segunda-feira, 16 de março de 2009

A propósito de "O Mandarim", de Eça de Queirós.

Acabo de reler “O Mandarim”. Quem “acusa” Eça de ser um escritor realista devia prestar mais atenção a esta obra.

A partir da segunda edição, o conto passou a incluir a “Lettre que aurait du être une préface”: uma carta que o escritor enviou ao Redactor da francesa “Revue Universelle”: “Vou voullez, Monsieur, donner aux lecteurs de la Revue Universelle une idée du mouvement littéraire contemporain en Portugal, et vous me faites l’honneur de choisir Mandarim, un conte fantaisiste et fantastique, où l’on voit encore, comme au bon vieux temps, apparaître le diable”.

Nesta releitura achei curiosa a preocupação que Eça aqui demonstra. Desde logo porque eu próprio acabo de lançar um romance, “Os Parricidas”, onde o Dito diabo faz as suas apariçõezinhas, naturalmente que com bastante menos mestria do que aquelas que fez em “O Mandarim”… desculpe-se o meu ilustre personagem: que conste, Diabo, Diabo, a haver, que o há, é só um. E por isso as diferenças estão, neste caso, nos desníveis do génio de quem o descreve e não no personagem em si mesmo.

Mas, não levemos o meu egocentrismo ao ponto de me fazer crer que foi esta coincidência que mais me atraiu na referida carta. Não é que eu o renegue, ao egocentrismo: renegá-lo será talvez, para qualquer pessoa, colocar-se num estado de harmonia tão grande com o cosmos que seria, em si mesmo, uma arrogância. Especificando: a fórmula máxima de pôr o “Eu” nos píncaros.

Adiante.

Curioso, curioso, é o facto de Eça como que pedir desculpa por ter escrito uma obra onde surge a figura mitológica do Diabo. E percebe-se que essa desculpa se fundamenta num sentido de responsabilidade para com os seus pares portugueses. Afinal, “O Mandarim” tinha sido escolhido pela revista para ilustrar a literatura que à época se fazia em Portugal. E “O Mandarim”, com o seu pendor fantástico, não era, de forma alguma, o tipo de literatura por que Eça e os seus pares da geração de 70 pugnaram.

Netos da “Luzes” setecentistas e filhos do positivismo oitocentista, os escritores da época procuraram transferir o laboratório para as páginas dos seus romances. É o próprio Eça quem o afirma quando, na referida carta, diz que “hoje toda a nossa juventude literária, e até alguns dos mais velhos, escapados do romantismo…” se entregam “…pacientemente ao estudo da natureza…” e fazem “…constantes esforços para inserir nos livros o máximo de realidade viva”. Não obstante, diz, “aqui, neste canto ensoalhado do mundo, nós continuamos a ser muito idealistas no fundo e muito líricos.” Mas “Isto não podia continuar, principalmente depois que a evolução naturalista triunfou em França, e a direcção das ideias, no que tocava à arte, parecia dever ficar nas mãos da ciência experimental”. E é precisamente neste movimento que me atrevo a chamar de Literatura de laboratório que (não obstante “O Mandarim”)Eça se quer ver incluído: “Contudo, mesmo antes do naturalismo, entre nós, já alguns jovens espíritos tinham compreendido que a literatura de um país não podia ficar para sempre alheia ao mundo real”. Para concluir (note-se que na primeira pessoa do plural) que: “Impusemo-nos, pois, corajosamente o dever de jamais olhar o céu – mas a rua”.

O incómodo de Eça é compreensível. Antero, Teófilo Braga, Oliveira Martins, enfim, tanto os que directamente estiveram na origem da “Questão Coimbrã”, como os que foram por ela originados, dificilmente lhe desculpariam que “O Mandarim” fosse considerado em França (e logo em França!) como um exemplo da literatura contemporânea portuguesa.

Julgo que daí a razão de ser desta carta. Uma carta que é uma espécie de desculpabilização. Que é um como que dizer: eu sou um homem dos tempos modernos. Eu sou um naturalista. Eu sei que a literatura é uma arma de combate e não uma espécie de recurso onírico. Eu sou e eu sei isso tudo. Mas apesar de tudo o que sou e sei, por vezes não consigo deixar de ser português: “neste meio real, contemporâneo, banal, o artista português, habituado às belas incursões através do ideal, asfixiava; e, se por vezes não pudesse fazer uma escapadela até ao azul, bem depressa ele morreria da nostalgia da quimera.” E então “pelo menos durante um pequeno volume, já não se suporta a incómoda submissão à verdade, a tortura da análise, a impertinente tirania da realidade.” Acto de contrição feito: “escrita a ultima folha, corrigida a ultima prova, abandona-se a rua, volta-se ao passeio e retoma-se o estudo severo do homem e da sua miséria externa. Contente? Não senhor, resignado.”

Compreende-se. Eça e os seus são netos das luzes setecentistas e são filhos do empirismo oitocentista. Esse mesmo empirismo que tinha a razão, a experiência, o experimentalismo e o laboratório como sustentáculos. Filhos desse século XIX que procurou abolir qualquer causalidade que não fosse material. Que vivia obcecado por explicar tudo cientificamente. Tão obcecado que já não se contentava em explicar cientificamente: queria agir cientificamente. De tal forma obcecado que a única ideologia que gerou (o socialismo que se disse científico) elevou a Ciência a fonte de legitimidade política. Tão obcecado que acreditou que qualquer homem seria bom desde que ilustrado por uma espécie de racionalidade científica: essa mesma crença (e sublinho o termo crença pela contradição que implica) que fez com que um génio como Freud tivesse procurado uma glândula do comportamento, ou duas, já que em homens como em mulheres a dita glândula é, regra geral mas com excepções, um par de glândulas.

E é por isso que Eça quase pede desculpa por ter escrito “O mandarim”: por ter supostamente sido influenciado pelo passado.

Mas Eça não sabia. Não sabia e nem podia saber. Enquanto escrevia a “lettre que aurait du être une préface”, Eça não sabia que vinte e oito anos depois Kafka viria a escrever “A Metamorfose”. Que trinta e quatro anos depois essa mesma ciência que supostamente levaria a um homem bom, possibilitou, isso sim, a guerra mais sangrenta que a humanidade conhecera. Enquanto escrevia a “lettre que aurait du être une préface”, Eça não sabia que Virginia Woolf nascera dois anos antes. Assim como não sabia que trinta anos depois James Joyce começaria a escrever “Ulisses”. E que dentro de oitenta e três anos Gabriel Garcia Marquez publicaria “Cem anos de Solidão”. E que quase cem anos depois um português como ele, José Saramago, escreveria “O Homem Duplicado”.

Eça não podia saber nada disto. Mas em “O Mandarim” parece adivinhar tudo. E é por isso que acho curioso aquilo que faz na carta ao Redactor da “Revue Univverselle”: como que pede desculpa pelo pecadozinho de ter sido influenciado pelo passado. Influenciado sim. Mas Eça não sabia pelo quê: afinal em “O Mandarim” estava influenciado pelo futuro. E essa é a característica mor dos génios: serem influenciados pelo futuro.
Claro que, a rematar, e sem desprimor, não posso deixar de referir que em 1890 Oscar Wilde publicou "The Picture of Dorian Gray", um livro onde o realismo já é mágico. E digo "sem desprimor" porque não podemos confundir "património literário da humanidade" com "património literário da língua portuguesa".

Concluindo:“O Mandarim”: um pequeno conto de José Maria Eça de Queirós: a minha leitura favorita, de entre todas as que o génio nos proporciona.

1 comentário:

  1. Chiedo perdono di commentare nella mia lingua (l'italiano)questo bell'intervento su "O Mandarim". Il portoghese riesco solo a leggerlo, con un po' di fatica; di scriverlo non se ne parla ancora. Ma mi sono spinto a questa fatica proprio grazie alla lettura di Eça: partito dalla traduzione di "Os Maias" ho poi voluto sentire la voce dello scrittore, la sua vera, in "A cidadade e as serras", "O crime do padre Amaro", "Alves & C.a", e "O Mandarim", appunto. Una deliziosa variazione sul quesito volterriano del campanello a cui è legata la vita di un cinese; scintillano in più passaggi le osservazioni argute su tanti aspetti della vita borghese del tempo (e non solo del Portogallo!). Particolarmente ironica la lettera-prefazione, con una caratterizzazione della letteratura nazionale dove ci sono alcune perle indimenticabili (come quella della "nostalgia da quimera).
    Sono pienamente d'accordo che è un testo da leggere e rileggere, con molto profitto.

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