França é geográfica e
culturalmente uma espécie de mínimo denominador comum do ocidente. Há uma ideia,
muitas vezes não confirmada pela História, de que as convicções mais profundas
da nossa contemporaneidade tiveram aí o seu berço: liberdade para pensar,
exprimir e fazer; democracia; fraternidade. Será por isso que um golpe
sobre Paris é sentido como um ataque ao nosso modelo civilizacional.
Recentemente, uma amiga questionava-se
sobre os motivos que nos levaram praticamente a ignorar o ataque ao avião russo
no Sinai, que provocou 225 mortos, ao mesmo tempo que nos comocionávamos com as
130 vítimas de França. “Porque não puseram a bandeira russa nos seus perfis do
Facebook?” “Porque quase não se pronunciaram?”
Essa mesma questão apareceu
indiretamente nas redes sociais, não sobre este caso particular, mas sobre a desproporcionalidade
do choque que provocou Paris quando comparado com uma menor atenção à grande
lista de ataques ocorridos noutros locais.
Julgo que há quatro razões para
isso.
A primeira é a forma como tudo
foi feito. Numa cultura de imagens em tempo real, tem um impacto psicológico
muito maior que um grupo de terroristas irrompa teatro adentro, com a
surpreendente frieza de matar um-por-um quem aí esteja. Os relatos de terror
dos sobreviventes, as mensagens desesperadas que iam colocando nas redes
sociais enquanto se escondiam, as imagens literalmente sangrentas. Tudo isto
contribui para um horror muito maior, e também para um incomparável sentimento
de insegurança: afinal, não estamos constantemente dentro dum avião e até
podemos optar por não fazê-lo, sem que isso altere insuportavelmente o nosso
modo de vida. O que não podemos é deixar de frequentar a rua.
A segunda razão terá sido o
tempo que passou entre a queda do avião e o reconhecimento oficial de que não
foi um acidente. A informação foi sendo libertada progressivamente e sempre com
uma substancial dose de dúvida. Só quinze dias depois o governo russo reconheceu
oficialmente o atentado. Nessa altura, já estávamos numa fase pós-comoção.
Creio que estes dois fatores
foram importantes, mas não são os principais determinantes da maior e mais generalizada
reação aos ataques de Paris. O ser humano tem mecanismos de defesa instintiva
que são ancestrais e que, por um lado, o fazem repudiar de forma animal
aquilo que lhe está distante e, pelo outro, solidarizar-se com o que lhe está
próximo. Era assim que os nossos antepassados reagiam às ameaças e protegiam o
seu espaço vital. São instintos básicos que a razão e a moral humanista não
conseguiram debelar totalmente. Esta bestialidade humana está na origem de alguns
fenómenos, uns malignos e outros neutros, como são racismo, nacionalismo,
bairrismo clubismo etc. Somos um coquetail bipolar entre besta e
humano que nos impulsiona a sentir de forma mais profunda o sofrimento daqueles
que estão perto.
Acontece que França é geográfica e
culturalmente uma espécie de mínimo denominador comum do ocidente. Há uma ideia,
muitas vezes não confirmada pela História, de que as convicções mais profundas
da nossa contemporaneidade tiveram aí o seu berço: liberdade para pensar,
exprimir e fazer; democracia e fraternidade. Será por isso que um golpe
sobre Paris é sentido como um ataque ao nosso modelo civilizacional.
Em simultâneo, a Rússia é cada
vez mais vista como “o outro”. A invasão da Crimeia, a crise ucraniana, o
diferendo de posições sobre a Síria, os alertas dos países bálticos e da
Polónia… com ou sem razão, de dia-para-dia o ocidental vê Moscovo mais distante,
e este afastamento provoca anomia.
“Só se se formos capazes de
pensar como humanidade conseguiremos vencer”, respondeu-me a minha amiga,
depois de ouvir estas explicações (que não justificações). Tem razão; a fera ancestral
é o maior inimigo do ser humano que fomos construindo, diga-se que por vezes a
ferro e fogo.
Luís Novais
Foto: Stux
Sem comentários:
Enviar um comentário