domingo, 5 de agosto de 2012

O "EU" COMO SHARE

Menos de vinte dias depois do assassino de Denver matar 14 pessoas numa antestreia cinematográfica de Batman, ligo a televisão e em direto fico a saber de mais um massacre, desta feita em Wisconsin: um atirador acaba de entrar num templo Sikh e está a disparar sobre os crentes. Dois casos que são a espuma dos dias do imenso rol de serial killers que as últimas décadas produziram. Já não são necessárias ameaças externas: o terror mora cada vez mais na casa ao lado.

Num momento em que se acentuam as clivagens do nosso modelo económico e social, será útil debater o porquê destes fenómenos.

A nossa “aldeia global” está a tornar-se cada vez mais em substituto do absoluto perdido. Essa nostalgia de que nos fala George Steiner: a mitologia de cariz mágico e religioso foi substituída por um modelo de racionalidade científica, mas esse modelo mostrou-se incapaz de nos devolver a integração. Seremos a única espécie que tem esse problema, recorda Damásio: sabemos que somos, temos uma memória autobiográfica, criamos um personagem “eu”. Mas essa consciência de “mim” arrasta a consciência de “ti”; o “eu” nasce ao mesmo tempo que o “outro” e assim surge a mais humana das angústias, a da unidade perdida.

A incapacidade da ciência para nos dar terra firme neste mar agitado, conduziu-nos à pós-modernidade: matando-se a transcendência, matou-se a Verdade. Saudosos ainda que descrentes, substituímo-la pela palavra, pelo discurso, pelos modelos comunicacionais que, bem geridos por alguns, procuram imprimir uma verdade que é construída em cima desse ser inconsequente chamado Opinião Pública. A dialética política dos nossos dias é isto mesmo, ainda que levado às últimas consequências.

Paulatinamente, a verdade substituiu a Verdade e, perdido o helénico absoluto, a integração do “eu” procura cumprir-se na vontade de ser uma ideia em pensamento alheio. Há uma corrida louca pela invasão desse território impalpável, há uma guerra constante pela ocupação dum espaço que seja nosso nessas mentes que são de outros.

Marketing, marca, Comunicação… o criador é assimilado pela criatura; técnicas pensadas para produtos transformam-se numa nova eucaristia que deturpadamente nos resolve o problema ontogénico. Metamorfoseamo-nos em coisa e passamos a ser o que formos no outro. O que interessa é ser no outro. Voltar ao absoluto estando no pensamento do outro. Ter um share mental. Ser conhecido.

Até que, subitamente, um homem pega numa arma e mata 14 pessoas num cinema. Outro entra num templo e na altura em que escrevo ainda não sei quantas matou.… Surpreendente? Não, apenas dois casos de patologia extrema num modelo de sociedade que está profundamente doente.

Luís Novais

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