E aí está, como um cartaz
pretensamente feito para combater a intolerância, se torna num caso de estudo
de intolerância. Entre os que pensam diferente, ainda ninguém foi tão longe, mas estes são tão
básicos como esses outros, os que dizem “paneleiros”.
Sou alguém que se foi fazendo
pelo contacto com a diferença. Já cruzei as areias do Sinai numa caravana de muçulmanos que
paravam para orar, coabitei com beduínos em cavernas da Jordânia, foi com
tuaregues que conheci o Saara, assisti aos “pagos a la tierra” dos camponeses
andinos, um balobeiro da Guiné Bissau leu o meu futuro nas entranhas
duma galinha acabada de matar. Em Israel e na Palestina, tive a oportunidade de
conhecer o ponto de vista de uns e de outros, entrando nas respetivas casas,
tomando em família cafés árabes e chás verdes com menta, assim como estive em
casa de árabes cristãos. Já entrei em sinagogas, mesquitas, igrejas cristãs, e
até já fui capaz de levar uma amiga estrangeira a visitar Fátima.
Também já passei por diversas comunidades
campesinas da América Latina e na amazónia coabitei com nativos Yaguas,
Ashanincas, Machiguengas e Awajun, entre outros. Os deuses não
estavam ausentes e aos deuses se orava, cada um à sua maneira.
Eu não, que não tenho Deus a Quem
reze. Considero-me um descendente do racionalismo iluminista, com os toques
sociais que lhe deram Proudhon, Bakounine e, em certa medida, Marx. Sou
comunitarista no que respeita à teoria da organização e social-democrata na
ideologia. Não acredito na revolução, prefiro a reforma, que vai mais lenta mas
mais longe. Também tenho em mim todas as crises da modernidade e da
pós-modernidade, que me transformam num caldeirão de ideias e conceitos por
vezes difíceis de conciliar. Talvez tenha sido essa necessidade de conciliar os
meus eus, que me fez aprender a respeitar o outro, independentemente de
qualquer conceito, apenas porque é.
Se houve algo que aprendi na
profusão de culturas com que me cruzei, foi que todos podemos conviver. Aprendi
que os desejos de paz professados por alguns betinhos urbanos, não se fazem com
proclamações, mas ali, no terreno, sendo capaz de transformar a diferença em
aceitação e a aceitação em enriquecimento cultural mútuo.
Essencial é respeitar, essencial
é não colocar o fundamentalismo filosófico ou religioso à frente da
antropologia.
O desrespeito pela idiossincrasia,
pelas crenças alheias, é o ponto de partida para a intolerância. Alguns somos
incapazes de aceitar o outro, porque ele é o desconhecido, porque ele é visto
como ameaça. É isso que torna qualquer atitude discriminatória numa postura
profundamente provinciana, típica de quem não tem mundo, típica de quem não
aprendeu a importância de aceitar e de respeitar.
O cartaz dos dois pais de Cristo resume
essa atitude numa só imagem e em meia dúzia de palavras. Não nego o direito que
têm a fazê-lo e até a ir muito mais longe, já disse que sou filho do iluminismo
(terei dois pais, também…) e tenho a liberdade de expressão entre os meus
valores supremos.
Reconhecendo que se trata dum ato
em si mesmo legítimo, não me nego o mesmo direito: Concluir e dizer que há
alguns betinhos urbanos que melhor estariam a ganhar mundo, concluir e dizer que
há certos provincianos que gostam de proclamar paz mas que se comportam como
quem gosta de guerra, concluir e dizer, enfim, que há uma grande diferença
entre a ideal tolerância que alguns professam e a atitude com que se consubstanciam.
E aí está, como um cartaz
pretensamente feito para combater a intolerância, se torna num caso de estudo
de intolerância. Entre os que pensam diferente, ainda ninguém foi tão longe, mas estes são tão
básicos como esses outros, os que dizem “paneleiros”.
Luís Novais