Ela acaba de abrir a porta de alumínio que dá entrada para o prédio. O prédio dorme. Está quase a acordar. Mas ainda não. Por agora ainda dorme. E ela já entrou no prédio e já ao prédio fechou a porta. Fechou-lha ela para que por si a porta se não fechasse: em estrondo que acordaria o prédio pouco antes de ser tempo do prédio acordar. E é por isso que o prédio continua a gozar os últimos instantes: em minutos de sono.
Agora que ao prédio fechou a porta: ela respira fundo: sente-se aliviada. É sempre assim que se sente todos os dias quando ao prédio fecha a porta: aliviada. E se o é: é tão só porque a partir daquela hora todas as horas são suas. Todas até à hora em que o prédio janta e vê as notícias e palita os dentes e depois das notícias vê a novela e antes ou depois da novela veste o pijama e depois de vestir o pijama vai dormir. E é esse o momento em que ela todos os dias sai do prédio. E quando todos os dias sai do prédio e fecha a porta para que a porta não se feche por si: ela respira fundo. É um respirar fundo igual ao respirar fundo de quando chega: mas apenas na aparência: a partir do momento em que fecha aquela porta e está na rua: a partir desse momento todas as horas deixam de ser suas. Passam a ser “horas da casa”. Horas contadas em meias horas e por vezes até em quartos de horas. Horas e meias e quartos de horas dos clientes.
Mas agora não. Agora ela está a chegar ao prédio e o prédio ainda dorme e as horas voltam a ser suas. É que ela acaba de fechar a porta do prédio. E a esta hora fecha-a consigo do lado de dentro. Fecha-a para que a porta não se feche por si mesma: em estrondo que acorde o prédio pouco antes de ser tempo do prédio acordar. Não é por preocupação com o prédio que ela não quer que o prédio acorde. Não! É tão só porque o tempo começa agora a contar para si: é seu: muito seu: inteiramente seu. E ela não quer que o prédio dê por ela: no tempo que é seu ela não quer que ninguém a tome por sua.
Sobe a escada. É em mármore branco com veios. Alguns dos veios já eram do mármore quando o mármore se fez mármore. Outros não: outros são veios do uso: do desgaste. E enquanto ela sobe: ela pensa nos seus próprios veios. Quais do seus veios já seriam seus quando ela foi feita ela? E quais já seriam seus quando ela se fez ela? E quais já seriam seus quando os outros a fizeram ela? É por esta ordem que ela põe as suas coisas quando olha para os veios dela, da escada.
E continua a subir a escada. Vai com os sapatos de salto numa mão. Vai com a carteira de dourados esbatidos na outra mão. E continua a subir a escada. Até nem são muitos, os degraus que ela tem de subir. Mas a partir do momento em que fecha a porta do prédio: os pensamentos de si para si são tantos: são tão velozes: tantos e tão velozes que criam a ilusão de serem muitos, os degraus que ela tem de subir. Mas não: não são. São bem poucos, até.
Na verdade ela só conhece aquelas escadas de as subir. Descer desce sempre pelo elevador. O prédio está quase a ir dormir quando ela desce. Mas ainda não dorme. E por isso ela desce pelo elevador: não se importa com o barulho que o elevador faz. E há sempre quem saia do prédio à mesma hora que ela. O que nunca há é quem chegue quando ela chega. E é por isso que subir sobe-se pelas escadas puídas e descer desce-se pelo elevador, pelo menos para ela é assim.
Já subiu. Está frente à porta do apartamento a que chama seu. É desenvernizada, a porta. E tem lustro: mas apenas em volta da fechadura e do puxador. O puxador goza da mesma duplicidade: tem verdete no mais recôndito de si e lustro no mais palpável. Talvez uma duplicidade universal. E o prédio dorme: continua a dormir.
Ela. Ela mete a chave na porta: enfia-a com suavidade: como ela acha que a porta gostaria de ser enfiada. E o prédio dorme. E ela roda a chave: a mesma suavidade com que a enfiou. E o prédio dorme. E a porta abre-se a ela: lentamente: está bem oleada. E o prédio dorme e ela entra na casa a que chama sua.
Já está dentro da casa a que chama sua, ela. E caminha nas pontas dos pés: o prédio ainda dorme. E ela suspira. Despe-se. É frente ao espelho que se despe. Gosta de se ver. Não se despe para ninguém como se despe para si. É que aquelas horas são suas.
Já se despiu. Não se lava: nem de corpo e nem de dentes. Fá-lo sempre na “Casa”: antes de sair. É que a partir do momento em que deixa a “Casa” o tempo passa a contar para si. E ela acha que deve deixar a porcaria do tempo que é o tempo dos outros na “Casa” que é a casa dos outros. Não quer transportar essa porcaria para o tempo que é o seu tempo. Muito menos para a casa que é a sua casa, ou a que chama a sua casa.
Já está nua. Está de costas deitada na cama e está nua. Vê a lâmpada no tecto: a lâmpada no tecto está nua como ela. Olha para o lado: o espelho do armário: o espelho mostra ela a ela: nua. E enquanto se vê nua: enumera: enumera quantos prazeres iludiu nessa noite. E enquanto os enumera: continua deitada e nua e livre neste tempo que é o seu. E como está livre: sente-se, livre. As mãos que estavam estendidas no extremos dos braços estendidos para lá da cabeça: começam a vir até si. Uma dessas mãos queda-se na boca, um dedo: apenas um dedo. A outra não: a outra percorre-a descendo e descendo. E pára: o bico grosso duma mama: afaga-o. Engrossa mais. E conforme engrossa o bico: levanta-se-lhe a anca: destaca-se-lhe a púbis no espelho: no espelho do armário. E é até lá que no espelho ela se vê ir: com a mão a cobrir essa púbis que agora se não vê e os dedos que são seus afogados no que é seu. Está toda ela concentrada em si: pleno gozo do tempo que é seu. E estremece. Estremece de corpo todo. Apetece-lhe gritar. Não grita. O prédio ainda dorme e aquele grito seria um grito verdadeiro e como seria um grito verdadeiro é um grito só seu: só seu, só para si. E é por isso que gritado é: mas gritado dela para ela.
Apaga a luz. E fecha os olhos. E dorme. Dorme consigo. Goza. Goza daquele tempo que é seu. E o prédio acorda. E usa o elevador. E deixa a porta bater.
Agora que acordou: o prédio não se importa que ela durma. E ela também não.
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