segunda-feira, 29 de junho de 2015

EUROPA, ENTRE WAGNERIANAS CAVALGADAS E HINOS À ALEGRIA

É bom que pensemos nisto. Compreendamos que debaixo das garras que hoje se afiam sobre a Grécia, há um espectro que se levanta. É bom que cada um de nós olhe para si, para dentro de si, e reveja esse mesmo espectro. Que lutemos para que ele se mantenha no buraco escuro em que por sessenta anos o mantivemos. Eles, os espectros, quando despertos, vêm sedentos e desvairados.


Tão Crítico desta Europa que se diz União, tudo me move a favor da Europa cultural. É verdade que deste passado saíram muitos crimes, o que não ofusca terem aqui nascido alguns dos modelos e conceitos que mais sentido positivo dão à caminhada da humanidade rumo à sua condição. O mundo de hoje, tão imperfeito que ele é, estaria pior se neste continente não tivesse florido o humanismo greco-cristão que, brotado em oriental praia mediterrânica, se disseminou por ação de Roma e se mundializou a partir de um outro areal, mais a ocidente.

Tudo alcançado à custa de muitos crimes? De muita desumanidade? Sim. No outro prato da balança, há um cintilante humanismo que iluminava e ilumina o caminho, por muito tortuoso que este tenha sido e seja. Estou certo de que sem a história europeia, não teríamos algumas das poucas bandeiras que ainda temos e pelas quais vale a pena lutar. Não teríamos Direitos Humanos, não teríamos respeito pelas minorias, não teríamos ideais de igualdade racial e de género. Somos humanistas e somos cristãos, alguns laicos, como eu.

E o resto? Como se explica?

É esquizofrénico, o nosso continente, e este é o seu problema. O drama filogenético resolvemo-lo com esse dualismo entre o espírito ideal e uma diabolizada matéria e esta foi a fonte duma dupla personalidade entre o sublime e o terreno, entre o ideal de Platão e o desejo de Epicuro. Ambas as forças se digladiam dentro de cada nação europeia e, por extensão, de cada nação ocidental; ambas as forças se digladiam dentro de cada europeu e, por extensão, de cada ocidental.

A loucura terrena de Wagner e a harmonia celestial de Mozart, lutam dentro de cada um de nós, por cada parcela da nossa ação. Confrontam-se, como sempre se confrontaram durante a história europeia. Entre nós, a carne, a matéria, é doce, mas canalha; o ideal, o metafísico, é sublime, mas acerbo. Connosco, até o crime precisa da ideia, do seu sublime. Foi por isso que aqui nasceram alguns do ideais mais macabros de que há memória, que outros conseguiram a tragédia sem deles precisarem. Ambicionamos ideia, mas não resistimos ao mel e como não resistimos ao mel, sacralizámo-lo antes de o comer.

Esta é a esquizofrenia que aclara muitas das nossas contradições e que o diga a Igreja católica, um dos bastiões do ocidentalismo. É também esta esquizofrenia que explica a dupla personalidade com que a Europa avançou entre uma e a outra metades do século XX. Só ela, a esquizofrenia, pode explicar a milagrosa rapidez com que passamos das wagnerianas cavalgadas, a cujo som fumegaram fornos crematórios, aos Hinos à Alegria, com que procuramos construir os anos seguintes.

É bom que pensemos nisto. Compreendamos que debaixo das garras que hoje se afiam sobre a Grécia, há um espectro que se levanta. É bom que cada um de nós olhe para si, para dentro de si, e reveja esse mesmo espectro. Que lutemos para que ele se mantenha no buraco escuro em que por sessenta anos o mantivemos. Eles, os espectros, quando despertos, vêm sedentos e desvairados.


Doí-me a situação grega, dói-me o sádico sofrimento com que pretendem infligi-lo. Mas o que mais me dói é este medo: que Atenas seja altar de novo holocausto. A besta aí está, só não a vê quem não queira. O mel tem apóstolos e já foi sacralizado!

Luís Novais


Foto: "Batalla en las Nubes", Dali.

terça-feira, 16 de junho de 2015

A PROPÓSITO DA TAP E DO CIRCO DO TIRA QUE PÕE

Gerir com olhos postos nos indicadores pode ser perigosa condução. Que o digam os portugueses: para contas públicas sem mácula de dívida, a política inventou esse casamento entre público e privado, que nem bom vento teve. Mas lá estava o abençoado indicador: não era dívida senhores, quase rosas, tudo afinal em pago da utilização, justa compensação pelo servicinho.

O resultado é melhor nem relembrar, que ainda esta gente anda em pagamento de prestações nada suaves. E é que, contas feitas, já nem para divórcio de tamanho matrimonstro lhes sobra tostão.

É o Estado, senhores. O que fazer? Esta coisa de pôr humana gente a gerir públicos dinheiros, nasce torto, nunca de endireita. “Ninguém respeita o que não seu”: axioma que de tão bem trovato, já nem se discute se é vero.

Anuncia-se o circo
Vai daqui que a arte de bem cavalgar qualquer crise foi de segredo único: entregar e em força. “Até damos. Entrem senhoras e senhores, meninos e meninas. Até damos. É entrar, é entrar”. E abriu o circo original: o palhaço era plateia.

Primeiro número: “O fantástico investidor”
Esses sim, que são grandes a gerir. “Ó menino, umas cabeças, um talento que só visto”. E um qualquer tio de tanta barbela quanta manha, urubu mais velho do que novo, acenando que sim, enquanto no bolso vão tilintantes as chaves do escritório de advogados, que esse também é privado e há que viver, há que viver: “Isto do Estado é só sonhos e ilusões, não resta dúvida”, e para mais conversa não lhe sobra verbo que o peso vem de outras manhas e ainda há muita sinecura em distribuição. Falem outros e ponham-se na fila.

Contas certas, pois claro. “Estes senhores até já prometeram que enfiavam uns valentes milhões pela goela da empresa quase falida”. O coro número um: “Não nos resta outra, não nos resta outra”. O coro número dois: “Graças a Deus, graças a Deus”. Um pastor fora do coro: “Aleluia, aleluia!”

Segundo número: “A raposa ilusionista”
Alto e para o baile, que estes são mais zorras que os anteriores (zorra: espécie também conhecida por pilha galinhas). Pois não é que o milhão que entra  d'uma mão sai pela outra? Vender para depois alugar… não era essa a tal manha desorçamentadora de que nos queríamos livrar? Afinal compram o galinheiro em mágica ilusão: tirando e pondo as mesmas galinhas... menos uma ou duas na reposição que o mago também tem família, pois então. “Bravo, bravo. Raposa mais que Hodini!”



“Tirar e pôr o que tira. Génios da gestão!” (na plateia um palhaço não identificado)

quinta-feira, 11 de junho de 2015

FUI















Já fui.
Rio em montanha,
sonhando maresia.
Bola de fogo,
em obscuro firmamento.
Fui força e fraqueza,
caminhando sem parar.
Busca sem encontro,
paradoxo absurdo.
De nada,
fui tudo.

 Fiz quanto desejei.

Quando me diziam,
então não.

Calavam-se,
e então sim.

Houve tudo o que haver havia.
Nada perdi.
Fui, já fui.
Intensamente.
E agora?
Olho momentos,
esses que foram,
por onde quedando passei.

Tive-me intenso.
Tanto, tanto!

Tanto, tanto
que talvez já me não hei.