(Artigo publicado nos "Cadernos de Literatura Comparada". Revista da Faculdade de Letras da Universidade do Porto... ao escrevê-lo, surpreendi-me com a actualidade que fui descobrindo em Dickens)
O tempo é a maior prisão de
qualquer criador. Influenciados pelo passado, alguns que raramente ficam para a
História; influenciados pelas correntes do seu tempo, outros que, sem tocarem a
genialidade, escreveram grandes obras; influenciados pelo futuro, os
verdadeiros génios, entre os quais incluo aquele escritor que mais me comove,
Dostoievsky, ou, noutras artes, el Greco e Bosch.
Podemos fugir da nossa aldeia, da
nossa cidade, do nosso país, ou, como fizeram alguns grandes artistas, até
deste nosso mundo. Mas o tempo é uma correia que nos prende e da qual muito
dificilmente nos desatamos.
Nascido em 1812, Charles Dickens
foi um escritor do seu espaço e do seu tempo. Um tempo de pax britânica em que, como noutras épocas semelhantes, a História
parecia ter chegado ao fim.
Dois anos depois do seu
nascimento, o Congresso de Viena viria a estabelecer uma nova ordem mundial, abrindo
portas ao domínio internacionalista do Reino Unido. Estava perdida a quimera
napoleónica e, com ela, a viabilidade dum modelo continental europeu que pudesse
fazer frente a um mundo anglo-saxónico. Uma quimera que, aliás, preparou, isso
sim, o desmoronamento dos pólos continentais que poderiam contrariar essa
hegemonia: a queda do império espanhol e a dissolução do Sagrado Império
Germano Romano, com a consequente criação do Austríaco, que nunca deixaria de
caminhar sob o peso das suas contradições internas.
Mais a ocidente, em 1822, o
Brasil assumia a independência e, com ela, caía o sonho atlantista de D. João
VI, consubstanciado na criação, sete anos antes, do Reino Unido de Portugal,
Brasil e Algarves. Assim se desmoronava, também, a possibilidade de uma frente
atlântica capaz de contrabalançar o pleno domínio britânico.
A Oriente e Ocidente, o cenário
era idêntico. O Império Otomano estremecia face a conflitos como a guerra da
independência grega, a Rússia não despertava do grande sono feudal (à sombra do
qual viu nascer uma literatura de exceção universal), os Estados Unidos estavam
em formação e voltados para a criação dum império interno e a América Latina
mal despontava. Por último, as potências orientais estavam dominadas colonial
ou militarmente e a África subsariana transformara-se numa possessão europeia,
estrategicamente controlada pelo Reino Unido.
Nada parecia capaz de fazer
frente ao poderio do império britânico e as ameaças à sua estabilidade não vinham
já da frente externa, mas da desproporção social que a Revolução Industrial
criara. “Não é possível mudar”, diria o nosso Eça numa das suas “Cartas de
Inglaterra, “O esforço humano consegue, quanto muito, converter um proletário
faminto numa burguesia farta; mas surge logo das entranhas da sociedade um
proletário pior”.
Dickens nasceu 36 anos depois de
Adam Smith escrever frases lapidares que marcariam (e marcam) uma época: “Ainda
que (o indivíduo) não pretenda promover o interesse comum, nem saiba quanto o
está a promover (…) perseguindo o seu interesse egoísta ele promove mais o da
sociedade do que quando está a pretender fazê-lo declaradamente. Eu nunca vi
grande bem, feito por aqueles que se mostram muito comovidos com o bem-estar
público” (A Riqueza das Nações).
Talvez pela primeira vez na
História, e seguramente que na do cristianismo, a moral passa a estar na atitude
individualista. Agia moralmente aquele que pensasse exclusivamente em si, pois
desse egoísmo nasceria o bem comum.
Conhecem-se bem as consequências
da libertação da besta individualista, tanto no tempo da Revolução Industrial
em que viveu Dickens, como no da economia financeira em que vivemos hoje. Dizia
Eça, nas mesmas cartas, a propósito da hipocrisia do Natal inglês: “basta então
ver uma pobre criança, pasmada diante da vitrine
de uma loja, e com os olhos em lágrimas para uma boneca de pataco, que ela
nunca poderá apertar nos seus miseráveis braços – para que se chegue à fácil
conclusão que isto é um mundo abominável. Deste sentimento nascem algumas
caridades de Natal; mas, findas as consoadas, o egoísmo parte à desfilada,
ninguém torna a pensar nos mais pobres, a não ser alguns revolucionários
endurecidos, dignos do cárcere – e a miséria continua a gemer no seu canto!”
Dickens experienciou as
consequências sociais da Revolução Industrial. Filho dum endividado funcionário
da baixa burguesia, com 12 anos é obrigado a deixar a escola e a trabalhar
colando rótulos em frascos de graxa. Uma vivência da realidade da vida operária
que, mais tarde, influenciaria obras como David
Copperfield ou Oliver Twist.
Quando Dickens começa a escrever,
estava praticamente concluída a obra dos primeiros socialistas, os reformistas,
e é propositadamente que não lhes chamo utópicos: Saint-Simon (1769-1825), Charles
Fourier (1772-1837) e Robert Owen (1771-1858).
Nascido dois anos antes de
Bakunine, três antes de Proudhon e seis antes de Marx, Dickens é,
essencialmente, um contemporâneo do pensamento socialista mais revolucionário
e, ainda que não se sinta na sua obra um claro pulsar da revolução, é-lhe
patente uma progressiva denúncia das causas das injustiças sociais do seu tempo.
Apreciada nos salões, a sua prosa, que começara por ser de pendor moralista, torna-se
gradualmente mais tenaz e denunciadora, acompanhando, ainda que de longe, o
desenvolvimento das principais teorias socialistas revolucionárias. De um certo
sentimentalismo patente em As Aventuras
de Pickwick (1836) ou Oliver Twist
(1837), até à cruel denúncia social de Dombey
e Filho (1848) e David Copperfield
(1850), vai um caminhar que acompanha, ao longe, o percurso socialista da sua
geração.
Oliver Twist é escrito três anos
antes de Proudhon afirmar que “a propriedade é um roubo” (em O que é a Propriedade) e, em A Solução do Problema Social, defender
um modelo financeiro mutualista. E é também três anos, mas depois destas obras,
que nasce o famoso Mr. Scrooge, arquétipo do capitalista avaro e incapaz de
compreender o sofrimento alheio. Uma obra que é talvez aquela que melhor
simboliza o pensamento de Dickens: a crença na capacidade auto-regeneradora da
sociedade, não pela via da revolução, mas pela do sentimento. Bob Cratchit não precisa de se revoltar porque Scrooge
muda de comportamento depois da comoção que lhe provocaram os três sonhos dos
três natais.
No mesmo ano em que Marx lança o Manifesto do Partido Comunista (1848), Dickens
faz sair Dombey e Filho, onde, de
forma já menos moralista e mais objetiva, denuncia a forma como o poder
financeiro de Dombey é um instrumento de opressão sobre outros personagens. Em
1850, o ano do exílio de Marx em Londres, sai David Copperfield: a injustiça social já não é analisada como um
facto em si, mas como algo que tem causas. Pelo mesmo caminho, vai Tempos Difíceis, que, além de apontar as
causas da injustiça, ataca a própria filosofia que fundamenta o capitalismo.
Moralista social, denunciador da
injustiça do modelo capitalista, Dickens não é, contudo, um revolucionário e,
aparentemente, manifesta antipatia por esta via, enquanto forma de solução para
a questão social. Este pensamento está bem ilustrado em Tale of Two Cities, a sua última obra, onde denuncia as injustiças
sociais que levaram à Revolução Francesa, mas também as arbitrariedades da
própria revolução.
A auto-regeneração, isso sim,
parece ser uma constante da sua obra, como se, pela comoção provocada pelos
seus dramáticos quadros literários, a sociedade pudesse ganhar consciência e
equilibrar as suas disparidades. Por norma, essa é a conclusão dos seus livros:
Emily ganha uma nova vida na Austrália e David Copperfield encontra a
felicidade com Agnes. Em Dombey e Filho,
Walter acaba tendo sucesso e a obra termina como um comovido Dombey acariciando
a sua neta. Ou, na que é talvez a mais metafórica das conclusões, Scrooge muda
de comportamento e, subentende-se, graças a esta redenção, o explorado Bob Cratchit não precisa da revolução.
Na pena de Dickens, a cabeça de Luis XVI não se cruzaria com a
guilhotina e os Ksars Nicolaus não seriam executados. Quando me pedem que fale da atualidade da obra de Dickens, julgo que é
neste ponto que nos devemos focar.
O século XIX foi o caldo teórico dos
modelos sociais do século XX. Moldado pela ganância do mercado sem rédea e pela
prepotência global do Império Britânico, foi então que se denunciaram
injustiças e que se desenvolveram modelos de pensamento tendentes ao
reformismo, uns, ou à revolução, outros. Desde meados de oitocentos até aos
inícios de novecentos, foram cada vez mais as organizações sindicais e cada vez
mais as que apelavam à ação direta, revolucionária e já não de mera luta por
algumas regalias. Aquilo que se pretendia era já uma mudança do próprio sistema
político. Como bem notou Yves Lequin, “o Great labour unrest
da Belle Époque resulta do cansaço
diante dos palavreados parlamentares e da ansiedade que, como se sabe,
desorienta a classe operária.”
E a atualidade de Dickens,
Senhor?!
Hoje, assistimos à destruição
progressiva do modelo social a que este sindicalismo contestatário foi
gradualmente obrigando o Estado e o capital. Um sindicalismo a que chamaria
centrífugo e que, abalando a estabilidade da estrutura económica e social, forçou
as forças centrípetas a iniciarem um progressivo movimento no sentido de o trazer
para o sistema, institucionalizando-o como um mecanismo do mesmo.
O fenómeno, que começa a
despontar após a Primeira Guerra Mundial, está em clara marcha depois do
segundo conflito, sobretudo na década de cinquenta.
Institui-se então aquilo a que
gosto de chamar o Novo Acordo Social. Já não é um acordo bidirecional entre o
cidadão/burguês e os gestores da coisa pública, como Rousseau o materializara,
mas antes uma nova construção em que o Estado serve de fiel da balança entre os
grandes detentores dos meios de produção (materiais ou financeiros) e a
generalidade da população. Um acordo baseado na participação de todos através
do sufrágio universal, onde o poder que este sufrágio dá a todos, serve de
contrapeso ao poder que o dinheiro dá a alguns. A greve passa a ser um direito
fundamental inscrito nas constituições da generalidade do mundo ocidental e os
sindicatos passam a parceiros sociais. A maior parte dos confrontos sai da rua
e instala-se nas mesas de negociação, onde os Governos sentam patrões e
trabalhadores e procuram induzir a concertação.
Graças a esta institucionalização
da conflitualidade, é indiscutível que, nas décadas de cinquenta e sessenta, se
assistiu a alguma mobilidade social, apesar de não tanta quanto se pense, como
bem o mostrou Pierre Léon. Os Estados assumem o papel de redistribuição da
riqueza, tomando para si a função de diminuir o fosso entre os mais ricos e os
mais pobres, à custa duma sofisticada política fiscal que proporciona recursos
para instalar o famoso Estado providência. Saúde e Educação, ganham o estatuto
de direitos universais e os governos esforçam-se para garantir que todos lhes
possam aceder.
Foi o Novo Acordo Social que
permitiu a estabilidade que o mundo ocidental conheceu na segunda metade do
século XX e foi essa estabilidade que permitiu o respetivo crescimento
económico. O primado do social sobre o económico revelou-se, assim, uma medida
de grande alcance… económico.
Hoje, porém, assistimos a um
desagregar deste Novo Acordo Social. Um fenómeno que, julgo, se deve a três
grandes fatores.
O primeiro terá sido a
globalização. Com a queda do Império soviético, desaparece a espada de Dâmocles
sobre os principais interessados no centripetismo do império capitalista e a
globalização permite-lhes a deslocalização para países onde o Novo Acordo Social
nunca chegou a instaurar-se. O capital já não precisa de contratualizar e, por
isso, a concertação torna-se-lhe desnecessária. Os antigos fóruns de negociação
passaram a ser locais onde as regras deste são facilmente impostas, com base na
ameaça da deslocalização.
O segundo dos fatores foi, em
minha opinião, a descrença da população num dos principais mecanismos em que
assenta o Novo Acordo Social: o sufrágio universal. Hoje são cada vez mais os
que descrêem da utilidade do voto como forma de ação sobre o sistema, o que se
tem traduzido nas elevadas taxas de abstenção. Trata-se dum fenómeno que José
Saramago levou para o campo da literatura no seu Ensaio Sobre a Lucidez.
Uma descrença que é fácil de
compreender: as principais decisões já não são efetivamente sufragadas, ou, se
o são são-no de forma muito indireta, como é o caso das diretivas europeias que,
por imposição, se transcrevem para o direito nacional, sem que os eleitores de
cada país tenham efetivo poder decisório sobre as mesmas. Ou então, na forma
como algumas medidas de austeridade nos têm sido apresentadas como inevitáveis,
por imposição de insufragados organismos internacionais, como seja o FMI ou a
União Europeia, esta última uma organização que só com muito artifício poderia
ser considerada democrática.
Por último, fruto de uma teia de
erros, armadilhas e promiscuidades entre a política e os negócios privados, os
Estados, ou os seus titulares, estão reféns do capital e, com isso, quebraram o
Novo Acordo Social. Lembro-me de, não há muito tempo, um banqueiro português
ter dito, numa entrevista, que chamara a atenção dum deputado legitimamente
eleito (e, portanto, titular dum órgão de soberania) para a inconveniência duma
certa declaração que este fizera no exercício do seu mandato político. Acresce
o facto de que esse deputado era quadro daquele banco… Quando os banqueiros já
nem sequer escondem a preponderância que têm sobre os eleitos e os tratam como
meros funcionários, não admira que os cidadãos percam a confiança nestes,
enquanto fiéis duma balança tendente ao equilíbrio social e económico.
E com isto, caíram os três
pilares em que assentou a paz social do século XX: O tal Novo Acordo Social;
esse mesmo que terminara com as grandes injustiças dos Tempos Difíceis e que debelou a conflitualidade sangrenta, tendo o
condão de transformar a generalidade da população em classe média. Com a queda
desses pilares, e sem que estivéssemos preparados para isso, subitamente as
obras de Dickens deixam de nos surgir como uma curiosidade literária, como um
relato de tempos remotos, para nos apareceram, isso sim, como uma sinistra nuvem
negra sobre o futuro.
Hoje, a globalização tornou a
concertação numa farsa. Hoje, os cidadãos deixaram de acreditar na valência do
sufrágio e, hoje, já não conseguem ver os seus representantes como procuradores
que contrabalancem o peso dos grandes acumuladores de riqueza.
Dickens foi um reformista social
que nunca aderiu aos movimentos revolucionários do seu tempo. Por via da social-democracia,
no século XX os reformistas teriam mostrado a Marx a injustiça do epitáfio de
“utópicos” com que os procurara enterrar. Hoje porém, tudo volta a estar em
causa no mundo social. Várias correntes se agitam, algumas bem revolucionárias.
Resta saber se, no confronto que se advinha, os adeptos da reforma social ainda
encontrarão força de ânimo suficiente para confrontarem os da revolução; ou se,
pelo contrário, as pontes que estabeleceram com o capital não se terão
transformado em camisas de força à sua atuação política. Camisas que, em
verdade, por ganância, alguns de entre eles vestiram de boa vontade
Nota final: ainda que em revista académica, a desorganização da
minha cabeça não me permite o rigor dum trabalho científico, nomeadamente no
campo das citações e notas de rodapé. Para mais, quando este texto me foi
pedido estando eu rodeado de mosquitos, entre a amazónia peruana e os Andes.
Também nunca soube fazer uma rigorosa citação bibliográfica: é minha norma que
as normas me deixam com pele de galinha e lá fica editora, data ou cidade, tudo
fora do lugar, como se eu fosse o grande desordeiro da relação entre o espaço e
o tempo. Duma maneira geral, a parte em que falo do desenvolvimento do
sindicalismo e da reorganização do estado moderno, é inspirada num dos volumes
da “História Económica e Social do Mundo” dirigida por Pierre Léon. Não a tinha
comigo, claro, mas aproveitei parte dum artigo de intervenção que há tempos escrevi
no meu blog. No mais, é cultura geral, aqui e ali confirmando uma data ou um
nome; e não fica inconfesso que, geralmente, na Wikipedia. Quanto às citações
do grande Eça, devo-as a esse companheiro de qualquer viajante empedernido que
também seja empedernidamente leitor: o meu livro eletrónico.
Luís Novais
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