É bom que
pensemos nisto. Compreendamos que debaixo das garras que hoje se afiam sobre a
Grécia, há um espectro que se levanta. É bom que cada um de nós olhe para si,
para dentro de si, e reveja esse mesmo espectro. Que lutemos para que ele se
mantenha no buraco escuro em que por sessenta anos o mantivemos. Eles, os
espectros, quando despertos, vêm sedentos e desvairados.
Tão Crítico desta Europa que se diz União, tudo me
move a favor da Europa cultural. É verdade que deste passado saíram muitos
crimes, o que não ofusca terem aqui nascido alguns dos modelos e conceitos que
mais sentido positivo dão à caminhada da humanidade rumo à sua condição. O mundo
de hoje, tão imperfeito que ele é, estaria pior se neste continente não tivesse
florido o humanismo greco-cristão que, brotado em oriental praia mediterrânica,
se disseminou por ação de Roma e se mundializou a partir de um outro areal, mais
a ocidente.
Tudo alcançado à custa de muitos crimes? De muita
desumanidade? Sim. No outro prato da balança, há um cintilante humanismo que
iluminava e ilumina o caminho, por muito tortuoso que este tenha sido e seja. Estou
certo de que sem a história europeia, não teríamos algumas das poucas bandeiras
que ainda temos e pelas quais vale a pena lutar. Não teríamos Direitos Humanos,
não teríamos respeito pelas minorias, não teríamos ideais de igualdade racial e
de género. Somos humanistas e somos cristãos, alguns laicos, como eu.
E o resto? Como se explica?
É esquizofrénico, o nosso continente, e este é o
seu problema. O drama filogenético resolvemo-lo com esse dualismo entre o
espírito ideal e uma diabolizada matéria e esta foi a fonte duma dupla
personalidade entre o sublime e o terreno, entre o ideal de Platão e o desejo
de Epicuro. Ambas as forças se digladiam dentro de cada nação europeia e, por
extensão, de cada nação ocidental; ambas as forças se digladiam dentro de cada europeu
e, por extensão, de cada ocidental.
A loucura terrena de Wagner e a harmonia celestial
de Mozart, lutam dentro de cada um de nós, por cada parcela da nossa ação. Confrontam-se,
como sempre se confrontaram durante a história europeia. Entre nós, a carne, a
matéria, é doce, mas canalha; o ideal, o metafísico, é sublime, mas acerbo. Connosco,
até o crime precisa da ideia, do seu sublime. Foi por isso que aqui
nasceram alguns do ideais mais macabros de que há memória, que outros conseguiram
a tragédia sem deles precisarem. Ambicionamos ideia, mas não resistimos ao mel e
como não resistimos ao mel, sacralizámo-lo antes de o comer.
Esta é a esquizofrenia que aclara muitas das
nossas contradições e que o diga a Igreja católica, um dos bastiões do
ocidentalismo. É também esta esquizofrenia que explica a dupla personalidade
com que a Europa avançou entre uma e a outra metades do século XX. Só ela, a
esquizofrenia, pode explicar a milagrosa rapidez com que passamos das wagnerianas
cavalgadas, a cujo som fumegaram fornos crematórios, aos Hinos à
Alegria, com que procuramos construir os anos seguintes.
É bom que pensemos nisto. Compreendamos que debaixo
das garras que hoje se afiam sobre a Grécia, há um espectro que se levanta. É
bom que cada um de nós olhe para si, para dentro de si, e reveja esse mesmo
espectro. Que lutemos para que ele se mantenha no buraco escuro em que por sessenta anos o mantivemos. Eles, os espectros, quando despertos, vêm sedentos
e desvairados.
Doí-me a situação grega, dói-me o sádico sofrimento
com que pretendem infligi-lo. Mas o que mais me dói é este medo: que Atenas
seja altar de novo holocausto. A besta aí está, só não a vê quem não queira. O
mel tem apóstolos e já foi sacralizado!
Luís Novais
Foto: "Batalla en las Nubes", Dali.
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