Clovis Graciano, “Músicos” (1969) |
Foram trezentos anos desgastantes, estes que vivemos. Fizemos e desfizemos utopias, matamos e ressuscitamos deuses, navegamos bipolares entre razão e obscurantismo, levantamos altares a uma ciência que nos devolveu holocaustos, apostamos alma na matéria e ficamos sem nada, quisemos fazer mundos e o mundo era afinal terra que nos assentou sonhos. Estamos numa dessas fases, dessas em que tudo o que foi esperança de gerações passadas é agora desesperança.
A história das mentalidades
decorre num contexto de esperanças, desesperanças e redobradas esperanças.
Somos humanas e temos consciência, o que nos dá essa tão fantástica quão
desesperante capacidade para entender que não somos entidade, mas entes, seres
sem Ser. Não nos é possível esse alcance sem cairmos na tentação do
aprendiz de feiticeiro, sem entrarmos no tão humano jogo de querer marcar e
mudar o mundo. Podendo imaginá-lo, é impossível não tentá-lo; mas tentar é muito
mais fácil do que alcançar. E eis o alento duma geração que rapidamente se
transforma em desânimo, até que os seguintes seu próprio ânimo encontrem.
Lembro-me de ter feito esta
reflexão num pequeno museu de Estrasburgo, quando fui observando as
transfigurações mitológicas, fantásticas e realistas que se sobrepunham numa
cronologia muito óbvia: Clássico, barroco, romântico, neoclássico. Recentemente,
tive a mesma sensação no Rio de Janeiro, que além de me oferecer a sua beleza
natural, me presenteou uma mostra de arte e um livro. Aquela, foi a coleção
Santander de arte contemporânea, exposta no Museu de Belas Artes. O livro, foi
a primeira obra dum escritor que não conhecia: “O Que Não Existe Mais”, de
Krishna Monteiro.
A própria exposição convidava este
casamento, que aí se procurava unir obras de arte plástica, com obras de arte
literária. Poemas de Vitor Loureiro, ou Paulo Henriques Britto, lado a lado com
quadros de Manabu Mabe, Milton da Costa ou Francisco Robalo.
A face opaca do mundo
Nos encara, fria e cega
É necessário enfrentá-la
Talvez tudo se resuma nestas
palavras de Britto, também elas expostas no Museu. Talvez o problema esteja
entre essa imperiosa necessidade de enfrentar, e a desalentadora ignorância de
como fazê-lo.
Nas telas que se sucediam, cada
artista com sua visão, a sua parte da poção transformadora.
Absolutamente certos, uns, prenhes de dúvidas e desalento, outros.
John Graz, “Canoeiros” (1975) |
Motivos relacionados com o trabalho,
dum “Colheita de Café” (1953) de Manabu Mabe, dos “Músicos” (1969) de Clovis
Graciano ou dos “Canoeiros” (1975) de John Graz. Quadros que nos levam fugindo para o regionalismo das “Casas de Ouro Preto” (1936) de Milton Costa e dos “Coqueiros de Itapuã”
(1956) de José Pancetti. Artes que mostram uma crença nas mãos transformadoras,
porque trabalham, porque tocam melodias que nos comovem; ou então na mudança
pela regeneração, pela busca do que foi e já não é, uma antiga integridade
apenas visível na natureza, no campo ou na velha urbe.
José Pancetti, “Coqueiros de Itapuã” (1956) |
“Fauna, Flora e Nativos
Brasileiros” (1953) de Carybé, é já completamente indigenista, quase em
desespero e não vendo qualquer reforma possível dentro dos nossos parâmetros
civilizacionais, o artista parte em busca da harmonia dum autêntico bom selvagem,
essa mesma harmonia que já não consegue encontrar no seu próprio contexto civilizacional. Entre o eu
que conheço bem ser mau, e o outro que conheço mal ser bom, a opção pelo outro.
Carybé “Fauna, Flora e Nativos Brasileiros” (1953) |
Desconcertados com a nossa
incapacidade transformadora, já não cremos mãos, não cremos música nem
procuramos mistérios em passados anacrónicos ou sincrónicos. Se à face opaca do
mundo é necessário enfrentar, façamo-lo “Como se escala uma pedra/ É preciso
penetrá-la/ Como se houvesse um lá dentro”.
A única forma de decifrar um enigma,
é outro enigma que, por indecifrável, esconda quão real é o irreal. Entramos em “Delirio” (1964), “Extase” (1964) ou “Sonho”, todos de Farnese de
Andrade. Já não conseguimos a unidade perdida, eu e o outro são peças
impossíveis de reunir, tanto que já sentimos estranhamento quando descobrimos
que “É até curioso falar com um homem inteligente”(2010) de Flávia Metzler. Essa
mesma desmultiplicação de eus que encontramos nas “Cabeças” (1995) de Siron
Franco. E afinal, tudo se resume num “Enigma” (1989), de Gilvan Samico.
Gilvan Samico, “Enigma” (1989) |
Mas “A face opaca do mundo/ Nos
encara fria e cega”. “É necessário enfrentá-la”, sim. Mas como? Como, agora que
as mãos não se provaram regeneradoras? Que o regresso nostálgico não reformou, que cada
enigma por decifrar se tornou mais indecifrável pelo enigma decifrador?
Siron Franco, “Cabeças” (1995) |
Flávia Metzler, “É até
curioso falar com um homem inteligente”(2010) |
Mais más que boas, essas mãos,
incapazes do bem, transformam-se em instrumentos do mal. “Howling for You” (2012) de Renata de
Bonis. A perturbadora jovem imperturbada, essa que caminha, de costas para nós,
rumo a bosque cinzentos, loiro cabelo, sangrentas mãos. “Howling for You”.
Talvez este desconcerto do real, esta consciência dos limites, a era do fim dos
sonhos, talvez tudo isto explique também o súbito fascínio pelo fantástico: duendes, mortos vivos, possessões. Não somos donos, nem de
nós, nem do nosso querer, muito menos do humano destino. “Howling for You”.
Renata de Bonis, “Howling for You” (2012) |
“O QUE NÃO EXISTE MAIS”
Será por acaso que descobri esta obra
depois de ver esta exposição? Seria bom que tudo estivesse traçado por soberana mão, mas tão pouco sou decifrador
de enigmas. Krishna Monteiro desvela-nos oito contos com vidas e pensamentos
que rumam sem destino, talvez porque num passado longínquo já acreditamos no
destino, talvez porque num outro tempo mais próximo estivemos certos de que, afinal, cada um seria dono
do seu caminho e, por último, talvez porque nos caiu o mito iluminista desse Homem que, graças ao conhecimento, seria bom; eis-nos sem crença salvadora.
Neste livro vemos passar
sentimentos em catadupa e sem ordem aparente. A finitude e a incapacidade de aceitá-la,
no conto que dá título ao livro. A perda dum pai que, aos olhos do narrador,
teima em reaparecer, estando presente em cada objeto, em cada momento. Tudo
isto resumindo outro dos nossos dramas: sabemos que somos, o que já não é
pouco, e sabemos de insuportável saber que algures deixaremos de ser.
“As encruzilhadas do Dr. Rosa”,
parecem ser as mesmas do homem do nosso tempo. Um registo quase onírico, que balanceia
entre crenças. Uma batalha de inconciliáveis: o cientista que cura e o batista
que purifica. Ou então nesse outro conto, tão simples como sendo apenas a
história dum galo de combate. É narração do próprio animal, um conflito
permanente entre o que deve ser e o que tem de ser, entre vida e luta, entre
amor e ódio, entre luta e morte. Um personagem que balanceia entre o implacável
e a autocomiseração.
As histórias
sucedem-se e, um por um, vamos sentindo o mesmo desespero de cada personagem.
Já não são Ícaros, que caíram, mas subiram, nem Sísifos, de tarefa inglória mas
grandiosa. Já não é o mundo de Aquiles e Heitor. Já não ecoa a voz guerreira de
Sarpedon, cuja consciência da morte é ânimo para imortalização: “Meu amigo, se
tendo fugido desta guerra pudéssemos/ viver para sempre isentos de velhice e
imortais,/ nem eu próprio combateria entre os dianteiros/ nem te mandaria a ti
para a refrega glorificadora de homens” (“Ilíada”, Canto XII).
Foram trezentos anos
desgastantes, estes que vivemos. Fizemos e desfizemos utopias, matamos e
ressuscitamos deuses, navegamos bipolares entre razão e obscurantismo,
levantamos altares a uma ciência que nos devolveu holocaustos, apostamos alma na
matéria e ficamos sem nada, quisemos fazer mundos e o mundo era afinal terra
que nos assentou sonhos. Estamos numa dessas fases, dessas em que tudo o que foi
esperança de gerações passadas é agora desesperança. O mundo, o outro, voltou a
ser um inalcançável que se observa, mas que funciona por si, sem ordem nem
ordenador. Então, só resta o que restou a esse personagem que Krishna nos apresenta em “Um âmbito
cerrado como um sonho”: “Além da janela, depois da ponte, acima da baía, o sol
se põe. Quatro mulheres conversam, eu, refestelado sobre a almofada, observo-as
pouco a pouco desaparecerem nos escaninhos do meu sono”. Assim, passivamente,
seguindo o seu ritmo, sem alheia interferência, mortal e sem glória, numa
palavra: “howlling”.
Luís Novais