domingo, 1 de setembro de 2024

IMIGRAÇÃO E CRIME

A caricatura de um crime que deu que falar sem nunca ter existido, mostra a facilidade com que alguns círculos das redes sociais fazem acusações infundadas. Em casos como este, uma das vítimas da verdade costuma ser o estabelecimento de uma suposta relação com o aumento do número de imigrantes.

Sempre que é noticiado um crime, disparam nas redes sociais certas vozes, minoritárias mas muito ruidosas, queixando-se de que o país está cada vez mais inseguro e associando a suposta situação ao aumento do número de imigrantes. São julgamentos tão prolixos quão precipitados, geralmente proferidos de forma automática e antes até de se conhecer quem foram os criminosos.

Crónica de um crime imaginário

Recentemente em Braga, dois homens numa moto lá para os lados da mesma Falperra onde antanho atacava o temível Zé do Telhado, ameaçaram com pistola e roubaram um supostamente honesto cidadão. Ter-lhe-ão levando carteira, dinheiro e documentos. A notícia saiu no jornal digital Minho e no Correio da Manhã. Só no primeiro gerou 523 comentários e 230 partilhas. De entre tantos destaco alguns:

“Os primeiros a acordar e a ver o que se passava, eram insultados e apelidados de xenófobos, pois bem, olhando para a frequência com que os crimes ocorrem nesta cidade atualmente, comparado há uns 4 anos, é tudo coincidências”.

“O Marcelo falou em reparação as ex-colónias, eles só estão a antecipar, e depois não são estrangeiros, eles ainda não pisaram o solo português que já têm um cartão de cidadão português ... assim nem podem ser extraditados”.

“Obrigado PS e PSD por esta imigração descontrolada”.

“Enquanto não fecharem portas a esta emigração excessiva , o país vai ter cada vez mais crimes !! Esta cidade está cheia de criminosos”.

“É Braguil”

“Olhando ao modus operandi não me parece difícil perceber a origem.. Triste ver o meu país a ficar sem rumo!”

“Qual era a nacionalidade ou etnia???? Ponham sem medo

“Isso é filmes à Brasil”

Poderia destacar muitos mais (ver aqui), com o mesmo tipo de afirmações acusatórias. Tudo isto por um crime que… afinal não aconteceu!

O violento assalto que antes de existir já não existiu

Três dias depois e no mesmo jornal ficávamos a saber que “Homem inventou que foi assaltado de pistola por dupla de mota em Braga. Só queria boleia da PSP”.

Cansado de caminhar, sem dinheiro e provavelmente zero de saldo no telemóvel, o espertalhão decidiu ligar para o gratuito 112, queixando-se do suposto assalto para que a polícia o fosse buscar. Compadecido, um dos agentes da autoridade até lhe deu alguns euros do próprio bolso (ver aqui).

Escusado será dizer que nenhum dos comentaristas de acusação fácil veio reconhecer o erro e pedir desculpa pela difamação.

As redes sociais já nos habituaram a isto. São também estes que normalmente acusam a imprensa, talvez porque esta, não sendo isenta de erros, tem um compromisso com a verdade e obedece aos critérios de confirmação e contraditório que eles não. Foi esse mesmo compromisso que levou o Minho a repor a verdade sobre a notícia que antes deu.

Assimetria da mentira

Vi algures um cartoon intitulado “O princípio de assimetria”, onde se demonstrava que a quantidade de energia para refutar uma estupidez é muito maior do que a usada para produzi-la. Trata-se de uma realidade que homens como Donald Trump conhecem muito bem: Gastando os mesmos recursos com que se fundamenta uma só verdade, geram-se milhares de mentiras. Além disso, estas são mais espetaculares e tendem a gerar muitas mais visualizações, o que nestes tempos equivale a dinheiro.

Em conclusão: mentir é barato e tem uma margem económica infinitamente superior à dispendiosa procura da verdade.

Por esse motivo, já me convenci a não perder o meu tempo refutando o que por aí vou lendo. Desta vez abro exceção, porque tal tipo de referências tem-se adensado, permitindo que uma só verdade refute muitas mentiras e melhorando assim a assimétrica relação económica.

Da mentira ao facto

Viajemos até ao abrenuncio das redes sociais: o mundo dos factos.

Em primeiro lugar, Portugal está longe de ser um país com elevados índices de insegurança. Segundo o Global Peace Index (ver), em 2023 foi o sétimo mais seguro do mundo e o quinto na europa. À nossa frente e por esta ordem: Singapura, Áustria, Nova Zelândia, Irlanda, Dinamarca e Islândia  (p.8), este último um pequeno país de 330.000 habitantes, praticamente no círculo polar Ártico.

A posição portuguesa até melhorou um posto em comparação com 2022. Isto num contexto de aumento da insegurança mundial, que piorou 13 vezes nos últimos 15 anos (p.10).

Estamos, portanto, longe de viver uma onda de insegurança. É certo que este índice considera não só a criminalidade mas também os conflitos militares internacionais. Ainda assim, temos de descer até aos três dígitos deste ranking para encontrar um país que esteja em guerra.

Os dados específicos e exclusivos sobre a criminalidade em Portugal também existem. Segundo o Relatório Anual de Segurança Interna (RASI) (Ver), apesar de um acréscimo, os valores de 2023 estão inseridos numa curva descendente da criminalidade geral e, em particular, da violenta. Para estes números contribuem crimes graves mas não associados à insegurança de rua, como é o caso da violência doméstica ou da corrupção.

Os crimes que mais subiram não podem ser considerados violentos. É o caso de burla com cartão de crédito (+67%), este muito ligado às redes digitais, de outras burlas (+39%), dos furtos em edifício comercial sem arrombamento (+16,7%) e os de oportunidade de objeto não guardado (13,4%).

Por outro lado, baixaram alguns dos associados à violência: furto em residência com arrombamento (-11,2%) e furto em veículo motorizado (-6,8%). Baixaram também -7,2% os homicídios voluntários, dos quais 47% foram em situação relacional (família, vizinhança, conhecimento etc.)  e portanto não associados à criminalidade organizada. As violações baixaram 4,8% e quase metade deram-se em contexto de relação de conhecimento; deu-se também uma descida de 15,3% nos roubos a residências e de 4% noutros roubos (-4%).

Ainda assim, é preocupante o aumento de 25,8% nas extorsões e de 22% nos raptos, sequestros e tomadas de reféns. No entanto, devemos notar que se trata de um tipo de crime com baixa incidência no nosso país: os raptos e sequestros passaram de 250 a 305 e as extorsões de 1.183 a 1.488 (p.39), ou seja,  basta um aumento relativamente pequeno para um desproporcionado reflexo percentual. Além disso, 79% no primeiro grupo são crimes de sequestro, normalmente associados a contextos familiares e laborais e não à criminalidade organizada. Sem dúvida porém que se trata de um crescimento preocupante e merecedor de atenção.

Aumentou também outro tipo de crime, não violento e que normalmente não é praticado por cidadãos estrangeiros: a criminalidade económico-financeira e a corrupção, com uma subida de 28,8% nos inquéritos judiciais e de 26% nas detenções (p.7).

Um crime que o relatório considera ter crescido de forma preocupante é o tráfico de seres humanos. Este sim associado à imigração, mas uma modalidade que, no mínimo, conta com a participação de cidadãos nacionais e as vítimas são, por norma, cidadãos estrangeiros. Corrobore-se com a particular incidência de “tráfico para fins de exploração laboral” (pp.6-7).

Outro que aumentou foi o crime de ódio, do qual os imigrantes costumam ser as vítimas (p.31).

Já quanto aos estrangeiros que tentaram entrar ilegalmente no país, deu-se até uma significativa diminuição de 44,2% na fraude documental (p.7).

Braga, onde teria ocorrido o referido crime imaginário, é um dos distritos que mais estrangeiros tem recebido. Segundo o Relatório de Imigração, Fronteiras e Asilo 2022 (ver) só entre 2021 e 2022 este número aumentou 19,1%, de 23.619 para 28.127 (p.12). Cai pela base a retórica da associação entre a imigração e o aumento da criminalidade quando,  segundo o RASI 2023, se trata do segundo distrito do país onde menos aumentou o número de participações policiais (0,7%) (p.38) e se registaram apenas mais 19 roubos do que em 2022 (p.41).

Reclusos nacionais e estrangeiros

A população prisional acompanha a curva geral de diminuição da criminalidade, havendo 12.913 reclusos, o que significa menos 190 do que em 2022. Também as penas não privativas de liberdade decresceram 0,8% (p.10).

Neste campo, a proporção de estrangeiros é superior à de residentes no país: correspondem a 16,7% dos presos, contra uma representatividade total de 5,2%, segundo o censo de 2021 (ver).

Apesar da diferença ser significativa, também aqui é necessária uma análise mais fina, sobretudo porque os dados disponíveis não informam quantos de esses reclusos são residentes em Portugal e quantos foram apanhados num contexto de criminalidade internacional. Não encontrei essa informação sistematizada, mas certamente são números significativos. Neste contexto, o RASI 2023 refere a ligação de grande parte dos presos por tráfico de drogas a redes internacionais, além de considerar que Portugal é frequentemente utilizado como ponto de trânsito e destino para drogas que chegam por via marítima e aérea. Resultam de aí várias apreensões e prisões de não residentes, nomeadamente em portos e aeroportos.

Não se trata de uma excentricidade nacional. Basta referir os cerca de 80 cidadãos portugueses em prisões peruanas, todos relacionados com o transporte de drogas. Este número corresponde a uns 26% da pequena comunidade portuguesa residente neste país, uma comunidade trabalhadora, integrada e que os peruanos estão longe de considerar como fomentadora do crime. A proporção noutras comunidades nacionais ainda é maior, como é o caso dos perto de 300 reclusos holandeses, para uma comunidade provavelmente mais pequena do que a portuguesa.

A insustentável leveza da mentira

Em conclusão, a facilidade com que algumas vozes acusaram a imigração pelo crime imaginário da Falperra é uma hilariante caricatura da facilidade com que se estabelecem falsas relações entre variáveis que não se conjugam. Mas é claro que a energia despendida para fundamentar esta conclusão pode facilmente ser usada a gerar outras mil maliciosas mentiras.


Luís Novais



Foto gerada pelo Bing

 

 

quinta-feira, 22 de agosto de 2024

PREFERIA SER VIZINHO DE TRUMP-VANCE OU DE KAMALA-WALZ. Alegoria de uma campanha eleitoral



Um dos momentos mais devastadores para a imagem de um candidato aconteceu no dia 26 de setembro de 1960, no debate em que Kennedy perguntou em direto aos norte-americanos se comprariam um carro usado a Nixon. Para muitos politólogos, este foi o momento de viragem numa das eleições mais renhidas do século XX. O candidato democrata ganharia apenas pela margem de 0,17% do voto popular, uma diferença só superada em 2000 na contenda Bush II–Al Gore, quando o primeiro ganhou graças ao colégio eleitoral, apesar da desvantagem de -0,51% no computo geral. A mesma situação repetir-se-ia em 2016, com a vitória de Trump sobre Hillary Clinton, mesmo com uma enorme margem negativa de -2,1% do voto popular, que o próprio e a seu modo se encarregou de dizer que tinha sido falseada.

Numa contenda tão renhida como a de 1960, todos os fatores contam. Certamente um dos que contou foi esse debate e aquela pergunta contundente de Kennedy: “Would you buy a used car from this man?

Depois da Convenção do Partido Democrata que acaba de confirmar Kamala Harris como candidata à Casa Branca, parece que estamos num momento idêntico e igualmente destruidor de caráter. A pergunta saída de Chicago já não é sobre se alguém confiaria em Trump para comprar um carro usado, mas outra, igualmente fatal: "Would you prefer being Kamala's or Trump's neighbor?" Questão à qual se poderia acrescentar uma semelhante, sobre os candidatos a vice-presidentes: "Who would you choose as a neighbor? Tim or JD?"

O mote foi dado por Obama que, com a força do seu magnetismo pessoal, comparou Trump àquele vizinho que incomoda constantemente o bairro com o ruido de um soprador de folhas. Não necessitou mais do que esta frase, diga-se que muito indireta, para os americanos começarem a pensar no que seria ter o candidato republicano a viver na porta ao lado.

Esta comparação seria depois exacerbada por Tim Walz que, sem nunca mencionar Donald Trump, fez uma alegoria das relações de boa vizinhança como microcosmos da política: “That family down the road, they may not think like you do, they may not pray like you do, they may not love like you do, but they’re your neighbors. And you look out for them, just like they do for you”.

Esta questão passou a ocupar um lugar na mente de cada eleitor. As relações entre vizinhos são um clássico do cinema, e certamente todos os norte-americanos têm experiências com os bons e os maus. Olhando para as duas candidaturas, parece-me natural que a maioria associe Trump-Pence aos egoístas-problemáticos e Kamala-Walz aos simpáticos com espírito comunitário.

A imagem está criada e parece-me altamente eficaz. Só falta que a pergunta seja feita diretamente a cada eleitor, e talvez o próximo debate seja o momento ideal para que isso aconteça.

 

Luís Novais


Fotos: Do Facebook de ambos os candidatos

quinta-feira, 18 de julho de 2024

Matam Kant em Gaza, matam Kant em Kiev

 


É isso que esquecem todos aqueles que rasgam as vestes pelo criminoso ataque a um hospital em Gaza e não o fazem por igual crime na Ucrânia; por um criminoso ataque na Ucrânia e não em Gaza. 

O ser humano tem uma tendência natural ao sectarismo, provavelmente originária dos tempos em que a estrita coesão do grupo caçador e a defesa dos territórios de recoleção eram essenciais à sobrevivência.

Quando observamos os animais selvagens, não assistimos a qualquer dúvida moral perante o ataque de predadores a presas, ou a rivais alimentares e sexuais da mesma espécie. Claro que isto advém do facto de que só nós temos consciência do outro e só nós tivemos por isso a necessidade (e a capacidade), para desenvolver um pensamento moral que nos estabeleça uma  fronteira entre o bem e o mal.

Quanto mais além estamos de um comportamento ditado por essa fronteira, mais humanos e racionais somos, quanto mais aquém, tanto mais irracionais. Por extensão, podemos dizer que o sectarismo, que nos conduz a ver todo o mal daquele lado que não é o nosso e o bem apenas no nosso, é um regresso a esses tempos paleo-humanos, quando a espécie ainda estava mais próxima de ser uma alcateia ou manada do que uma sociedade ou civilização.

Permitindo a criação de bolhas sectárias, as redes sociais acentuam esse lado mais animal. Curiosamente, as tecnologias digitais mais avançadas conduzem-nos ao tempo da pedra inicial.

Vem isto a propósito do que tenho assistido de forma aleatória e sem presunção sistematizadora. Basta estar atento ao perfil e ao pensamento político de quem partilha posições e imagens no Facebook: por norma, os que defendem a causa palestiniana consideram Israel agressor e partilham imagens relacionadas, tais como as dos criminosos ataques a hospitais na Faixa de Gaza. Do outro lado, os que condenam a agressão Russa à Ucrânia, apontam o dedo ao agressor e partilham imagens em tudo semelhantes à anterior, como seja a do recente ataque ao hospital pediátrico de Kiev. 

A norma é que os palestinianistas esqueçam os crimes contra as populações civis na Ucrânia; o mesmo para os ucranianistas na palestina. Apresentando-se uns e outros como defensores de vítimas, não estão a fazer mais do que usar essas mesma vítimas em defesa das suas posições sectárias, sacrificando a moral universal no altar da horda a que se juntam.

Jean-François Lyotard defeniu a pós modernidade como sendo uma crise das narrativas predominantes herdadas da modernidade, ou seja, do pensamento iluminista que criou os modelos políticos e sociais que continuam a ser predominantes, e onde muitos de nós (acredito que a maioria) queremos continuar a viver.

Não podemos afirmar que Kant, o primeiro a definir o iluminismo, tenha sido um iluminista. O filósofo de Konigsberg morreu em 1804: 49 anos depois de Montesquieu, 26 depois de Voltaire e Rousseau, 21 anos depois de terminada a Revolução Americana e 15 depois da Francesa. Morre precisamente no mesmo ano em que Napoleão consolida o poder alcançado em 1799 e está prestes a ser coroado imperador.

Kant já não é portanto um homem da ilustração enquanto movimento de pensadores. Pertence à geração seguinte, que viveu a progressiva implementação desses ideais, indissociável do Espírito das Leis e do Contrato Social, ou seja, de uma inversão total do princípio da legitimidade, que já não era transferida de Deus ao soberano, mas do povo ao governante.

Como pós iluminista, competiu-lhe atar muitas pontas que os seus antecessores deixaram soltas. Desde logo, a relação entre perene e volátil, entre o apreendido pelos sentidos e pela razão, que a agonia de Deus veio ressuscitar desses remotos tempos de Heraclito e Parménides.

Kant resolve este binómio contraditório com a relação entre fenómeno e noumenon, entre razão prática e pura. Com isto abriu o caminho para que a Ciência se pudesse constituir em nova liturgia de acesso à verdade, observando o fenoménico diverso e conseguindo unificá-lo no nouménico universal.

Havia porém outra ponta solta deixada pelos seus predecessores, resultante dessa nova fonte de legitimidade, que já não era o Deus uno, mas um corpo de cidadãos diversos. Esse corpo sofreria de anomia se não tivesse uma normatividade mínima, capaz de o unir.

Com o famoso imperativo categórico, a moral kantiana vem resolver o problema pendente:  Handle so, daß die Maxime deines Willens jederzeit zugleich als Prinzip einer allgemeinen Gesetzgebung gelten könne“ ("Age de tal modo que a máxima da tua vontade possa ser sempre considerada como o princípio de uma lei geral").

Uma sociedade de massas assente no princípio da soberania popular é disfuncional se não estamos de acordo com alguns princípios morais elementares, e o “imperativo categórico” constituiu-se em átomo desses princípios. Agir como se a nossa vontade pudesse ser uma lei geral implica não ser sectário, implica olhar para o outro como parte de uma universalidade, fundir a diversidade humana com a universalidade do direito.

É isso que esquecem todos aqueles que rasgam as vestes pelo criminoso ataque a um hospital em Gaza e não o fazem por igual crime na Ucrânia; por um criminoso ataque na Ucrânia e não em Gaza.  

A primeira declaração dos direitos do Homem é um fruto do iluminismo, indissociável de uma adjetivação substantiva que lhe foi introduzida pela Assembleia Geral das Nações Unidas em 1948: Universal. Os que se sentem ungidos dessa ideia apenas para defender posições sectárias, matam Kant e distorcem o direito.

 

Luís Novais

segunda-feira, 11 de março de 2024

DE ONDE VEM E AONDE CHEGARÁ O CHEGA?

Pedro Nuno Santos disse, e bem, que quase 20% dos portugueses não são fascistas nem xenófobos. Afirmou também a necessidade de entender as causas do seu descontentamento e reconquistá-los. Esta é a atitude correta e só teremos pós-Chega se os lideres dos partidos que construíram a Democracia segurem esta via.

A análise do recente resultado eleitoral está naquela fase que mais gosto, que é a da formulação de hipóteses, essa que António Damásio considera ser a intuição do cientista. Depois deste momento da inspiração, certamente virão os trabalhos de campo, os grupos de foco, as amostras, as entrevistas… todos esses métodos que a ciência social criou para, também ela, encontrar regularidades e transformar num cosmos possível esse caos que é o ser humano.

Procurarei neste artigo formular algumas hipóteses meramente intuitivas sobre as causas do terramoto político que foi a subida do partido Chega, assim como fazer alguma  sociologia das interpretações, neste último caso já com alguns dados muito preliminares de campo.

Eclético que procuro ser e realmente centrista, consigo estar bem nos grupos de direita e de esquerda, ouvir ambos e dialogar com uns e com os outros. Estas apenas 24 horas já me permitiram sistematizar algumas das explicações que estão a ser dadas e, mais do que aderir a alguma delas, fazer a respetiva sociologia.

Por que subiu tanto o Chega?

Um amigo votante à esquerda e parte da classe média com formação superior, com emprego garantido e todas as respetivas conquistas socio laborais, acusava aquilo a que chamava “a oligarquia do sistema” de ter orquestrado tudo, manipulando a Comunicação Social e fabricando sondagens. É uma típica teoria da conspiração frente à qual lhe disse que tal oligarquia, a existir, era aquela a que ele mesmo (e já agora, eu) pertence, ou, pelo menos, aquela que a massa eleitoral do Chega vê como tal.

Na minha perceção (e aí vai a formulação de hipótese) os apoiantes deste partido são aqueles que não têm trabalho seguro, não fazem descontos, não recebem subsídio de desemprego, férias pagas e subsídios em julho e dezembro; tampouco têm relacionamentos pessoais relevantes que os ajudem a resolver alguma situação complicada. Vivem numa mole de instabilidade e olham até para o tradicional operário sindicalizados e com direitos laborais como uma classe privilegiada à qual gostariam de pertencer. Para eles, PS e PSD são os mesmos de sempre, que se aproveitam e lhes bloqueiam o acesso àquilo que consideram ter direito. Bloco e Livre são “copinhos de leite” burgueses urbanos a lutar pelos privilégios que recebem dos seus empregos de classe média licenciada. O PCP é o protetor dos “proletários”, base social do sistema, para eles privilegiada e a partir a partir da qual se forma a fronteira entre o mundo dos outros e o seu próprio.

Não é por acaso que o Chega atingiu o seu melhor resultado no Algarve, reino do emprego sazonal, da instabilidade no trabalho e da falta de direitos laborais. Este distrito é precisamente aquele onde esta sociologia do Chega se aplica na perfeição. Creio ser por isso que aí teve aí este resultado e trata-se de um laboratório do que poderá ser este modelo de desenvolvimento, assente no turismo e no trabalho precário.

Para uma sociologia das interpretações

Como disse, procuro ser eclético e tenho um posicionamento político alinhado ao centro, que aliás é o que me faz votar no PSD. Isto permite-me estar a meio caminho entre posições de direita ou de esquerda e, sobretudo, ouvir a ambas.

Aparte o excelente discurso de derrota proferido por Pedro Nuno Santos, creio que, na maioria, ainda todos usam o Chega mais para defender as suas próprias posições, do que para analisar fenomenologicamente as razões do eleitor deste partido.

Dou apenas dois exemplos, mas poderia dar muito mais:

1. Num grupo de esquerda acusava-se o PS de ser o responsável por esta  situação, porque teria desinvestido nos serviços públicos, ao invés de aumentar a respetiva quantidade e oferta. Normalmente acrescenta-se um suposto maquiavelismo do Presidente da República. Ou seja, a culpa seria do Governo por ter sido excessivamente liberal, argumento que se apimenta com a crença numa manipulação vinda de Belém e, também, da imprensa.

2. Em grupos de direita dizia-se que não, que os eleitores do Chega eram “pessoas como nós”, que antes votavam no PSD e no CDS, empresários  e quadros superiores que estavam fartos da excessiva carga fiscal, que são também contra a chamada “ideologia de género”. Ou seja, o problema seria a falta de liberalismo e putativos excessos nos costumes. Este argumento também leva o seu tempero, normalmente culpando-se a Comunicação Social (bombo para as festas de uns e outros) e os comentadores que, à direita e à esquerda, fariam o jogo desta última.

Com algumas variações, vi este tipo de argumentação disseminado, respetivamente à esquerda e à direita. O interessante destes argumentos é que também eles têm uma sociologia. Primeiro, ambos os grupos procuram usar o Chega para defender que o que faz falta são mais políticas daquelas em que cada um acredita: mais serviços públicos e mais Estado, num caso, menos impostos, mais liberalismo e uma moral conservadora, no outro.

Também é interessante verificar que vivemos em bolhas sociais que passamos a considerar a realidade. Creio que a massa de votantes no Chega é aquela que referi (os excluídos do sistema), mas como esse grupo não está entre as relações diárias e de amizade daqueles que têm um pensamento estruturado e uma posição social de algum conforto, que são os que sabem usar o “poder simbólico” da linguagem e expressar corretamente uma linha de pensamento, tendemos a confundir os relacionamentos pessoais com a realidade e a dar àqueles de entre as nossas amizades que votaram neste partido, uma importância eleitoral que a meu ver não têm. Claro, repito, que estamos ainda no domínio das perceções e da formulação de hipóteses e todas as visões são válidas enquanto não tivermos trabalhos de campo.

A negação

Uma última palavra para referir aqueles que não têm nenhuma destas interpretações, mas apenas veem o Chega como um bando de fascistas e racistas, uma praga de infra humanos que que nem querem ver e que apagam das suas amizades no Facebook. Para estes, o Algarve tornou-se num reino maldito.

Considero que esta é a atitude mais perigosa, por ser de negação e uma recusa de compreender o fenómeno. Pedro Nuno Santos disse, e bem, que quase 20% dos portugueses não são fascistas nem xenófobos. Afirmou também a necessidade de entender as causas do seu descontentamento e reconquistá-los. Esta é a atitude correta e só teremos pós-Chega se os lideres dos partidos que construíram a Democracia seguirem esta via.

Aparentemente o PS já está a aprender e vai por aí, espero que o meu partido e o seu líder, Luís Montenegro, não fiquem excessivamente absorvidos pela governação e não consigam fazer o mesmo, ou acredito que teremos surpresas desagradáveis nas próximas eleições, provavelmente antecipadas.

 

Luís Novais


Foto: Leopictures por Pixabay