terça-feira, 25 de outubro de 2016

PARA ACABAR COM A TAXA SOCIAL SOBRE O TRABALHO




O cerne da questão não está em tributar os robots, mas em deixar de taxar o trabalho, incidindo a contribuição no produto final, para o qual contribuíram todos os fatores de produção, incluindo trabalhadores, máquinas, fornecedores, capital e envolvente.

Há dias, João Gabriel Silva, reitor da Universidade de Coimbra, surpreendeu com a proposta de que as máquinas deveriam pagar segurança social. Segundo ele, a automação está a eliminar postos de trabalho a um ritmo superior aos que cria e o facto de não pagar contribuição social cria um incentivo à destruição do emprego (ver aqui).

Trata-se duma daquelas ideias que primeiro se estranham e depois se entranham. Obviamente que cobrar uma taxa social única por cada máquina não é viável. Qual seria o conceito de máquina? Quantos trabalhadores dispensou o multibanco? São definições e contas tão difíceis de consensualizar que abririam porta a uma discussão que os inimigos do conceito aproveitariam para tornar interminável. Não me parece que o contributo do reitor de Coimbra esteja na forma como concretiza a ideia, mas na ideia em si mesma.

O cerne da questão não está em taxar os robots, mas em deixar de tributar socialmente o trabalho, incidindo a contribuição no produto final, para o qual contribuíram todos os fatores de produção, incluindo trabalhadores, máquinas, fornecedores, capital e envolvente. Enquanto empregador, o próprio Estado contribuiria para o sistema de acordo à média do setor privado.

A Segurança Social arrecada hoje 33% do preço do trabalho, dando em troca uma proteção, que inclui subsídio de desemprego e reforma a partir dos 66 anos. Uma como o outro refletem a desigualdade da contribuição: Até um determinado limite, os que descontaram mais recebem mais.

Evitar este custo é um dos principais incentivos que as empresas têm para substituir os trabalhadores humanos por robots e deslocar a produção para países de baixo encargo social. Este mesmo incentivo reflete-se no consumidor, que tem tendência a comprar produtos mais baratos provenientes de mercados onde os trabalhadores são socialmente desprotegidos, as condições de trabalho deficientes e, até, onde se pratica o trabalho infantil.

Pelo meio, gera-se um mega negócio tecnológico que, em vez de produzir equipamentos para o bem-estar humano, os produz para a substituição do homem pela máquina, o que não é liminarmente indesejável, mas a um ritmo que sejamos capazes de absorver.

Está certo que é o mercado e nem sequer quero entrar nessa discussão, que nos levaria a uma interminável viagem por outras águas. Mas não é só o mercado, é também o incentivo que o Estado dá quando taxa socialmente o trabalho e não o produto final.

É por isso que um imposto social sobre a produção, nacional ou importada, seria muito mais equilibrado do que a taxa social sobre o trabalho que agora é cobrada, além de que seria nivelador e solidário: a partir do momento em que deixa de cobrar por cada um, o Estado pode considerar um benefício plano, dividindo de forma igual e entre todos o monto destinado às pensões. A isto poderia acrescentar-se um aumento salarial generalizado de 5% (compensado pelo desaparecimento da taxa social), cativos em títulos de dívida pública que, integral ou parcialmente, seriam entregues a cada aforrador quando se aposentasse, não abolindo assim e de todo uma diferenciação social, mas com equilíbrio.

Vivemos novos tempos que exigem novas respostas e um modelo que serviu no passado pode, não só deixar de funcionar, como ter até um efeito contrário. Numa economia tão desregulada como aquela em que vivemos, a fiscalidade é um dos últimos redutos que o Estado tem para fazer política, e este é um domínio onde a política precisa urgentemente de entrar em cena.


Luís Novais

Foto:Tubarelli

segunda-feira, 17 de outubro de 2016

QUANDO PARIMOS A ARTE


Ser e horror cruzaram-se há 20.000 anos: Nasceu a arte.

A arte cria-nos a ilusão de que é possível controlar o incontrolável mundo. Ao artista, transforma-o numa metáfora de Deus. Ao público alimenta-lhe a ideia de que a vida não é tão horrivelmente indeterminada, oferece-lhe a salvadora convicção de que o ser “nós” pode ser fonte de criação e domínio dos elementos, ainda que por interposto criador, mas humano como os demais.

Transformados em metáforas de Deus ou de deuses, quando criamos aplacamos a angústia da existência consciente. Fazemos mundos sonhados e por nós delimitados, superando a opressão do caos.

As artes plásticas, a literatura, quer na prosa quer na poesia, oferecem a mesma sensação do ser criador que se liberta dum mundo insuportavelmente criado, insuportavelmente imprevisto e insuportavelmente povoado de “outros”.

Música e dança seriam também uma resposta a esta insustentabilidade, acrescentando-lhe a integração. Quando ouvimos ritmos que identificamos e que escutamos repetidamente, o futuro torna-se previsível, ao mesmo tempo que nos incorporamos na comunidade dos que escutam a mesma música, dos que dançam a mesma cadência.

Se nada é mais humano do que a consciência individual de sê-lo, se essa é a nossa grandeza e o nosso drama, então nada é mais humano do que a arte, umas vezes de mão dada com essa outra criação humana, a religião, outras vezes em acesa competição.

Esta é uma perspetiva artística da arte e portanto nada científica. Mas a mesma arte nasce dum sopro inspirador e é desse sopro que se se faz viva. Talvez por isso só uma intuição possa explica-la, nem sequer uma filosofia.

Fecho os olhos e imagino o mundo tal qual ele foi para os caçadores recolectores que há 20.000 anos e pela primeira vez pintaram paredes em cavernas escuras, esses que também imaginaram e fizeram pequenas grandes estatuetas de pedra. À minha volta vejo o gelo do último período glaciar e percebo o risco para toda a existência, a minha, a do grupo, a da espécie. Sinto medo, não tenho a mínima ideia se amanhã seremos.

Regresso ao aparente conforto e penso que esse foi também o momento. Era preciso juntar o ser intelectualmente consciente com uma ameaça total à sua vida.

Essa junção deu-se na última idade do gelo. Antes já o mundo tivera condições climáticas extremas, mas faltou-lhe o ser. Depois teve o ser, mas faltou-lhe a penúria vivida. Ser e horror cruzaram-se há 20.000 anos: Nasceu a arte.


Luís Novais

Foto: Bisonte de Altamira. c: Janeb13