Se chegarmos ao fim com um disputa eleitoral entre Trump e Sanders,
teremos
um grande sinal de que também nos Estados Unidos a época dos consensos está a chegar ao fim. Ainda que isso não aconteça, o simples
facto dessa possibilidade
ser considerada, já é uma considerável mudança e um reflexo
claro de que há um abalo na estabilidade do sistema.
O dealbar dos modelos económicos e sociais traz consigo o regresso aos
grandes debates políticos, com consequências de cronologia variável. O insustentável
peso social duma economia de base colonialista, deu a primeira vida concreta ao debate iluminista,
conduzindo à independência dos Estados Unidos da América e ao seu modelo constitucional.
Pouco depois, a constatação de que um Estado cada vez maior precisava de um
controlo que o regrasse, decapitou a monarquia absoluta em França.
A incapacidade da coroa espanhola para assegurar a colonização das suas
possessões americanas, levou o colonialismo a reinventar-se num modelo
independentista. Em Portugal, a falência do modelo regenerador assente em obras
internas com endividamento externo, desequilibrou as contas e, com elas, os
consensos sociais, terminando na lamentável morte de D. Carlos e numa república
que nunca chegou a alcançar a estável fase dos consensos.
O medo da liberdade que Erich Fromm teorizou, é uma espécie de subproduto
de um medo talvez ainda maior: o horror ao vazio. A espécie gosta de sentir segurança e é por
isso que, seja por partilha coletiva, nas sociedades mais preparadas, seja por
caudilhismo, nas impreparadas, prefere a certeza do mal que sofre, do que a
incerteza de caminhos por desbravar.
É esta tendência que leva os sistemas a tender ao equilíbrio e as
democracias a ser governadas ao centro. Porém há fraturas históricas, e
geralmente ocorrem quando os modelos vigentes estão sob um cataclismo tal, que
se generaliza a convicção de que é muito mais perigoso ficar do que aventurar.
Esses são os momentos em que as placas tectónicas sociais despertam para avanços que podem terminar em abalos historicamente assinaláveis.
A mundialização do sistema capitalista, que hoje é dominante em quase todas
as economias, trouxe consigo uma grande falta de coesão ao próprio modelo. Por
outras palavras, nenhum sistema vive sem a moral que lhe é própria e nenhuma
moral resiste à grande expansão do sistema que suporta. Foi o que aconteceu,
por exemplo, ao cristianismo, depois que deixou de ser a religião de alguns
pobres e escravos de Roma, e passou a teologia oficial: Foi tomado de
assalto pelos poderes fácticos e, digo-o com alguma liberdade conceptual, rendeu-se
ao pragmatismo.
O capitalismo globalizado impôs-se de tal forma e conseguiu atingir
uma dimensão tão grande que, hoje, sofre de elefantíase. Ler o que Max
Weber escrevia em 1904 sobre a ética protestante e o espírito do capitalismo, ao mesmo tempo que hoje se testemunha
aquilo que este sistema económico se tornou, é falar de duas realidades
completamente distintas. Onde Weber via probidade, espírito de sacrifício, pensamento
de longo prazo, hoje vê-se sobretudo ambição desmedida, ganância e imediatismo.
A esta decadência moral, soma-se a do próprio iluminismo. A crença na Razão, no método científico como liturgia da verdade, na honestidade
intelectual, é todo um idealismo que fez da universidade numa espécie de
templo da modernidade e transformou os cientistas em sacerdotes, com hierarquias e
ritos que os transformam em metáforas perfeitas duma Igreja.
Rousseau, Montesquieu, Diderot ou Voltaire, corariam de vergonha se
chegassem aos nossos dias e vissem “Inside Job”, o célebre documentário de Charles
Ferguson sobre a crise financeira de 2008, onde se põe a nu a forma como relações
perigosas entre as universidades e o sistema financeiro deturparam o conceito de ciência.
À força da generalidade da população ter sentido na carne os efeitos
nefastos do modelo económico vigente, nesta última década generalizou-se uma
tripla constatação: primeiro, sobre o real funcionamento do sistema, depois sobre a alquimia da
verdade em narração e, por último, sobre o excessivo peso da comunicação frente ao da ciência. Aquilo
que antes eram apenas os alertas de alguns excêntricos, são hoje conhecimentos
comuns e consensuais nas conversas de café.
Estaremos a entrar numa dessas fases em que se gera a convicção
de que ficar como se está é mais perigoso do que aventurar um novo caminho?
Há dois fenómenos que me parecem anunciar que sim. Um deles é o regresso a
uma ética da simplicidade que, por exemplo, fica patente na popularidade
mundial do ex-presidente do Uruguai, Pepe Mujica, ao volante do seu Volkswagen carocha
avaliado em menos de 3.000 euros, que ele próprio conduzia da pequena
quinta em que vive para o palácio presidencial. O modo de vida austero de outro herói da atualidade, o papa Francisco,
é mais um sinal duma possível nova era, que, diga-se en passant, Marcelo rebelo de Sousa parece ter
interpretado muito bem na forma como montou a sua campanha eleitoral.
Outro dos fenómenos que aponta no mesmo sentido, é o andamento das eleições
primárias nos Estados Unidos, com os candidatos de centro, Hillary Clinton
e Marco Rubio, abalados por candidaturas mais ideológicas e com opções alternativas:
Trump e Ted Cruz, nos republicanos, e Sanders nos Democratas.
Se chegarmos ao fim com um disputa eleitoral entre Trump e Sanders, teremos
um grande sinal de que também nos Estados Unidos a época dos consensos está a chegar ao fim. Ainda que isso não aconteça, o simples facto dessa possibilidade ser considerada, já é uma considerável mudança e um reflexo
claro de que há um abalo na estabilidade do sistema.
Olhando em redor, percebe-se que vivemos tempos de desconforto.
Talvez o mundo ainda não saiba para onde quer mudar, mas a necessidade de
mudança já abala o conservadorismo e motiva o aparecimento de propostas
alternativas. Depois da tecnocracia dita pragmática, que tem por único
princípio a gestão eficaz dum modelo que não questiona, estamos a regressar às ideias e às ideologias. São tempos de esperança, sim,
porque “navegar é preciso”, mas também de receio: a ideia é sublime e o sublime
sempre foi o principal justificador do sangue e do crime.
Luís Novais
Sem comentários:
Enviar um comentário