Tantas palavras para bofetada e uma só para
saudade?! Para quem é adepto de perguntar, mesmo sabendo que é mais fácil
fazê-lo do que responder (ainda que a boa resposta dependa também da boa
pergunta), impõe-se: “Porquê?” Porquê sintetizar tudo o que a saudade exprime
numa só palavra saudade? Porquê, se
até para uma simples bofetada recorremos ao processo analítico e criamos mais
de uma dezena de expressões? Quando falamos de saudade, não nos referimos a um acto
ou objecto, mas a um sentimento; que revelará dos portugueses a particularidade
de tal unificação?
Numa rede social, o meu
amigo José Miguel Braga colocou um daqueles comentários aparentemente inocentes,
mas provocadores: “De entre o imenso rol de variações da chapada, temos a
muito musical lambada, a insuspeita lostra, a melíflua rabanada e, é claro, a
insinuosa ‘puta’. Levas uma puta!”
Esta observação originou
uma série de respostas com outros tantos nomes alternativos para o mesmo ato de
esbofetear alguém. Entre vários, surgiram os seguintes: “Banano”, “tabefe”,”estalo”,
“estalada”, “açoite”, “cachaço”, “calduço”, “solha”, “lostra”, “lapada”, “bofardo”,
“sapatada”, “lamparina”, “laura”, “galheta”, “bolachada”, "palmada". Falou-se de
alguns que desconhecia, como “calduço” ou “muquenco” e até um outro que
desconfio pertencer ao domínio do idioleto, neste caso “catracasla”.
Mudando aparentemente de
assunto, acabo de ler um interessante ensaio de Onésimo Teotónio de Almeida sobre
a “saudade” e a pretensa tendência dos portugueses para padecermos deste
sentimento. Com um espírito marcadamente empirista, a que não será alheia a forte
influência anglo-saxónica, contesta a visão dos “saudosistas” da “Renascença
Portuguesa”, que criaram a chamada “Filosofia portuguesa”: Leonardo Coimbra,
Teixeira de Pascoaes e António Quadros.
Na sua argumentação,
começa por contrariar que seja a língua a fazer um povo, defendendo, ao
contrário, que é um povo que faz a língua. Chegado aqui, nega a visão
saudosista de que os portugueses se possam formar a partir da sua língua, desferindo
assim um golpe no arreigo de Pascoaes e Quadros pela palavra “saudade”, na qual
viram uma, ou a, nascente da identidade nacional.
Uma primeira observação
seria que, se a língua não é causa mas consequência, é então um meio para
chegar à causa, tal qual um sonho não é o inconsciente, mas nos permite chegar
até ele.
Onésimo Teotónio de
Almeida afirma também que “O conteúdo salvável da intraduzibilidade de
palavras, como saudade (…), jaz no facto de ser uma das características do
comportamento cultural de cada um desses povos a incidência com relativa
frequência desse tipo de sentimento, o que levou à criação dum vocábulo que o
denotasse” (167). Parece então poder inferir-se que, consequentemente, os
portugueses têm uma maior tendência para o saudosismo do que outros povos.
Tanto mais que, prossegue, “É dado assente da sociolinguística e da
psicolinguística que uma realidade frequentemente enfrentada, vivida ou sentida
exige um nome por facilidade de referência”. Poderíamos então concluir que este
sentimento foi/é particularmente forte no caso dos portugueses.
A resposta de Onésimo é,
porém, uma aporia: “Deparei, por acaso, no American English Dictionary com pelo
menos duas palavras identificadas como de origem portuguesa e aceites como intraduzíveis
pelo inglês: auto-de-fé e cuspidor”. Segue-se a óbvia conclusão: “Estou
convencido de que qualquer um de nós rejeitaria a afirmação de que essas
realidades fazem parte da e muito
menos constituem a alma nacional
portuguesa” (168).
Pelo menos uma destas
palavras, auto-de-fé, parece confirmar os dois postulados que formulou:
Primeiro, que é a prática dum povo que forma a sua língua e não o contrário;
segundo, que é a incidência particular dum acto (ou sentimento) que leva esse
povo a criar palavras dificilmente reversíveis a outros idiomas.
Partido daqui, observemos
que auto-de-fé como o cuspidor são sujeitos muito concretos,
não correspondendo a sentimentos, enquanto saudade,
sim, é um sentimento. Dentro desta lógica, concluiríamos que os portugueses
tiveram de encontrar palavra para um sentimento por eles sentido com particular
incidência.
Concluiríamos e fecharíamos
se os argumentos se ficassem por aqui, mas não. Pergunta-se o autor se, pelo
facto dos árabes terem cinco mil palavras referentes a “camelo”, isso quererá dizer
que a camelidade “constitui essência ôntica
da língua árabe”. Ou se, tendo os esquimós 10 para neve não seria então de
dizer que é “’a nebelidade’ o constitutivo espiritual dos esquimós”. Num outro
exemplo, mais próximo de nós, lembra que os brasileiros têm mais de cem
palavras para cachaça e “não lembrará a ninguém apontar a ‘cachacidade’ como a
alma nacional brasileira” (169).
Curiosamente, depois
inverte o argumento:
O que parece ocorrer na cultura portuguesa relativamente ao uso da palavra saudade é um abuso da sua aplicação, que
acaba por levar a um alargamento excessivo da sua extensão ou significado.
Quando uma realidade complexa é analisada, descobrem-se nela elementos
constitutivos que recebem um nome (…). Foi assim que os esquimós descobriram
vários tipos de neve ao lidarem com tanta dela (…). O contacto com um real que se
vai diferenciando leva à sua subdivisão e consequente multiplicação de palavras
para nomear todos os seus componentes ou variações identificadas (169-170).
Portanto, o que se passou
com a palavra saudade foi o inverso,
em vez dum processo analítico que desmultiplicasse o sentimento geral em
diversos estados, chegamos a um processo sintético, que uniu diversos estados
numa só palavra: “Mesmo quando essas experiências foram analisadas em pormenor
e os autores falaram de sentimentos que a cultura universal de há muito baptizou
com nomes próprios, esses autores persistiram em denominar saudade todo esse
leque de experiências e emoções humanas” (170).
É óbvio que o facto de
não terem uma só palavra unificadora dos diversos estados de espírito
identificados como saudade, não quer dizer que os outros povos não tenham esse(s)
sentimento(s). Por outro lado, se Pascoaes e Quadros consideraram que é a partir
da “mónada” língua que se forma o caracter daquele que a usa e não o contrário,
será porque a Antropologia e a Linguística não tinham então os avanços de hoje.
Contudo, daqui, ou apenas daqui, não podemos partir para a negação da saudade
como formadora do caracter português: Primeiro, porque, como aponta Onésimo, a
língua nasce a partir dum povo; segundo porque, não revelando que apenas os
portugueses a sintam, saudade
significa que apenas os portugueses unificaram esses sentimentos num só.
Voltamos ao início: tantas
palavras para bofetada e uma só para saudade?! Para quem é adepto de perguntar,
mesmo sabendo que é mais fácil fazê-lo do que responder (ainda que a boa
resposta dependa também da boa pergunta), impõe-se: “Porquê?” Porquê sintetizar
tudo o que a saudade exprime numa só palavra saudade? Porquê, se até para uma simples bofetada recorremos ao
processo analítico e criamos mais de uma dezena de expressões? Quando falamos
de saudade, não nos referimos a um acto ou objeto, mas a um sentimento; que
revelará dos portugueses a particularidade de tal unificação? Não sei, mas algo
foi e algo somos.
Luís Novais
ALMEIDA, Onésimo
Teotónio. Filosofia da Saudade, filosofia
portuguesa: alguns equívocos. In: Id. A Obsessão da Portugalidade. Lisboa:
Quetzal, 1ª Edição, 2ª reimpressão, 2018, pp 154-193.