quinta-feira, 4 de junho de 2009

Micro-memórias dum desconhecido.

Nota prévia: Por engano entregaram-me estas folhas juntamente com umas fotocópias que pedi. Não resisti a ser indiscreto: a partilhá-las.

As minhas micro-memórias.
Quando entrei para a escola queria ser arqueólogo. Daqueles arqueólogos que são arqueólogos no Egipto. Esses descobridores de múmias e de pirâmides e de outros tesouros como sejam até arcas perdidas, que destas últimas ainda não se falava no tempo em que o quis ser.
Ainda puto mas menos puto quis ser escritor. Na quarta classe comecei um livro com um grupo de colegas: escrevíamos um capítulo alternadamente. Claro que não funcionou. Cada um encarnou um dos personagens e quando era a sua vez de escrever só fazia tropelias aos outros. E pensado bem: talvez até tenha funcionado: talvez assim tivesse ficado mais parecido com a realidade. Mas nessa altura éramos putos. E como éramos putos ainda achávamos que a realidade era diferente da realidade. E por isso não acabamos o nosso livro.
Desiludido com a escrita terminei a escola primário. Descobri que queria ser historiador. Como historiador quis sucessivamente ser arqueólogo (nesta altura já era mais abrangente: já não precisava de ser no Egipto) e depois medievalista e depois contemporanearista.
Devo reconhecer que a fase mais difícil foi a primeiríssima: quando quis ser arqueólogo no Egipto. Os meu pais não gostavam nada daquela mania do puto: esburacar-lhes o jardim. E fartavam-se de me explicar que era impossível encontrar pirâmides enterradas no nosso quintal. É claro que eu não acreditava. E continuava a escavar. Até que um dia deu-se aquilo que parecia um milagre: havia mesmo uma pirâmide no quintal! Mas não era no local onde eu escavava: era mesmo ao lado. Eu explico. Nesse dia trabalhei mais arduamente do que trabalhara até aí. E talvez por isso: ao lado da minha vala de arqueólogo havia uma grande pirâmide: uma pirâmide feita de terra: do monte de terra que eu tinha tirado do buraco. E o meu pai quase ficou em catatonia quando chegou a casa. E dessa vez fui mesmo coagido a acabar com as minhas pesquisas arqueológicos… nesse tempo havia métodos educativos verdadeiramente eficazes… mas no fundo no fundo: continuo com a certeza de que há uma pirâmide enterrada algures naquele quintal. E um dia ainda vou tirar esta teima!
Tudo isto foi intervalado com a fase em que quis ser mágico. Essa fase teve de característico um clube de magia de que eu era o único sócio. Orgulho-me: comecei-o do nada. Hoje-em-dia fala-se tanto das garage-corporations: essas que são grandes empresas mas que começaram numa garagem. Mas eu comecei a ser mágico duma forma ainda mais embrionária. Claro que tive sorte com a forma como evoluiu o processo civilizacional. Mas soube tirar partido disso. E segundo dizem é aí que está o génio. Sucede que por esse tempo estava a deixar de ser moda que o almoço de domingo fosse criado em casa. Ganhava-se aquela ideia de que animais em casa são da família e que a família não se come (com conhecidas excepções que têm sido casos de justiça nos últimos tempos). Atentos ao andar da História: os meus pais concluíram que já não fazia sentido criar os galináceos intra-muros e no seio do agregado familiar. Foi por isso que também o nosso almoço de domingo passou a ser de aviário e a nossa ultima galinha teve até tempo de ganhar nome próprio para além de nome de espécie. Morreu de velha e foi enterrada e julgo que foi até chorada, a Micas.
Sucede que com a morte da micas: vagou o condomínio fechado onde a micas residia. E foi também assim que consegui instalações próprias para o meu clube de magia do qual eu ainda era o sócio único. Mas cá comigo pensei que tendo instalações assim tão condignas: precisava também de ter mais sócios. Confesso que neste ultimo projecto contei com uma grande ajuda chamada “Páginas Amarelas”. Sem elas jamais teria conseguido. Quem hoje-em-dia está familiarizado com a internet não imagina quão difíceis eram esses tempos em que fui pioneiro do que futuramente viria a chamar-se direct-marketing. E toca de escrever uma carta a todos os mágicos: “convido-o para sócio do clube de mágicos”. Era uma carta digna, muito: ia escrita à máquina e tudo!
Orgulhosamente orgulhoso fiquei quando um dos mágicos apareceu lá em casa. Estava eu no quintal. “É aqui o clube de mágicos?” “É sim. Mas a sede é nas traseiras.” E lá fomos para o antiga assoalhada da saudosa Micas. E pelo caminho lá foi o mágico perguntando-me se o presidente do clube estava. E lá foi sabendo que o presidente do clube era mesmo eu. E lá fomos chegando à sede. E ainda hoje estou convencido de que dessa vez fiz magia mesmo a sério: o mágico desapareceu para nunca mais aparecer. E ainda hoje me esforço para perceber como usei desse poder que é meu. Sobretudo quando ouço alguns políticos a falar.
Avançando no tempo que esta mania de ser mágico foi um parênteses e já está maior do que a história toda.
Da fase de mágico passei para a de domador de animais selvagens. De alguma forma deveria estar com uma tendência circense. Mas o que interessa é que consegui. Uma vez mais sou a prova viva e vivida de que a tenacidade compensa. E consegui sob a forma dum grilo que treinei para o funambulismo: essa arte humana de caminhar sobre uma corda que se diz bamba. Arte humana, não: disso tenho a prova provada. Com sangue suor e lágrimas consegui amestrar o meu grilo para essa tal de funambulismo. E ele fazia-o melhor do que qualquer humano. Mas, ó triste sina: sofreu grave acidente: a corda estava a dois palmos do chão e o pobre animal caiu. E atenção: dois palmos pode parecer pouco para nós que somos mais altos. Mas ponham-se esses dois palmos à proporção da altura destes comedores de alface: pode imaginar-se a gravidade da situação.
Nesse preciso momento decidi que tinha de salvar aquele herói. E de domador de feras fiz-me imediatamente noutra vocação: queria ser médico: queria salvar o meu grilo funambulista. E dei o meu melhor. De algodão ensopado com álcool em riste: e tudo chapado sobre o pobre do acidentado. Mas em poucos segundos vim a perceber que não aguentava ser médico. Afinal esforçara-me tanto. E ainda assim não o salvara! A dor de alma era muita e dessa dor de alma um médico não pode padecer. Pobre grilo! E de médico me fiz coveiro: paz à sua alma.
E tudo isto foi passando sem que eu desistisse completamente da arqueologia e da História. Digamos: talvez no meu percurso a magia e a domesticação de grilos funambulistas tenha sido a expressão da minha crise dos oito anos: a passagem de putíssimo para puto. Mas agora já não, agora estava superada a crise e uns anitos depois até me pus a pesquisar o que julgava ser a História da minha vida, pondo-me a fazer a tal árvore que dizem genealógica... aquilo que um francês que também é historiador disse ser culto dos mortos: a identidade dos que ainda vivem na vida dos que já não. Desprezando tão mal-intencionado gaulês, passava noites a imaginar o romance que escreveria com tamanha coleção de mortos, eu. Coisa épica a sério, que Gonçalo Ramires era um pindérico e agora a coisa era comigo.
E entretanto lá fui crescendo e ganhando penugem e começando a sentir aquelas ânsias das partes a que chamam baixas mas que na verdade são intermédias. E lá chegaria o tempo de ir para a Universidade. E obviamente que quando tocou a escolher curso: foi para História que fui. Queria vir a ser investigador, um historiador a sério. Mas, é claro, na Universidade lá me desiludi com a Universidade. Mas o problema devia ser meu: afinal eu já falhara algumas vezes: falhara como mágico porque a única magia que conseguira fora a do desaparecimento de outro mágico e falhara como funambulista de grilos e até como médico de grilos funambulistas. E como eu sabia que a culpa era minha e não da Universidade, tomei uma decisão: já que lá estava deveria tirar partido desses tempos. Esses mesmos que pouco originalmente costumávamos dizer que eram os melhores da nossa vida. Fui presidente da minha Associação Académica durante três anos e isso fez-me ganhar o gosto pelas coisas da liderança, por essa arte tão nobre e sublime: a política.
Curso terminado preparava-me para ser professor de História. Mas um então ministro convidou-me para almoçar. Resultado: 24 horas depois era adjunto. Gostei da experiência mas percebi que afinal detestava a política: se era para fazer ilusionismo então preferia regressar à magia.
Regressei isso sim à vida civil e foi o Reitor da minha Universidade que me convidou para desenvolver um projecto. Não durei seis meses. Despedi-me. Decidi que tinha de ser independente: estávamos em 1994 e o que estava a dar era ser empreendedor. Começava a falar-se de internet. Eu mal sabia utilizar um computador. Mas achei que aquele era o negócio da minha geração. Vendi o meu carro. E com esse dinheiro criei uma produtora de software para a internet. Se eu fosse modesto não diria que foi uma das primeiras no mundo. Mas como talvez seja: não digo mesmo. Enfim, uma excentricidade tamanha: o historiador que afinal não o foi meteu-se a fazer uma empresa de software. E não foi por ininputabilidade que qualquer mestre da psique confirmaria que o espécime em questão estava consciente da sua inconsciência: para ele, o que fazia trabalhar essas máquinas chamadas de computadores era tão misterioso como a própria bruxaria.
Enfim. Passados 13 anos já me era insuportavel, a empresa. Voltei a achar que o problema era meu. Resolvi arejar a cabeça e fui fazer uma pós-graduação em negócios. A escola era das melhores da Europa e até do mundo. E a pós-graduação tinha uma designação muito pós-graduado, entre outras coisas chamava-se "de alta direção". E nem sei se aos meus colegas foi útil. Sei que a mim foi. E muito: percebi definitivamente que já não queria nada com essa maluquice de ser empresário. Enfim, alguns anos de vida por água abaixo que querer ser contra-corrente num país de correntes tem seus custos. Mas a culpa foi minha, claro, pois já tinha um bom histórico de rotundos falhanços: escritor falhado em puto, falhado mágico, impossivel treinador de grilos funambulistas, não falando no fracasso enquanto médico dos ditos, ou do Gonçalo Ramires de trazer por casa e do ex-futuro político... enfim, uma história que fala por si e que reforça as minhas culpas no cartório, pois que não se consiga à primeira ou à segunda tentativas, até é natural, mas tanto falhanço só mesmo por responsabilidade individual, nunca pela social. Reconheço-o, mas sem humildade, até com minha pontinha de orgulho..
E porque cada vida não esgota a vida: tive de arranjar outra. E mudei. Só ainda não sabia para o que estava a mudar. Mas estava a mudar. Isso estava. Nessa altura conheci uma gringa num desses sites de Web dita social. Dois meses a conversar online e meti-me num avião, eu. E meteu-se num avião, ela. Encontramo-nos em Miami Beach. Foi XXXXXXX:) enquanto durou. Mas claro, a gringa era muito gringa e passados cinco dias já não a conseguia aturar. E acredito que nem ela a mim. Mas a imodéstia não me permite aceitar esta ultima parte. Estávamos em Key West quando nos separamos. Uma estupidez: eu apenas lhe dissera que ela tinha uma cabecinha tal qual de um tal de Mr.Bush, que na altura era o maioral dum império que já não existe e de que talvez ainda vos lembreis, que alguns dizem que sim, que ainda existe mas que está apenas em vias de extinção, ou em reestruturação, conforme os que o dizem não gostam ou gostam de impérios do bem, que também há impérios dos outros, os do mal, que normalmente são os que este, que é o do bem, designa como maus. Uma afirmação que em si mesmo já quer dizer que os que assim os dizem, aos impérios maus, consideram que também pode haver bondade num império, o seu; enfim, pontos de vista.
Voltemos, isso sim, ao que interessa: por via da zanga com a dita gringa, lá estava eu, numa ilha que não conhecia e sem ter nada para fazer. Um autentico Robison Crousué, eu. Ou morria de tédio ou o tédio morria de mim. Tive de inventar alguma coisa para fazer. Enfim: lembrei-me que em putíssimo quisera ser escritor. E pensei que talvez já fosse suficientemente crescido para poder voltar a ser putíssimo. E desatei a escrever. E escrever é o que tenho vindo a fazer desde então. E ainda não parei. 
Não sei se fui claro.

4 comentários:

  1. Continua, nessa busca,a escrever ... Para quem, como eu, te acompanhou de perto, no teu inconformismo de arqueólogo, historiador e mágico.

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  2. Eu acho que já encontraste a pirâmide enterrada.

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  3. Fernanda Jones Cardoso17 de junho de 2009 às 07:33

    eu acho que se ganhou um mágico domador de letras (nada se perde, tudo se transforma)

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