sábado, 27 de fevereiro de 2016

OS BETINHOS PROVINCIANOS DO BLOCO DE ESQUERDA



E aí está, como um cartaz pretensamente feito para combater a intolerância, se torna num caso de estudo de intolerância. Entre os que pensam diferente, ainda  ninguém foi tão longe, mas estes são tão básicos como esses outros, os que dizem “paneleiros”.

Sou alguém que se foi fazendo pelo contacto com a diferença. Já cruzei as areias do Sinai numa caravana de muçulmanos que paravam para orar, coabitei com beduínos em cavernas da Jordânia, foi com tuaregues que conheci o Saara, assisti aos “pagos a la tierra” dos camponeses andinos, um balobeiro da Guiné Bissau leu o meu futuro nas entranhas duma galinha acabada de matar. Em Israel e na Palestina, tive a oportunidade de conhecer o ponto de vista de uns e de outros, entrando nas respetivas casas, tomando em família cafés árabes e chás verdes com menta, assim como estive em casa de árabes cristãos. Já entrei em sinagogas, mesquitas, igrejas cristãs, e até já fui capaz de levar uma amiga estrangeira a visitar Fátima.

Também já passei por diversas comunidades campesinas da América Latina e na amazónia coabitei com nativos Yaguas, Ashanincas, Machiguengas e Awajun, entre outros. Os deuses não estavam ausentes e aos deuses se orava, cada um à sua maneira. 

Eu não, que não tenho Deus a Quem reze. Considero-me um descendente do racionalismo iluminista, com os toques sociais que lhe deram Proudhon, Bakounine e, em certa medida, Marx. Sou comunitarista no que respeita à teoria da organização e social-democrata na ideologia. Não acredito na revolução, prefiro a reforma, que vai mais lenta mas mais longe. Também tenho em mim todas as crises da modernidade e da pós-modernidade, que me transformam num caldeirão de ideias e conceitos por vezes difíceis de conciliar. Talvez tenha sido essa necessidade de conciliar os meus eus, que me fez aprender a respeitar o outro, independentemente de qualquer conceito, apenas porque é. 

Se houve algo que aprendi na profusão de culturas com que me cruzei, foi que todos podemos conviver. Aprendi que os desejos de paz professados por alguns betinhos urbanos, não se fazem com proclamações, mas ali, no terreno, sendo capaz de transformar a diferença em aceitação e a aceitação em enriquecimento cultural mútuo. 

Essencial é respeitar, essencial é não colocar o fundamentalismo filosófico ou religioso à frente da antropologia.

O desrespeito pela idiossincrasia, pelas crenças alheias, é o ponto de partida para a intolerância. Alguns somos incapazes de aceitar o outro, porque ele é o desconhecido, porque ele é visto como ameaça. É isso que torna qualquer atitude discriminatória numa postura profundamente provinciana, típica de quem não tem mundo, típica de quem não aprendeu a importância de aceitar e de respeitar. 

O cartaz dos dois pais de Cristo resume essa atitude numa só imagem e em meia dúzia de palavras. Não nego o direito que têm a fazê-lo e até a ir muito mais longe, já disse que sou filho do iluminismo (terei dois pais, também…) e tenho a liberdade de expressão entre os meus valores supremos. 

Reconhecendo que se trata dum ato em si mesmo legítimo, não me nego o mesmo direito: Concluir e dizer que há alguns betinhos urbanos que melhor estariam a ganhar mundo, concluir e dizer que há certos provincianos que gostam de proclamar paz mas que se comportam como quem gosta de guerra, concluir e dizer, enfim, que há uma grande diferença entre a ideal tolerância que alguns professam e a atitude com que se consubstanciam. 

E aí está, como um cartaz pretensamente feito para combater a intolerância, se torna num caso de estudo de intolerância. Entre os que pensam diferente, ainda  ninguém foi tão longe, mas estes são tão básicos como esses outros, os que dizem “paneleiros”.



Luís Novais

quarta-feira, 17 de fevereiro de 2016

SETOR PÚBLICO E OLIGOPÓLIO NA ECONOMIA GLOBAL





Quando 40% das vendas mundiais são controladas por apenas 147 empresas, não há como argumentar com a excessiva dimensão do Estado para atacá-lo por ineficaz.

Pertenço a uma geração que cresceu sob uma intensa campanha promovida por comentadores, académicos e outros fazedores de opinião. Diziam-nos que o Estado era mau gestor e que a explicação era muito simples: Não pertencia a ninguém, não tinha concorrência e era grande de mais para ter controlo.

Propriedade e concorrência seriam os dois catalisadores capazes de levar qualquer atividade à eficiência, com vantagens óbvias para o consumidor, essa entidade em que, gradualmente, se metamorfoseava o cidadão.

Está mais do que estudada a conjugação de interesses que levou a formatar uma geração para viver de acordo a este modelo e problematizar esse tema não é, por agora, o meu objeto. Não resisto, contudo, a dizer que tornar as universidades excessivamente dependentes do mercado, as transforma em centros de pensamento monolítico, incapazes de produzir qualquer contraditório científico ou humanístico. Diga-se também que a concentração dos meios de comunicação conduziu ao mesmo.

O que sim quero abordar são os fundamentos com que se atacou o Estado e se justificou o seu emagrecimento bulímico, com a consequente entrega a privados de quase todos os serviços públicos.
Comecemos pelo putativo monopólio estatal. Em primeiro lugar, trata-se dum problema que ocorreu, sim, mas no mundo empresarial dos nossos dias. Eu sei que há autoridades da concorrência para evitá-lo e, por exemplo, todos estamos lembrados de que, em finais dos anos 90, a Autoridade da Concorrência vetou a compra da CENTRALCER pela UNICER.

Esquecemo-nos que a regulação dos Estados funciona nacionalmente e os casos em que a OMC intervém à escala global são reduzidos e muito circunscritos. Hoje em dia é quase anedótico que a autoridade portuguesa da concorrência tenha impedido esta fusão, quando já temos consciência da concentração que se verifica no mercado global. Um estudo efetuado em 2011 por três investigadores da Universidade de Zurique veio demonstrar que a economia global estava controlada por um reduzido grupo de apenas 1.318 empresas, que detinham 40% das vendas mundiais. O pior é que este grupo é controlado por outro ainda mais restrito: nada mais do que 147 megacorporações de topo. Cinco anos depois deveremos ter uma concentração ainda maior. 

A quem queira comprovar empiricamente esta realidade, basta percorrer as prateleiras dum supermercado e contar pelos dedos os produtos que não são, direta ou indiretamente, controlados por uma das seguintes marcas: Mondelez, Kraft, Coca-Cola, Nestlé, Pepsico, P&G, Johnson&Johnson, Mars, Danone, General Mills e Kellogg’s. E o que se passa com os bens de consumo, passa-se de igual maneira noutras áreas essenciais: Comunicação social, companhias aéreas, bancos, industria automóvel etc. (ver dados aqui)

Quando 40% das vendas mundiais são controladas por apenas 147 empresas, não há como argumentar com a excessiva dimensão do Estado para atacá-lo por ineficaz.

É certo que estas empresas são privadas e o Estado não, e por isso aplica-se-lhes o segundo axioma: São de alguém. Hoje em dia, essa é outra falsa questão. Quem sabe dizer a quem pertencem as megacorporações? Sim, eu sei, pertencem aos acionistas. E quem são esses acionistas? Investidores anónimos que já não estão interessados no valor que as empresas possam gerar, mas na especulação das suas ações, nem que para isso provoquem destruições de valor de dimensão bíblica. Sabemos que a recente crise se deveu em grande parte a uma gestão empresarial orientada a obter resultados imediatos no mercado bolsista.

Um insustentável peso e a inexistência de concorrência são, assim, as outras duas causas duma alegada ineficiência do Estado, que hoje se aplicam mais ao setor privado do que ao público. 

O reforço da democracia e uma cidadania cada vez mais livre, mais informada e reivindicativa, fizeram com que nas últimas três décadas assistíssemos à implementação de mecanismos muito apertados de controlo do Estado. Os princípios orçamentais, os tribunais de contas, oposições atuantes, a vigilância de organismos supranacionais como a União Europeia… Tudo isto conduziu a que políticos e funcionários estejam hoje sujeitos a um controlo muito estrito e difícil de contornar. Por outro lado, o setor público emagreceu imenso, devido às privatizações, à transferência de serviços  para privados, às APPs etc.

Como consequência, hoje temos um Estado debaixo de lupa e com uma dimensão muito reduzida, ao mesmo tempo que, no terreno privado, as doutrinas desregulatórias de Reagen e Thatcher se foram universalizando e a globalização permitiu um desmapeamento de empresas e capitais que torna impossível qualquer controlo. 

Paradoxalmente, a situação e os argumentos inverteram-se: se compararmos com quatro décadas atrás, os Estados são hoje como eram os Empresas e as Empresas como eram os Estados. Não são controladas, têm uma dimensão superior à boa gestão, crescem sem concorrência e não são de ninguém. É essencial regulá-las, acabar com oligopólios, encontrar mecanismos que não lhes permitam crescer até à dimensão que têm e fazer com que voltem a ter dono. Devíamos pensar em reforma-las antes de propagarmos doutrinas neoliberais e, sobretudo, antes de privatizar mais e mais serviços públicos. 


Luis Novais

Foto: geralt