alguma vez ocorrido: uns, roubam-nos a capacidade de sermos nós; outros, apropriam-se dum património, o natural, que é de todos. E a única razão que encontro para que os primeiros não sejam considerados narcotraficantes e piratas os segundos, é a citada explicação de Enzenberger: fora de qualquer lógica, crime é aquilo que a lei considera crime, ponto final.
PS: Para quando, a manipulação da água e do ar?
Luís Novais
Muito bem escrito Luís. Queria complementar falando das multinacionais da injustiça que existe na investigação médica. só as doenças dos países desenvolvidos são estudadas porque são os únicos que tem dinheiro para pagar. A Malária que mata mais de 2 milhões de pessoas todos os anos em África ainda não tem vacina. Está o Bill Gates agora a financiar um programa de investigação porque não existe um único laboratório que queira pegar no assunto. Imagina se a malária fosse uma doença dos países europeus ... Já estou a ver a Monsanto a criar um mosquito que não propague a malária e depois multar as pessoas por serem mordidas pelo mosquito deles ...
ResponderEliminarHá muitos anos, julgo que ainda nos finais da década de oitenta, vi um programa na RTP2 sobre a Monsanto. Não me surpreende que o problema continue e se tenha agravado. O mundo está a saque dos senhores da gravata desde que caiu o Muro de Berlim. Embandeirámos em arco, julgámos que era um triunfo da liberdade no mundo e afinal...
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