“Esse porco filho da puta pode, por exemplo, fazer com que a tua
produção de trigo se valorize ou desvalorize dois anos antes de sequer ser
semeada. Na verdade, pode comprar-te, sem que tu saibas da operação, uma
colheita inexistente e vendê-la a um terceiro, que a venderá a um quarto e este
a um quinto, e pode conseguir, de acordo com os seus interesses, que durante
esse processo delirante o preço desse trigo quimérico dispare ou se afunde sem
que tu ganhes mais caso suba, apesar de te deixar na merda se descer.“
Assim se refere o articulista do El Pais Juan José Millás à economia financeira, num texto que incendiou as redes sociais espanholas e que a “Dinheiro Vivo”acaba de traduzir e publicar (ver artigo completo).
Ao longo da História foi sempre desta forma que os donos dos sistemas dominantes afirmaram o seu poder. É célebre o discurso das mãos e do estômago com que Menénio Agripa procurou convencer a plebe romana. Podemos imaginar
semelhante argumentação num industrial de Manchester oitocentista falando aos
seus operários quase mortos de fome: “agora que fostes expulsos dos vossos
campos, só eu vos posso garantir que a fome não seja completa”. Ou dum senhor
feudal: “se eu não vos organizo quem vos vai defender dos inimigos que nos
podem atacar?” No fundo, o argumento foi e é sempre o mesmo: “podemos não ser
bons mas não tendes alternativa”. A História sempre se encarregou de lhes tirar
razão: tal como nas pessoas, não há sistemas insubstituíveis.
Ninguém se lembrou de dizer ao Senhor feudal que se poderiam
organizar num sistema democrático, assim como ninguém disse a Agripa que estava
a meter as mãos pelos estômago porque a sociedade poderia ser mecânica e não
orgânica, para usar os conceitos de Durkheim.
Hoje, fazem-nos crer que não há alternativa a esta economia
financeira que, dominando a produtiva, nos domina a todos. Apostam no medo, no
horror ao vácuo que se produz ante a possibilidade de, a este mal, se suceder
mal pior que é o vazio. Procura-se até confundir Ocidente com capitalismo, como
se o fim deste fosse o fim daquele; uma óbvia mentira se considerarmos que
temos séculos de cultura ocidental e apenas 200 anos de capitalismo como
sistema dominante.
Mas sim, a pergunta é essa mesma: o agricultor tem de comer
antes de colher o trigo e pode morrer de fome se a colheita for má. Que
alternativa a uma economia financeira que é também uma almofada (ainda que de
cimento) para este risco?
As respostas são fáceis. Se não as encontramos é tão só porque costumamos
sofrer de dois centripetismos: o cronológico e o cultural. O primeiro apenas
nos permite ver o nosso tempo, o segundo impede-nos de buscar soluções fora da
nossa cultura.
O que nos ensina cronos?
Ensina-nos que a humanidade sempre foi
capaz de encontrar soluções. Já aqui abordei este tema (A Grande Apropriação,ou a Falácia do Estado Social): perante a desproteção social completa em que se encontravam
os primeiros operários do Sec XIX, estes souberam aproveitar a tradição
comunitária que traziam do mundo rural e auto-organizaram-se em sociedades
mutualistas, capazes de lhes garantir alguma estabilidade.
Em Inglaterra, por exemplo, as Friendly Societies contavam com 1 milhão de sócios em 1850 e 4 milhões em 1872. Em 1913, na Alemanha, 16 milhões de operários estavam associados em diversas caixas de invalidez e velhice (Y. Lequin). Igualmente fruto da auto-organização daquilo a que hoje chamaríamos “sociedade civil”, foram surgindo inúmeras cooperativas de consumo que pretendiam salvaguardar produtores e consumidores dos ataques especulativos e garantir, assim, um controlo sobre o preço dos bens de consumo. Por volta de 1860, esta tendência alargou-se ao crédito com o aparecimento de associações de crédito mútuo, com origem na Alemanha.
Em Inglaterra, por exemplo, as Friendly Societies contavam com 1 milhão de sócios em 1850 e 4 milhões em 1872. Em 1913, na Alemanha, 16 milhões de operários estavam associados em diversas caixas de invalidez e velhice (Y. Lequin). Igualmente fruto da auto-organização daquilo a que hoje chamaríamos “sociedade civil”, foram surgindo inúmeras cooperativas de consumo que pretendiam salvaguardar produtores e consumidores dos ataques especulativos e garantir, assim, um controlo sobre o preço dos bens de consumo. Por volta de 1860, esta tendência alargou-se ao crédito com o aparecimento de associações de crédito mútuo, com origem na Alemanha.
É deste movimento e do seu exemplo que mais tarde o Estado se aproveitará para
começar a criar aquilo em que nos nossos dias se tornou a mastodôntica
burocracia social (C Ward).
Se as coisas tivessem seguido o seu rumo natural, a segurança social estaria agora a ser gerido por pequenas e médias organizações mutualistas de âmbito territorial ou social, com uma profunda ligação aos seus utentes, porque por eles criadas, geridas e controladas. Organizações que, tanto pela sua dimensão como pela proximidade ao utilizador, teriam, como tiveram no passado, uma estrutura burocrática muito leve. Mas, é claro, com esta fórmula não se teria dado emprego a uma elite político-partidária cada vez mais ávida e, na fase em que estamos, não se encontrariam argumentos para que, por ingovernabilidade do sistema, o Estado pudesse entregar de mão beijada a nossa assistência social a grupos económicos cujos cadastros não nos deveriam deixar nada descansados.
Se as coisas tivessem seguido o seu rumo natural, a segurança social estaria agora a ser gerido por pequenas e médias organizações mutualistas de âmbito territorial ou social, com uma profunda ligação aos seus utentes, porque por eles criadas, geridas e controladas. Organizações que, tanto pela sua dimensão como pela proximidade ao utilizador, teriam, como tiveram no passado, uma estrutura burocrática muito leve. Mas, é claro, com esta fórmula não se teria dado emprego a uma elite político-partidária cada vez mais ávida e, na fase em que estamos, não se encontrariam argumentos para que, por ingovernabilidade do sistema, o Estado pudesse entregar de mão beijada a nossa assistência social a grupos económicos cujos cadastros não nos deveriam deixar nada descansados.
O que nos ensinam outras culturas?
Socorro-me dum só exemplo: as culturas andinas
pré-hispânicas, normalmente englobadas no conceito de Império Inca. Antes da chegada
dos espanhóis em 1533, esta região era talvez a mais avançada do mundo dos
pontos de vista social, alimentar e, arriscaria até, científico.
Apenas num ou dois aspetos estavam atrás da Europa de
então: o primeiro e central foi o militar, o segundo, talvez o da filosofia/teologia.
Foi com o primeiro que foram dominados e foi com o segundo que foram colonizados.
Isto não obstante os seus claros avanços nas demais áreas, bastando recordar o
que aconteceu à demografia europeia quando aqui chegaram as espécies agrícolas
desenvolvidas e melhoradas no mundo andino.
A economia dos incas era profundamente rural e obviamente
que padecia dos riscos naturais inerentes: secas, cheias, desastres… e no
entanto não havia fome nem subnutrição. Porquê? Primeiro porque o usufruto da
terra era privado mas a posse era comunitária, ou seja, quando alguém morria a
terra voltava à comunidade e quando alguém chegava à idade de trabalhar a
comunidade entregava-lhe um campo para que dele usufruisse. Com isto, garantiam
um elevado nível de igualdade social (ainda que no âmbito duma sociedade que
não era igualitarista). Garantiam também que heranças sucessivamente divididas
não depauperassem o ciclo geracional e, já agora, que a transação não
resultasse em bolhas especulativas que levassem alguns a destruir a riqueza de
quase todos.
O melhor que o Ocidente desse tempo conseguiu para
responder a estes riscos foi a injustiça do morgadio e dos bens de alma… julgo
que estamos conversados.
Mas o que mais me interessa enfocar é o sistema de
segurança alimentar mútua: cada família entregava uma parte da sua produção
para celeiros comuns que asseguravam que uma boa colheita numa região pudesse
acudir a uma má colheita noutra… ou seja, já nesse tempo garantiam a segurança
alimentar sem precisarem de se submeter à caridade ou de se sujeitarem a essa
almofada de cimento que é o mercado de futuros.
Uma alternativa à economia financeira.
Em conclusão, é obviamente falacioso o argumento
daqueles que dizem que não temos alternativa à financiarização da economia e
que este modelo de capitalismo é o melhor dos mundos possíveis. Todos os
regímenes dominantes argumentaram que estavam a oferecer esse tal melhor mundo
e todos caíram.
A base da economia tem de voltar a ser a produção e, se
perdermos a cegueira que nos impede de olhar para a História e para outras
culturas, há claras alternativas ao modelo em que estamos a viver. Basta que
pensemos mais em cooperação e menos em competição, mais em solidariedade e
menos em caridade, mais em mutualismo e menos em assistência. Em suma, o
segredo está em usarmos a entreajuda para que o risco deixe de ser um produto
transacionado, um produto que depaupera muitos e enriquece alguns.
Só não vê quem não quer… ou quem ganha com isso.
Luís Novais