A desvalorização do
cidadão que ficou patente, para mais representado naquele arquétipo de pai de família, foi um
símbolo e uma consequência: um símbolo de que a cidadania já pouco vale
enquanto fonte de legitimidade, uma consequência da aposta política na erosão
dessa mesma legitimidade, para entregar o processo decisório a forças obscuras e não
sufragados.
A questão do subcomissário
de Guimarães já está mais do que explorada e atingiu níveis de voyeurismo
típicos de reality show. Volto a ele, não por si, mas pelo que revela. Não para fazer um julgamento público do agente em questão, mas sim das linhas políticas com que nos estamos a cozer (é mesmo assim, cozer
com “Z”).
No processo histórico de
substituição do escravo pelo servo, do servo pelo súbdito e do súbdito pelo
cidadão, há todo um progresso em que a humanidade conquista a sua humanidade.
Como diria Charles Tayler, somos tão mais humanos quanto mais detentores de
marcos de referência, e tão mais livres quanto capazes de auto definirmos esses
marcos, ainda que em função da comunidade em que vivemos ou fomos criados.
Mais do que a utopia de
ser completamente livre, o cidadão é fonte de soberania: é dele que emana o
poder e é nele que assenta a legalidade para o exercício da violência legítima.
Quando são os agentes
dessa violência que se viram contra a fonte da sua legitimidade, alguma
reflexão se impõe. Primeiro, porque não penso que este seja uma caso isolado;
segundo, porque noutras circunstâncias de violência não física,
comprovadamente que não é.
Diariamente há milhares
de intervenções policiais e apenas uma ínfima parte está sujeita ao escrutínio
videográfico. Não é preciso entender muito de probabilidade estatística para
concluir que teremos anualmente umas boas centenas de abusos. A própria forma
como o subcomissário procurou justificar a situação com uma claramente
inexistente cuspidela, demonstra qual é o modus operandi em circunstâncias
análogas.
Como chegamos a esta situação
do protetor agressor? Acredito que tudo isto está fortemente
relacionada com a forma como na política se têm vindo a impor políticas.
Ao largo das últimas
décadas, o modelo económico e social vigente foi implementado, não com
base numa confrontação aberta entre diferentes visões, mas antes recorrendo a
um processo de desvalorização comunicacional do adversário; por outras palavras, construindo a célebre narrativa que, de tão sistematicamente narrada, se transforma em imagem mental da verdade.
Todos somos testemunhas destes processos. Pretende-se impor regras
aos professores? Inicia-se uma campanha de ataque à profissão, que a
descredibilize. É
para privatizar um setor? Diabolizam-se os seus profissionais. Diminuir os
serviços públicos? Propagandeiam-se vícios dos funcionários…. e por aí adiante.
A novidade dos últimos
tempos é que o alvo já não é um apenas um grupo: Queremos ditar modelos
económicos sem apoio popular? Usemos poderes não sufragados para os impor e
diabolizemos o cidadão, esse mesmo que tem de se submeter porque terá vivido
acima das suas possibilidades.
É com base na construção
desta ideia, que o Estado-do-cidadão se transforma em seu inimigo e se torna
politicamente exequível dar rédea solta aos organismos de repressão fiscal,
policial e administrativa. Não surpreende que, mais cedo ou mais tarde, essa desvalorização tivesse consequências muito visíveis como esta.
Creio que um dos motivos
que fez com que este caso gerasse uma tão grande unanimidade, foi o facto da
vítima ser quem foi: "chefe de família", empresário, acompanhado dos filhos e do pai… este homem
tem tudo para ser um símbolo do cidadão seguidor dos princípios da ordem,
democracia e progresso; numa palavra, ele representa o sustentáculo social da
democracia representativa. E foi precisamente essa metáfora que um agente do Estado atacou em vez de defender.
Naquela demonstração de
força (para não dizer de raiva), ficou clara uma inversão dos valores sociais com que se
construiu o nosso Estado de Direito Democrático.
A desvalorização do
cidadão que ficou patente, para mais representado naquele arquétipo de pai de família, foi um
símbolo e uma consequência: um símbolo de que a cidadania já pouco vale
enquanto fonte de legitimidade, uma consequência da aposta política na erosão
dessa mesma legitimidade, com o objetivo de entregar o processo decisório a forças obscuras e não
sufragados.
Perante isto, o sucedido em Guimarães deve indignar-nos mas não surpreender-nos.
Luis Novais