Para passarmos definitivamente da pós-modernidade à inmodernidade, talvez falte apenas cair um dos pilares: A
separação de poderes e a crença numa justiça independente.
Sendo descendente de múltiplas tradições, o modelo de governança da polis que
as democracias ocidentais de hoje concebem, tem as suas raízes mais diretas em pensadores
como Locke (1632-1734), Montesquieu (1689-2755) e Rousseau (1712-1788). Se os
dois primeiros partiram da matriz grega para recriar a teoria da organização do
Estado moderno, o terceiro refundou o princípio da cidadania como fonte
legitimadora do poder, abalando de um só golpe o modelo divino parcialmente
herdado do império romano, incubado na Idade Média e com auge na corte de
Versalhes.
É muito importante que tenhamos em mente que não há civilização sem consensos
basilares: Um modelo organizacional, uma fonte de legitimação do poder e uma
ética. Quando estes pilares civilizacionais perdem a coerência, o modelo cai em
abismos anunciadores de que a História nunca tem fim e que nem sempre caminha
para melhor.
Na civilização ocidental moderna, a ética tem origem greco-cristã e assenta
no humanismo, seja religioso, seja racional; é esta base que fundamenta a
Declaração Universal dos Direitos do Homem como um consenso civilizacional,
pelo menos nos seus princípios mais basilares. Quanto à fonte legitimadora do
poder, a libertação gradual do indivíduo que se veio verificando desde a
revolução protestante e a necessidade de ajustá-la à vida em sociedade, levou à
concepção do célebre “Contrato Social”, um modelo em que a legitimidade já não
desce dum topo transcendente para uma base sem participação, mas duma base consciente,
para um topo imanente.
O imperativo do “eu” participante levou à necessidade de especular um modelo
organizativo que respeite a ambição e a felicidade individuais, sem destruir a
coesão social. É aqui que entram Locke e Montesquieu, com o princípio da
separação dos poderes, que é a Teoria da Organização da nossa democracia e que
garante que nunca ninguém possa ter tanto poder que lhe permita destruir o equilíbrio
pretendido.
Temos um breve retrato da modernidade, se a isto somarmos algumas
substituições: a fé pela racionalidade, a teologia pelo método científico, a igreja
pela universidade.
No pensamento de Rousseau, Emílio era naturalmente bom e por isso havia que
educa-lo como um homem livre que possa desenvolver-se de dentro para fora, não
como um discípulo submetido a uma disciplina rigorosa e imposta. Fundados no
modelo platónico, para os iluministas o “Bem” estava ao nosso alcance e era impensável
que houvesse crime e tivesse de haver castigo numa sociedade com liberdade e
racionalidade.
No seu “Viagens de Guliver” (tão injustamente infantilizado), Jonathan
Swift (1667-1745) é um bom espelho da dicotomia entre o bom racional e o mau
irracional. Que melhor caricatura duma corte europeia, do que aquela sociedade
de seres pomposamente minúsculos? Todo um Lilipute de disputas e guerras entre
o partido dos que acham que os ovos escalfados se devem abrir pelo lado redondo
e o dos que defendem o lado elíptico. Mas a mais significativa das “Viagens” é,
em minha opinião, a que Guliver faz ao país dos Houyhnhnms, seres equestres
dotados duma verdadeira racionalidade e que, por isso, alcançavam a verdade e
dispensavam instituições complexas e nebulosas que “eram claramente fruto da
nossa falta de razão e, por consequência, de virtude, porque para governar uma
criatura racional basta apenas a razão”.
Criados os Estados Unidos da América, passada a Revolução Francesa,
desenvolvendo-se a democracia à inglesa, instauradas as independências
americanas, o iluminismo deixa de ser uma pregação teórica: Passa à fase de
experimentação e, depois, de hegemonia. É então que, um-por-um, foram caindo
todos os seus axiomas.
O romantismo, todo ligado às paixões e à alma, é um primeiro sinal anunciador
da crise. Logo depois, as reações realista e naturalista, formadas no cadinho
da ciência e da racionalidade, acabariam sim por criar personagens multicotómicos
e, portanto, incoerentes, incapazes de praticar a racionalidade idealizada.
João da Ega, o alter ego do autor, é um bom espelho desse homem que, apesar de
dotado duma ética racional, é incapaz de ter outro comportamento que não seja
dominado pela paixão do momento.
Entretanto ia-se dando a revolução psicanalítica, tão bem anunciada que ela
foi pelo mais percursor dos escritores: Dostoievski. Deixávamos de ser
conscientes do que somos e, tal qual essa espécie de anti-Emílio que é o Gregor
Samsa de Kafka, metamorfoseamo-nos em insetos que já nem se preocupam com a sua
condição asquerosa, mas antes em cumprir o papel que lhes é predestinado pela
sociedade: Caía por terra qualquer utopia de liberdade individual.
Pouco depois desabava outro dos mitos da modernidade: Nas fétidas trincheiras
da primeira guerra ficava claro que os assépticos laboratórios e a liturgia do
método experimental, em vez de criarem um homem novo e bom, levavam a uma
destruição histórica. A ciência perdia o papel imaginário de guardiã da bondade
humana e, simbolicamente, o Nobel da química de 1918 foi entregue a Fritz
Harber (1868-1934), o mesmo que desenvolveu o gás de cloro que em Yprès, 1915, precisou
de apenas cinco minutos para matar 5.000 soldados.
Sem Ser e sem ser, perdida a ciência, ia-se perdendo a crença do homem em
si e na sua capacidade para se governar. Uma vez mais, as crises filosóficas
foram prenúncios das crises económicas que as adensariam. A leste, o cheiro da
pólvora sublimava-se num novo regime, que já não tinha o cidadão mas a ciência
como fonte de legitimidade. A ocidente, criavam-se todas as condições para o bacanal
fascista e nazi.
Ao mesmo tempo que em Paris a modernidade se transformava em modernismo nas
orgíacas delícias um dadaísmo em que ter sentido já não era preciso, em Lisboa um
modesto empregado de escritório de lunetas e bigode, fechava-se numa mansarda
desmultiplicando-se em alucinadas personagens. A unidade estava perdida e, com
ela, a verdade universal; não será difícil entender quão traumático isto foi
para uma civilização que, gerada na Península Ática, se desenvolveu sobre os
pilares dessa crença metafisica entre não ser e Ser, entre sombras e luz, entre
contingência e alétheia.
Já acabada a segunda guerra, procuram-se colar os pedaços. Os realistas
refugiam-se no mundo mágico, numa tentativa de unir o mito à ciência, o
interior da caverna platónica ao seu exterior. Na angústia pós-moderna, não há
verdade e nem sequer verdades, apenas imagens, em que o verdadeiro e o falso já
não contam, se não a ideia que deles se faz. A aldeia global é uma nova
metamorfose, em que a comunicação substitui a ciência, em que não interessa o
que é mas o que se faz crer, em que e essência é substituída pela imagem.
Entramos nessa “Civilização do Espetáculo” que Vargas Llosa descreve, em que
ser é igual a ter fama.
Assim como a universalização da Igreja romana a corroeu por dentro e nos conduziu
à libertação iluminista, a universalização da ciência corrompeu-a. Já não
acreditamos que o cientista esteja pelo progresso, mas pela ganância. A crise
de 2008, o desfalque de corporações à prova de qualquer dúvida, a falência de
países inteiros; tudo isto foi um golpe fatal na crença que ainda restava no
nosso modelo institucional. Em “Inside Job” Charles Ferguson desnudava a forma
como universitários, políticos e jornalistas montaram uma conspiração medonha
nas costas do cidadão, mas que cairia com todo o peso sobre os seus ombros.
Gerava-se uma descrença fatal em qualquer espécie de elite, uma descrença que
foi potenciada por uma sociedade em rede, ávida por destruir a intermediação
que a estava a destruir. As convulsões sociais nascem espontâneas e imprevisíveis;
na Plaza del Sol em Madrid, só o cidadão anónimo tinha direito à voz, qualquer
participação política anteriormente conhecida era rapidamente silenciada e as
tentativas de protagonismo assobiadas.
Para passarmos definitivamente da pós-modernidade à inmodernidade, talvez falte apenas cair um dos pilares: A
separação de poderes e a crença numa justiça independente. A “Sociedade do
Espetáculo” é autofágica, mas os incautos têm a cegueira dos ávidos. Processos
que antes se aprofundavam entre contraditórios dentro dos claustros dum
tribunal, caem de repente na praça pública e são debatidos fervorosamente nas
redes sociais. Aos poucos a justiça vai-se transformando num grande centro
comercial fornecedor de crimes à medida, num talho expiatório, e o cidadão vê-a
com a mesma soberania que o consumidor tem sobre o vendedor. Todos sabem se
Carlos Cruz teve ou não teve sexo com menores, se os pais da pequena Madeleine
são ou não são os culpados, se Lula é ou não é corrupto, se José Sócrates devia
ou não devia ser preso preventivamente.
Ansiosos, os agentes do poder judicial vão caindo na tentação: querem
também o direito a ser estrelas, querem também participar do festim, querem sair
vencedores deste reallity show em que
vivemos e que caminha a passos largos para a grande final. E quanto mais vai
sucedendo, menos o circo confia na justiça. O concurso vai no adro, a tentação
é muita e a embriaguez ainda agora começa: juízes que deixam de julgar para
protagonizar, que usam como instrumento de poder pessoal as faculdades que o
contrato social lhes deu, que abrem o segredo dos processos de forma precisa e seletiva.
São talvez inconsciente de quão ilegítima e perigosa é esta atitude, de quanto
podem abalar o último pilar credível do Estado de Direito.
Aconteceu em Portugal com José Sócrates e está a acontecer no Brasil com
Lula da Silva. Independentemente dos personagens, independentemente duma culpa
que deve ser averiguada, independentemente duma punição que deva ser aplicada.
Todas estas manobras são juridicamente certas ou erradas? Estão ou não
estão de acordo à lei? Quando aquilo que está em causa é o último pilar da
democracia ocidental, badamerda ao direito e que entre a filosofia: Não há tempo para discutir miudezas jurídicas.
A pós-modernidade está em estertor e com ela todo um modelo que nos foi
legado. Espero que não nos reste tentar adivinhar a inmodernidade.
Luís Novais
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