domingo, 24 de maio de 2009


Vim para Braga.
Está bonito, o meu jardim.

O Fenómeno.

Aquele fenómeno foi um fenómeno nunca visto. Já tinham ocorrido fenómenos um bocado semelhantes. Mas apenas um bocado. E há que considerar que semelhante já é uma palavra sem sentido absoluto. É por isso que “semelhante” existe. Se assim não fora teríamos apenas o “igual” e o “cem por cento”. Igual para ser usado pelos poetas. Cem por cento para ser usado pelos matemáticos, pelos cientistas.

Mas o fenómeno que é este fenómeno nunca tinha acontecido. A única coisa que já ocorrera fora algo de um bocado parecido. E note-se que parecido é igual a semelhante. E se é a palavra que agora se usa é tão só para obedecer às regras da estética da língua que é esta língua: não ser repetitivo. Não ser repetitivo no que se diz. Não ser repetitivo no que se pensa. Não ser repetitivo nas palavras. Sobretudo isso: não ser repetitivo. Jamais ser repetitivo.
E era isso mesmo que este fenómeno não era: repetitivo. Nunca acontecera. E como nunca acontecera não podia sê-lo: repetitivo.

É certo que já haviam ocorrido movimentações. Movimentações de povos e culturas e civilizações. Isso já. Mas isto não: isto desta forma nunca acontecera. As movimentações levaram a instalações e a destruições. Os romanos fizeram isso: movimentaram-se e instalaram-se e destruíram o que estava. E os bárbaros: movimentaram-se e instalaram-se e destruíram o que estava. E os Zulus: movimentaram-se e instalaram-se e destruíram o que estava. E os Incas e os Maias e os caucasianos em geral: sobretudo os caucasianos em geral. Todos. Todos sem excepção. Todos se movimentaram e instalaram e destruíram o que estava.

Mas isto? Isto não. Isto nunca acontecera. E ninguém sabe explicar uma explicação para o porquê disto. Até porque isto aconteceu duma forma que ninguém esperava. Não foram os Estados que combinaram. Não foram os partidos que combinaram. Não foram Organizações Não Governamentais que combinaram. Nada! Nada mesmo. Absolutamente nada foi combinado.
Foi tudo repentino e sem planeamento. Mas aconteceu como se fosse tudo previsto e planeado. De repente. De repente as pessoas começaram a deslocar-se. E não foram as pessoas, pessoas. Foram as pessoas: países. Foram as pessoas: culturas. Foram as pessoas: civilizações. Todas. Todas começaram a deslocar-se. E sninguém consegue explicar uma explicação. E se ninguém consegue explicar uma explicação: é porque tudo foi espontâneo.

Espontâneo e repentino. Repentinamente. Repentinamente deixou de haver espanhóis em Espanha. Repentinamente deixou de haver portugueses em Portugal. E americanos na América e russos na Rússia e franceses na França e ingleses na Inglaterra, nem mesmo Sua Magestade. Todos os povos: de repente todos os povos deixaram de existir no território que até aí fora o território desses povos.

Desapareceram? Foram destruídos por outros que se movimentaram e instalaram? Não. E isso é o mais estranho. Os espanhóis, por exemplo: os espanhóis espalharam-se por todos os territórios excepto pelo território chamado Espanha. E os portugueses por todos os territórios excepto pelo território chamado Portugal. E os americanos e os chineses e os franceses e os indianos e os ingleses, até Sua Magestade que agora ocupa um apartamento de três assoalhadas no território conhecido como Tibete.

O que terá provocado isto? Ninguém sabe. Foi algo de tão espontâneo como espontâneo é o fetiche sexual dos salmões e das enguias e das andorinhas e das cegonhas. E porque foi assim espontâneo: os sociólogos não conseguem explicar o fenómeno. Talvez haja uma necessidade de mudança na espécie. Talvez. Talvez uma necessidade que ocorra em cada quarenta mil anos. Talvez. E talvez um dia os sociólogos sejam capazes de ter tudo muito bem estudado. Tudo sob uma matriz: uma explicação cabal: racional: científica. Talvez demorem anos. Talvez outros quarenta mil anos para descobrirem essa descoberta. E quando descobrirem: talvez outro fenómeno ocorra. Não este. Outro qualquer. Outro que venha a ser um fenómeno até aí nunca visto. Um fenómeno que venha a ser um bocado semelhante a outros fenómenos até aí entretanto ocorridos. E há que considerar que "semelhante" já é uma palavra sem sentido absoluto. E nesse dia os sociólogos ficarão novamente sem resposta.

Talvez seja isso. Talvez a espécie queira ser o que é: uma espécie. Nada para além duma espécie.

sexta-feira, 22 de maio de 2009

Sunflower and butterfly

Who knows.
One day you'll be in a search-moment.
who knows.
One day I'll be in a search-moment.
And your search-moment will be.
And my search-moment will be.
Both search-moments will .
Will be simultaneous search-moments.
And when search-moments are simultaneous.
They are not just search-moments.
They are magic moments.
Sunflower and butterfly moments
When will I.
When will you.
When will we have such a magic moment?

segunda-feira, 18 de maio de 2009

Na Feira do Livro de Lisboa

Ontem estive na Feira do Livro de Lisboa. “Os Parricidas” foi o livro do dia no pavilhão da editora Civilização e portanto ontem foi dia de autógrafos.

Também aproveitei para regressar com mais uma dezena de livros. E gostei da feira.

O que mais me chamou a atenção não foram os livros e o público e os autores. O que mais me chamou a atenção foi o que pode parecer um pormenor. Não sei porquê: tenho esta tendência: reparar em pormenores. Mas como tenho a mania das grandezas faço-o vendo no que é aparentemente pequeno aquilo que o que é aparentemente pequeno tem de grande.

Uma rapariga. Estava a distribuir um papel. Um papelito. Um papelito escrito a preto sobre o branco. Estendeu-me um. Ainda tentei evitá-la: parecia-me o anúncio de mais um astrólogo ou quiromante ou adivinho. É possível que já ninguém repare nos papéis que os astrólogos e quiromantes e adivinhos nos deixam nos vidros e nas frinchas das portas dos carros. E sendo assim: os astrólogos e quiromantes e adivinhos poderiam estar a mudar de estratégia: poderiam estar a distribuir os seus papéis na feira do Livro de Lisboa. E foi com esta ideia que aceitei receber o papel que a rapariga me estendeu. E ainda eu o não tinha na minha mão e já com os olhos buscava o cesto de papéis mais próximo.

Ainda assim tive tempo de olhar para aquela folha branca com caracteres pretos.

E não: não era o papel dum astrólogo ou quiromante ou adivinho. Era um anúncio é verdade que era um anúncio. Um anúncio artesanal, é certo. Mas um anúncio. Começava com um “EVITE” à laia de título. E quando vi o “EVITE” do título: já eu estava novamente à procura do dito cesto de papéis. Depreendera que se seguiria qualquer coisa como “…a queda do cabelo” ou “…a fadiga sexual”.

Sorte que o cesto de papéis não estava próximo. E enquanto caminhava li instintivamente a linha que se seguia à do “EVITE”: “Evite que a arte de encadernação se extinga.” Parei. Aquela linha convenceu-me a ler a seguinte: “Que uma encadernadora seja fechada por falta de trabalho.” E desta para a seguinte: “Que três famílias acabem no desemprego.”

Agora eu já queria ler tudo o que faltava: “A encadernadora foi fundada em Agosto de 1.970 (assim mesmo: em Agosto de 1.970) por João F. Augusto. Hoje com 82 anos continua se esforçando pra levar em frente a arte de encadernação.” E depois: “Trabalhando com perfeição e honestidade fazemos encadernações simples a luxo e restauros.” Mudança de linha: uma só palavra: “AJUDE”. E prossegue: “Precisamos no mínimo mais 50 encadernações por mês pra manter a loja e funcionários. Colabore trazendo um livro para encadernar.”

Naquele momento eu já não estava na feira do Livro de Lisboa. À minha frente imaginava o Sr. João F. Augusto. Imaginava-os com oitenta e dois anos. E agarrado a livros que contam histórias ou que falam de filosofia ou que falam de ciência. Milhares de livros até aos 82 anos. Fiz contas de cabeça: o Sr. João F. Augusto teria perto de quarenta anos em 1970 quando abriu A Encadernadora. Quarenta anos. O que o terá feito mudar de vida? O que o terá feito largar o que estava a fazer e abrir a encadernadora? Que sonhos teria? Que realização prosseguia? E fê-lo: largou o que estava a fazer e abriu A Encadernadora.

Quantas pessoas terão levado os seus livros à A Encadernadora? Relíquias de família que queriam restaurar. Ou livros aos quais queriam dar nova dignidade. O que significariam esses livros para essas pessoas? Que memórias lhes trariam? E tudo isso ali: na oficina que o Sr. João F. Augusto fundou em Agosto de 1.970. assim mesmo como está: 1.970.

Para mim e agora o Sr. João F. Augusto já não era o Sr. João F. Augusto. Era uma metáfora: uma personagem. Um símbolo da voragem da história. Da autofagia com que nos consumimos: até ao tutano a consumirmos o outro: convencidos de que o nosso próprio tutano esteja a salvo. Não está!

É literatura pura o Sr. João F. Augusto. E a história que dele me veio lembrou-me um outro personagem: esse oleiro de A Caverna. Eu não sabia se o oleiro de Saramago existira ou não na realidade. Mas sim, ele existe. Se outro nome não tinha tem o de João F. Augusto.

E já agora, se tiverem livros para restaurar ou para dignificar: o Sr. João F. Augusto precisa de mais cinquenta encadernações por mês para manter a loja e os funcionários. E o Sr. João F. Augusto está em Lisboa na Rua Infantaria 16, nº 22. E tem telefone: 213855068. E tem até email. alpendrepintor@hotmail.com.

quarta-feira, 13 de maio de 2009

A casa de brincar.

Aquele espaço era um espaço para crianças. Era um espaço para ensinar. Mas era também um espaço para brincar. Aquele espaço estava dividido em várias áreas: cada uma destinava-se a uma diferente actividade. Numa dessas áreas: há um estaleiro: obras. É um estaleiro a brincar de obras a brincar: os tijolos são em esponja e servem para preencher as paredes da casa e o guindaste tem uma manivela que serve para que as crianças façam subir aqueles tijolos de brincar até ao piso de cima daquela obra de brincar.

As crianças. As crianças são umas duas dezenas. Algumas têm quatro anos e outras têm cinco e outras têm seis.

A obra é um caos. Aparente: aparentemente ninguém coordena o trabalho a fingir daquelas crianças. Mas não. Uma criança dá freneticamente à manivela do guindaste: faz subir tijolos em esponja que outros receberão e outros colocarão. Ninguém coordena as crianças. Ninguém. Mas os tijolos continuam a ser colocados no guindaste e a subir à plataforma e a ser retirados e a ser depois colocados nas paredes da casa.

Uma harmonia.

De vez em quando há disputas:

-“Quem dá à manivela sou eu!”
Ou:

-“Estes tijolos são meus!”

E das disputas sai sempre um resultado: ou continua quem estava ou fica quem entra. E a máquina continua a funcionar. A manivela roda independentemente de quem a roda. Os tijolos são colocados nas paredes independentemente de quem os coloca.

Saberão as crianças? Saberão as que disputam a manivela? Saberão as que disputam os tijolos? Saberão que tudo funciona independentemente de quem faz funcionar?

Algumas crianças parecem fora desta harmonia. Vagueiam por aquele estaleiro de brincadeira. Pegam nos tijolos de borracha tão só para os atirar ao ar. Quem serão estas crianças? Serão as desinseridas? Ou serão as únicas que sabem?
A máquina funciona independentemente de quem a faz funcionar.

segunda-feira, 11 de maio de 2009

Bolachas de Araruta

Estava sem inspiração. Não me apetecia escrever, pronto: falta de inspiração é a forma sublime de preguiça. Ou de preguiça ou da vontade da mente em mudar. Vivemos do que à mente se oferece oferecer-nos. E a mente sabe disso. E como sabe: tem caprichos. Recusa-se a dar-nos aquilo que precisamos que ela nos dê. Recusa-se a menos que lhe demos aquilo que ela quer. E a minha quer mudança: está sempre a pedi-la. E como é mudança o que quer: é mudança o que tenho de lhe dar. Pelo menos se quero que ela me dê o que eu dela quero: letras unidas em palavras e palavras unidas em frases e frases unidas em ideias: livros.

Desta vez fui para o Gerês. Já estive neste hotel: uma quinzena com a minha avó. Teria eu seis anos? Por aí. O Hotel foi recuperado. Mas é o mesmo hotel. O mesmo apesar de já lhe terem dado diversos nomes. Foi Pensão Maia e ainda os nossos avós não tinham nascido. Depois fizeram-lhe obras e chamaram-lhe “Grande Hotel Maia” e já os nossos avós poderiam ter nascido. E agora fizeram-lhe mais obras e chamam-lhe “Hotel Águas do Gerês” e já os nossos filhos nasceram. Teve vários nomes, portanto: o pobre do hotel. Mas continua a ser o mesmo. Mudaram-lhe a cara e o aspecto mas a intimidade é a mesma. Felizmente que “Grande Hotel Maia” foi escrito sobre a pedra do edifício quando de Pensão Maia se fez Grande Hotel Maia. E por isso bem podem os idealizadores do Hotel Águas do Gerês chamar-lhe Hotel Águas do Gerês: o “eu” do hotel continua bem marcado. Porque de pensão Maia para Grande Hotel Maia: há apenas uma passagem da infância para a adolescência. Mas de “Grande Hotel Maia” para “Hotel Águas do Gerês”: poderia haver uma perda de identidade.

É estranho voltar ao hotel onde passei uma quinzena da minha infância. No actual espaço tento recriar o antigo. Vejo a recepção actual com os sentidos e com a mente reconstruo a velha recepção. Introduzo o cartão que me abre a porta do quarto e imagino o pesado porta-chaves de onde antigamente pendia a chave que abria essas mesmas portas. Entro e em vez da mobília em sucedâneos de madeira que agora lá está: vejo as duas camas de ferro que antes lá estavam. Talvez este seja até o quarto: aquele onde há tanto tempo fiquei com a minha avó. Lembro-me de que dava para a rua principal e lembro-me de que era no primeiro piso. E este quarto que é agora o meu quarto: dá para a rua principal e é no primeiro piso.

Dirijo-me à janela. Abro-a. De repente tudo recuou: mais de três décadas. E vejo um rapazinho que atravessa a estrada. E esse rapazinho sou eu. Fecho a janela. Saio do quarto. Escadas: quero ir pelas escadas. Recepção. Naquele tempo havia sofás em volta de mesas baixas. E os aquístas (era assim que lhes chamavam) reuniam-se em torno das mesas. E conversavam. E faziam jogos sociais.

Procuro um sofá. Sento-me. Tenho uma lembrança estúpida: não percebo porque vem e nem percebo ao que vem: bolachas de araruta! Bolachas de araruta? E agora sim. Agora já sei porque veio e ao que veio, a lembrança. A minha avó comia bolachas de araruta. Meu Deus! Bolachas de araruta. Bolachas de araruta é mesmo coisa de avó. Avó de quarentão, diga-se: que já nem as avós dos que são hoje adolescentes comem ou comeram bolachas de araruta. Acho que já nem se vendem, as bolachas de araruta. Pelo menos já nem me lembro de as ver.

Mas agora que estou aqui. Aqui neste hotel. Agora sim! Agora tenho uma súbita vontade de comer bolachas de araruta. Lembro-me bem delas e de como as comia. Eram triangulares e tinham as pontas levantadas e eram tostadas e duras dum lado e moles e carnudas do outro. E eu gostava de lhes comer primeiro a parte carnuda. E só depois a parte tostada. Bolachas de araruta. Apetecia-me tanto comer aqui e agora uma bolachinha de araruta!

E repentinamente percebo. Percebo algo que já intuira sem nunca ter percebido. Proust. “À la Recherche dum temps perdu”. A célebre passagem da madeleine:

Et tout d’un coup le souvenir m’est apparu. Ce goût, c’était celui du petit morceau de madeleine que le dimanche matin à Combray (parce que ce jour-là je ne sortais pas avant l’heure de la messe), quand j’allais lui dire bonjour dans sa chambre, ma tante Léonie m’offrait après l’avoir trempé dans son infusion de thé ou de tilleul. La vue de la petite madeleine ne m’avait rien rappelé avant que je n’y eusse goûté; peut-être parce que, en ayant souvent aperçu depuis, sans en manger, sur les tablettes des pâtissiers, leur image avait quitté ces jours de Combray pour se lier à d’autres plus récents; peut-être parce que, de ces souvenirs abandonnés depuis si longtemps hors de la mémoire, rien ne survivait, tout s’était désagrégé; les formes - et celle aussi du petit coquillage de pâtisserie, si grassement sensuel sous son plissage sévère et dévot - s’étaient abolies, ou, ensommeillées, avaient perdu la force d’expansion qui leur eût permis de rejoindre la conscience. Mais, quand d’un passé ancien rien ne subsiste, après la mort des autres, après la destruction des choses, seules, plus frêles mais plus vivaces, plus immatérielles, plus persistantes, plus fidèles, l’odeur et la saveur restent encore longtemps, comme des âmes, à se rappeler, à attendre, à espérer, sur la ruine de tout le reste, à porter sans fléchir, sur leur gouttelette presque impalpable, l’édifice immense du souvenir.”

Proust precisou da madeleine e da recordação da madeleine para perceber o significado da madeleine e da recordação da madeleine: da sua infância, do seu “eu”. E eu precisei da bolacha de araruta e da recordação da bolacha de araruta para perceber outra coisa: só percebemos depois de sentirmos. Já li Proust e nem sei quantas vezes já li esta passagem e já tinha intuído a sua importância. Mas percebê-la? Para a perceber tive de a sentir. E agora sim. Agora e graças a uma recordação de bolachas de araruta: sei o que Proust quis dizer e acho que sei até o que Proust sentiu.

É triste para quem escreve: só depois de vivida é que a vida se torna sentida.