Cada vez que entrei numa
casa ocidental, que viajei com beduínos no Sinai, que estive com nativos na
amazónia, com seguidores de crenças diversas, com professores numa universidade;
de cada vez que leio Platão, Santo Agostinho ou George Steiner; cada vez que
estudo civilizações que foram e já não são, que vou a um concerto de roque ou
de música clássica, que oiço proclamações políticas e filosóficas, que assisto
a celebrações religiosas… Cada vez que entro e observo, esta é a ideia a que
recorro quando busco perceber o código cultural: Que estratégias seguem ou
seguiram para resolver o drama desse dualismo; o eu e o outro?
Eduardo Lourenço deu uma
entrevista ao Expresso da semana passada. O mote foi o lançamento em português
do livro “Cultura – Tudo o que é preciso saber”, do filósofo alemão Dietrich Schwanitz.
Na conversa que manteve com a jornalista Luciana Leiderfarb, Lourenço definiu “cultura”
como sendo“o diálogo da humanidade consigo mesma”, uma fórmula com que não
concordo, mas que é interessante, pelo menos narrativamente.
O mais aliciante desta
definição é que contraria o enciclopedismo patente no próprio subtítulo da
referida obra: “Tudo o que convém saber”. Numa sociedade da hiperinformação, o
problema central já não é o acesso se não a seleção do conhecimento, e é por
isso que as obras facilitadoras de escolhas estão em voga e têm a sua versão
popular nos títulos pensados para captar audiências a partir das redes sociais:
“10 Lugares que você tem de visitar antes de morrer”, “10 Obras que tem de ler
antes de morrer”… e uma data de outros projetos a não perder antes que chegue a
meta fatal.
Opostamente à ideia de
cultura como tudo aquilo que se deve saber, Eduardo Lourenço apela a Levi
Strauss: “Tudo é cultural. Porque o homem é um ser pensante”.
Quando nasceu a cultura? Para
Lourenço, com o tédio. Socorre-se de Pascal: “A infelicidade da humanidade é a
incapacidade para estar sozinha num quarto. É não se contentar com o que está à
sua volta ou com as coisas urgentes que a solicitam e que deveriam ocupá-la. A
cultura é, assim, a invenção contínua de respostas para a expulsão do sem
sentido”.
Estaria bem se fossemos a
única espécie a sentir essa infelicidade da solidão e do tédio, mas é visível que
não somos. Se essa produção artificial chamada cultura é exclusivamente humana,
devemos procurar naquilo que é exclusivamente humano para lhe encontrar
justificante e uma definição.
Enquanto espécie, somos fruto
de mudanças climáticas que ocorreram há uns cinco milhões de anos: Recuaram os
glaciares, diminuíram as florestas e as savanas ou os desertos conquistaram uma
parcela substancial do planeta. O ecossistema florestal deixou de ser
suficiente para quantos aí viviam; os mais fortes apoderaram-se do agora
escasso território, expulsando os outros para lugares inóspitos. Entre essas
espécies estariam alguns símios, que tiveram de adaptar-se ao novo meio. Já não
tinham uma árvore de acesso fácil para escapar à voracidade dos predadores e
por isso precisavam de antevê-los. A gradual conquista duma posição ereta foi a
resposta que encontraram, com todas as consequências estruturais que isso teve
na morfologia, nomeadamente na craniana. O cérebro foi tendo mais espaço e
ganhou novas capacidades.
Ler as obras de António
Damásio, é perceber que somos uma excentricidade da natureza: o nosso cérebro é
o único que permite a consciência de ser, o único que origina a criação daquilo
a que Damásio chama memória autobiográfica, ou personagem “eu”. Eduardo
Lourenço aborda esta questão, é pena que en
pasat e não como centro do tema “cultura”: “Se a humanidade tem uma essência
qualquer, é justamente ter memória de si mesma”.
O drama é que ganhar consciência
do “eu”, implica também reconhecer o “outro”; a unidade cósmica estava perdida.
Creio ser em totem e Tabu
que Freud afirmou que para um recém-nascido não há uma separação entre ele,
entre o seu corpo, e ela, a mãe, a teta por onde mama. É verdade que a
neurologia desse tempo ainda não permitia analisar a raiz desta questão nem à
luz da filo, nem à da ontogenia cerebral; mas já então o pai da psicanálise nos
fala duma nostalgia desse absoluto.
É interessante verificar como,
cada uma à sua maneira, as mitologias procuram enquadrar este drama. Foi quando
comeram da árvore do conhecimento do bem e do mal, que Adão e Eva ganharam
consciência de si, que outra coisa não explica a vergonha que sentiram e que os
levou a tapar os corpos. Foi essa mesmíssima consciência que determinou a
expulsão de um paraíso onde anteriormente estava unido aquilo que o proibido fruto
lhes separou.
Viajando até à Grécia
antiga, também Prometeu foi agrilhoado por ter oferecido a luz, quer dizer, o
conhecimento, à humanidade.
Tudo isto dá uma dimensão
antropológica à célebre frase de Sartre: “O inferno são os outros”.
Temos uma característica
única: sabemos que somos. Essa é a fonte da nossa grandeza e também do nosso
drama. A natureza é centrada na sua sobrevivência genérica, pobres das espécies
que tenham características excêntricas, e nós somos a mais excêntrica de entre
as que já pisaram este mundo. Tudo aquilo que com as outras espécies partilhamos,
resolve-se facilmente de uma forma natural, inconsciente: O cérebro sabe criar
a sensação de fome quando essa alquimia do corpo lhe transmite uma falha
energética, as plaquetas coagulam instintivamente em contacto com o ar para
impedir uma hemorragia, o coração bate mais ou menos forte em função da
homeostasia… E a consciência de nós? E a fragmentação cósmica que implica? E o
drama de Adão e Eva? O de Prometeu? Esses são problemas exclusivos da espécie;
por isso temos a capacidade mas não sabemos lidar naturalmente com ela. É
talvez isso, a cultura: mais do que o diálogo da humanidade consigo mesma, é um
diálogo da humanidade com o outro, com o cosmo. Cultura será, então, a forma
artificial a que recorremos para resolver um problema que a natureza nos deu,
mas de que a natureza não cuidou.
Cada vez que entrei numa
casa ocidental, que viajei com beduínos no Sinai, que estive com nativos na
amazónia, com seguidores de crenças diversas, com professores numa universidade;
de cada vez que leio Platão, Santo Agostinho ou George Steiner; cada vez que
estudo civilizações que foram e já não são, que vou a um concerto de roque ou
de música clássica, que oiço proclamações políticas e filosóficas, que assisto
a celebrações religiosas… Cada vez que entro e observo, esta é a ideia a que
recorro quando busco perceber o código cultural: Que estratégias seguem ou
seguiram para resolver o drama desse dualismo; o eu e o outro?
Nessa caso, cultura é
cosmovisão.
Luís Novais
Foto: iamanilozturk (domínio público)
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