Estava sem inspiração. Não me apetecia escrever, pronto: falta de inspiração é a forma sublime de preguiça. Ou de preguiça ou da vontade da mente em mudar. Vivemos do que à mente se oferece oferecer-nos. E a mente sabe disso. E como sabe: tem caprichos. Recusa-se a dar-nos aquilo que precisamos que ela nos dê. Recusa-se a menos que lhe demos aquilo que ela quer. E a minha quer mudança: está sempre a pedi-la. E como é mudança o que quer: é mudança o que tenho de lhe dar. Pelo menos se quero que ela me dê o que eu dela quero: letras unidas em palavras e palavras unidas em frases e frases unidas em ideias: livros.
Desta vez fui para o Gerês. Já estive neste hotel: uma quinzena com a minha avó. Teria eu seis anos? Por aí. O Hotel foi recuperado. Mas é o mesmo hotel. O mesmo apesar de já lhe terem dado diversos nomes. Foi Pensão Maia e ainda os nossos avós não tinham nascido. Depois fizeram-lhe obras e chamaram-lhe “Grande Hotel Maia” e já os nossos avós poderiam ter nascido. E agora fizeram-lhe mais obras e chamam-lhe “Hotel Águas do Gerês” e já os nossos filhos nasceram. Teve vários nomes, portanto: o pobre do hotel. Mas continua a ser o mesmo. Mudaram-lhe a cara e o aspecto mas a intimidade é a mesma. Felizmente que “Grande Hotel Maia” foi escrito sobre a pedra do edifício quando de Pensão Maia se fez Grande Hotel Maia. E por isso bem podem os idealizadores do Hotel Águas do Gerês chamar-lhe Hotel Águas do Gerês: o “eu” do hotel continua bem marcado. Porque de pensão Maia para Grande Hotel Maia: há apenas uma passagem da infância para a adolescência. Mas de “Grande Hotel Maia” para “Hotel Águas do Gerês”: poderia haver uma perda de identidade.
É estranho voltar ao hotel onde passei uma quinzena da minha infância. No actual espaço tento recriar o antigo. Vejo a recepção actual com os sentidos e com a mente reconstruo a velha recepção. Introduzo o cartão que me abre a porta do quarto e imagino o pesado porta-chaves de onde antigamente pendia a chave que abria essas mesmas portas. Entro e em vez da mobília em sucedâneos de madeira que agora lá está: vejo as duas camas de ferro que antes lá estavam. Talvez este seja até o quarto: aquele onde há tanto tempo fiquei com a minha avó. Lembro-me de que dava para a rua principal e lembro-me de que era no primeiro piso. E este quarto que é agora o meu quarto: dá para a rua principal e é no primeiro piso.
Dirijo-me à janela. Abro-a. De repente tudo recuou: mais de três décadas. E vejo um rapazinho que atravessa a estrada. E esse rapazinho sou eu. Fecho a janela. Saio do quarto. Escadas: quero ir pelas escadas. Recepção. Naquele tempo havia sofás em volta de mesas baixas. E os aquístas (era assim que lhes chamavam) reuniam-se em torno das mesas. E conversavam. E faziam jogos sociais.
Procuro um sofá. Sento-me. Tenho uma lembrança estúpida: não percebo porque vem e nem percebo ao que vem: bolachas de araruta! Bolachas de araruta? E agora sim. Agora já sei porque veio e ao que veio, a lembrança. A minha avó comia bolachas de araruta. Meu Deus! Bolachas de araruta. Bolachas de araruta é mesmo coisa de avó. Avó de quarentão, diga-se: que já nem as avós dos que são hoje adolescentes comem ou comeram bolachas de araruta. Acho que já nem se vendem, as bolachas de araruta. Pelo menos já nem me lembro de as ver.
Mas agora que estou aqui. Aqui neste hotel. Agora sim! Agora tenho uma súbita vontade de comer bolachas de araruta. Lembro-me bem delas e de como as comia. Eram triangulares e tinham as pontas levantadas e eram tostadas e duras dum lado e moles e carnudas do outro. E eu gostava de lhes comer primeiro a parte carnuda. E só depois a parte tostada. Bolachas de araruta. Apetecia-me tanto comer aqui e agora uma bolachinha de araruta!
E repentinamente percebo. Percebo algo que já intuira sem nunca ter percebido. Proust. “À la Recherche dum temps perdu”. A célebre passagem da madeleine:
“Et tout d’un coup le souvenir m’est apparu. Ce goût, c’était celui du petit morceau de madeleine que le dimanche matin à Combray (parce que ce jour-là je ne sortais pas avant l’heure de la messe), quand j’allais lui dire bonjour dans sa chambre, ma tante Léonie m’offrait après l’avoir trempé dans son infusion de thé ou de tilleul. La vue de la petite madeleine ne m’avait rien rappelé avant que je n’y eusse goûté; peut-être parce que, en ayant souvent aperçu depuis, sans en manger, sur les tablettes des pâtissiers, leur image avait quitté ces jours de Combray pour se lier à d’autres plus récents; peut-être parce que, de ces souvenirs abandonnés depuis si longtemps hors de la mémoire, rien ne survivait, tout s’était désagrégé; les formes - et celle aussi du petit coquillage de pâtisserie, si grassement sensuel sous son plissage sévère et dévot - s’étaient abolies, ou, ensommeillées, avaient perdu la force d’expansion qui leur eût permis de rejoindre la conscience. Mais, quand d’un passé ancien rien ne subsiste, après la mort des autres, après la destruction des choses, seules, plus frêles mais plus vivaces, plus immatérielles, plus persistantes, plus fidèles, l’odeur et la saveur restent encore longtemps, comme des âmes, à se rappeler, à attendre, à espérer, sur la ruine de tout le reste, à porter sans fléchir, sur leur gouttelette presque impalpable, l’édifice immense du souvenir.”
Proust precisou da madeleine e da recordação da madeleine para perceber o significado da madeleine e da recordação da madeleine: da sua infância, do seu “eu”. E eu precisei da bolacha de araruta e da recordação da bolacha de araruta para perceber outra coisa: só percebemos depois de sentirmos. Já li Proust e nem sei quantas vezes já li esta passagem e já tinha intuído a sua importância. Mas percebê-la? Para a perceber tive de a sentir. E agora sim. Agora e graças a uma recordação de bolachas de araruta: sei o que Proust quis dizer e acho que sei até o que Proust sentiu.
É triste para quem escreve: só depois de vivida é que a vida se torna sentida.
segunda-feira, 11 de maio de 2009
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