segunda-feira, 22 de junho de 2009

Mais um caso. Desta vez na Bélgica.

Quando os pais e as mães se esquecem dos filhos nas traseiras dos automóveis. Quando os filhos ficam nesses automóveis até morrerem de desidratação. Quando isso acontece ao mesmo tempo que esses pais e essas mães estão a trabalhar. Quando isso acontece: não será altura de pararmos e de repensarmos a pressão a que estão a ser sujeitos os pais e as mães, nós?

sexta-feira, 19 de junho de 2009

A Puta.

Ela acaba de abrir a porta de alumínio que dá entrada para o prédio. O prédio dorme. Está quase a acordar. Mas ainda não. Por agora ainda dorme. E ela já entrou no prédio e já ao prédio fechou a porta. Fechou-lha ela para que por si a porta se não fechasse: em estrondo que acordaria o prédio pouco antes de ser tempo do prédio acordar. E é por isso que o prédio continua a gozar os últimos instantes: em minutos de sono.

Agora que ao prédio fechou a porta: ela respira fundo: sente-se aliviada. É sempre assim que se sente todos os dias quando ao prédio fecha a porta: aliviada. E se o é: é tão só porque a partir daquela hora todas as horas são suas. Todas até à hora em que o prédio janta e vê as notícias e palita os dentes e depois das notícias vê a novela e antes ou depois da novela veste o pijama e depois de vestir o pijama vai dormir. E é esse o momento em que ela todos os dias sai do prédio. E quando todos os dias sai do prédio e fecha a porta para que a porta não se feche por si: ela respira fundo. É um respirar fundo igual ao respirar fundo de quando chega: mas apenas na aparência: a partir do momento em que fecha aquela porta e está na rua: a partir desse momento todas as horas deixam de ser suas. Passam a ser “horas da casa”. Horas contadas em meias horas e por vezes até em quartos de horas. Horas e meias e quartos de horas dos clientes.
Mas agora não. Agora ela está a chegar ao prédio e o prédio ainda dorme e as horas voltam a ser suas. É que ela acaba de fechar a porta do prédio. E a esta hora fecha-a consigo do lado de dentro. Fecha-a para que a porta não se feche por si mesma: em estrondo que acorde o prédio pouco antes de ser tempo do prédio acordar. Não é por preocupação com o prédio que ela não quer que o prédio acorde. Não! É tão só porque o tempo começa agora a contar para si: é seu: muito seu: inteiramente seu. E ela não quer que o prédio dê por ela: no tempo que é seu ela não quer que ninguém a tome por sua.

Sobe a escada. É em mármore branco com veios. Alguns dos veios já eram do mármore quando o mármore se fez mármore. Outros não: outros são veios do uso: do desgaste. E enquanto ela sobe: ela pensa nos seus próprios veios. Quais do seus veios já seriam seus quando ela foi feita ela? E quais já seriam seus quando ela se fez ela? E quais já seriam seus quando os outros a fizeram ela? É por esta ordem que ela põe as suas coisas quando olha para os veios dela, da escada.

E continua a subir a escada. Vai com os sapatos de salto numa mão. Vai com a carteira de dourados esbatidos na outra mão. E continua a subir a escada. Até nem são muitos, os degraus que ela tem de subir. Mas a partir do momento em que fecha a porta do prédio: os pensamentos de si para si são tantos: são tão velozes: tantos e tão velozes que criam a ilusão de serem muitos, os degraus que ela tem de subir. Mas não: não são. São bem poucos, até.

Na verdade ela só conhece aquelas escadas de as subir. Descer desce sempre pelo elevador. O prédio está quase a ir dormir quando ela desce. Mas ainda não dorme. E por isso ela desce pelo elevador: não se importa com o barulho que o elevador faz. E há sempre quem saia do prédio à mesma hora que ela. O que nunca há é quem chegue quando ela chega. E é por isso que subir sobe-se pelas escadas puídas e descer desce-se pelo elevador, pelo menos para ela é assim.

Já subiu. Está frente à porta do apartamento a que chama seu. É desenvernizada, a porta. E tem lustro: mas apenas em volta da fechadura e do puxador. O puxador goza da mesma duplicidade: tem verdete no mais recôndito de si e lustro no mais palpável. Talvez uma duplicidade universal. E o prédio dorme: continua a dormir.

Ela. Ela mete a chave na porta: enfia-a com suavidade: como ela acha que a porta gostaria de ser enfiada. E o prédio dorme. E ela roda a chave: a mesma suavidade com que a enfiou. E o prédio dorme. E a porta abre-se a ela: lentamente: está bem oleada. E o prédio dorme e ela entra na casa a que chama sua.

Já está dentro da casa a que chama sua, ela. E caminha nas pontas dos pés: o prédio ainda dorme. E ela suspira. Despe-se. É frente ao espelho que se despe. Gosta de se ver. Não se despe para ninguém como se despe para si. É que aquelas horas são suas.

Já se despiu. Não se lava: nem de corpo e nem de dentes. Fá-lo sempre na “Casa”: antes de sair. É que a partir do momento em que deixa a “Casa” o tempo passa a contar para si. E ela acha que deve deixar a porcaria do tempo que é o tempo dos outros na “Casa” que é a casa dos outros. Não quer transportar essa porcaria para o tempo que é o seu tempo. Muito menos para a casa que é a sua casa, ou a que chama a sua casa.

Já está nua. Está de costas deitada na cama e está nua. Vê a lâmpada no tecto: a lâmpada no tecto está nua como ela. Olha para o lado: o espelho do armário: o espelho mostra ela a ela: nua. E enquanto se vê nua: enumera: enumera quantos prazeres iludiu nessa noite. E enquanto os enumera: continua deitada e nua e livre neste tempo que é o seu. E como está livre: sente-se, livre. As mãos que estavam estendidas no extremos dos braços estendidos para lá da cabeça: começam a vir até si. Uma dessas mãos queda-se na boca, um dedo: apenas um dedo. A outra não: a outra percorre-a descendo e descendo. E pára: o bico grosso duma mama: afaga-o. Engrossa mais. E conforme engrossa o bico: levanta-se-lhe a anca: destaca-se-lhe a púbis no espelho: no espelho do armário. E é até lá que no espelho ela se vê ir: com a mão a cobrir essa púbis que agora se não vê e os dedos que são seus afogados no que é seu. Está toda ela concentrada em si: pleno gozo do tempo que é seu. E estremece. Estremece de corpo todo. Apetece-lhe gritar. Não grita. O prédio ainda dorme e aquele grito seria um grito verdadeiro e como seria um grito verdadeiro é um grito só seu: só seu, só para si. E é por isso que gritado é: mas gritado dela para ela.

Apaga a luz. E fecha os olhos. E dorme. Dorme consigo. Goza. Goza daquele tempo que é seu. E o prédio acorda. E usa o elevador. E deixa a porta bater.
Agora que acordou: o prédio não se importa que ela durma. E ela também não.

quinta-feira, 18 de junho de 2009

Húmus

Quando tudo o que queremos
do morrer que será nosso:
é que esse nosso morrer seja
morte morrida sem doer:

Esquecemos, talvez. Esquecemos,
que morrer morre-se,
que viver vive-se.
E que de tanto à dor do morrer fugir,
a dor do viver não iludimos.

Quando tudo o que queremos
do morrer que será nosso:
é fugir desse medo,
desse medo d’em húmus finar:

Esquecemos, talvez. Esquecemos,
que de tanto a morte matarmos
a vida, essa não a vivemos.

Nostalgia do absoluto.

São dois, os partos nossos.
Esses em que nascemos
daquilo que nos precede.
E em que daquilo que nos precede:
somos naquilo que é procedido.

E são dois, esses partos.
Um em que da carne que precede
fazemo-nos carne que a procede.
E gente somos. E gente nascemos.

E são dois, nossos partos.
Outro em que da gente que somos:
usamos a carne que precede.
E da carne que precede:
fazemos o “eu” que a procede.
E pessoa somos. E pessoa nascemos.

Quereria que fossem três, os partos.
Um de gente que nos precede.
E um de pessoa que somos.
E um Daquilo que precede o que procede:
precede tudo o que é,
precede tudo o que não é.
Quereria. Quereria.

domingo, 14 de junho de 2009

Irão e Razão e Emoção.

Tenho falado com alguns iranianos na Europa. Nenhum deles é conservador. Nenhum deles apoia Ahmedinejad.

Se queremos perceber o que se passa no Irão: temos de fechar os nossos olhos ocidentais. Temos de tentar perceber os acontecimentos sob o ponto de vista do outro. E há um aspecto em que nós ocidentais somos como todos os outros, por muito que ainda achemos que não: somos muito emotivos e pouco racionais.

M. é um iraniano que bebe cerveja e que come a carne proibida e que se afirma muçulmano de tradição mas não de prática. Uma atitude bem europeia, portanto. Está a fazer um doutoramento na Europa. É apoiante de Musavi. Quando lhe perguntei o que acha do negacionismo de Ahmedinejad: respondeu-me de imediato que não concorda com o presidente. Mas pensa que qualquer pessoa deve ter o direito de negar a dimensão do holocausto. “Eu não nego o holocausto. Acho mesmo que é uma tremenda ignorância histórica fazê-lo”, diz. “ Mas por que é que a Europa acusa o Irão de falta de liberdade de expressão e em grande parte dos países europeus prendem quem negar o holocausto?” Touché.

A grandeza de outrora e que foi a do Império Persa brilha nos olhos de todos os iranianos com quem falo. E essa é a promessa que Ahmedinejad tem feito: uma afirmação internacional de posições nacionais. Nenhum iraniano me parece imune a este apelo que vem do seu inconsciente histórico. E a promessa de transformar o Irão numa potência nuclear é só uma delas. A outra é conseguir ter todo o mundo contra. É muito soberano: ter o mundo quase todo contra. Poucos impérios se podem dar ao luxo de ter um “outro relevante” com essa dimensão. E por muito que a razão aponte outras vias: há sempre o apelo emocional.

Ainda ontem estive num grupo onde M. estava. A talhe de foice falamos de Portugal. E falamos da nossa presença no Oriente e nomeadamente no seu país. E ele nomeou Ormuz. E foi impossível não vislumbrar um brilho nos olhos de todos os portugueses que participavam da conversa. M. não interferiu nesse brilho dos olhos portugueses: mas tento perceber qual seria a reacção do grupo se M. tivesse sido menos diplomático: se tivesse falado da nossa expansão como quem fala dum crime. E se assim tivesse sido: não duvido nem um instante: os argumentos que nos foram ensinados em décadas de propaganda historiográfica surgiriam à flor da pele. E lá estaríamos todos a apresentar a M. a clássica argumentação do Império benigno.

Ainda assim e mesmo sem a provocação de M.: lá se foi falando do Império. E alguns acusando a Inglaterra de nos ter traído. E outros acusando a Espanha. E nenhum pondo em causa a legitimidade própria do império.

É que nós somos como todos os outros: muito emotivos e pouco racionais. E eu dou comigo a pensar como seriamos hoje. Como seriamos hoje se tivéssemos as segundas maiores reservas mundiais de petróleo e gás natural? E se tivéssemos a Espanha e o Reino Unido e muitos outros dependentes da nossa produção? Acredito que muitas humilhações históricas que agora são apenas murmuradas ribombariam nos nossos ouvidos. Que muitos ultimatos seriam recordados. Que muitos políticos explorariam esses amargos de boca. E que provavelmente ganhariam eleições, esses políticos.

Queiramos ou não (e eu não queria) o discurso de Ahmedinejad tem muito eco nos iranianos. Independentemente de Ahmedinejad ter sido o escolhido de 63% dos iranianos ou de 45%.

E talvez em todo o Ocidente nós portugueses sejamos dos mais habilitados a perceber o que se passa no Irão. Nós e talvez os austríacos. Por razão da emoção.

quinta-feira, 11 de junho de 2009

Uma Aventura Inquietante

Leio “Uma Aventura Inquietante” de José Rodrigues Miguéis.

A acção decorre entre o fim da década de vinte e o início da de trinta. Começou a ser escrita em 1934. E é como o título: inquietante. Sobretudo quando lida em 2009. Está lá tudo o que é actual. Estão os tablóides deturpadores e deformadores da opinião pequeno-burguesa. Está lá a justiça-injustiça. Está lá a classe média que alimenta a grande finança e perde tudo. Está lá a expiação no ódio ao estrangeiro…

Está lá tudo. Está lá absolutamente tudo. E hoje sabemos como acabou tudo aquilo. Acabou no nazismo e no fascismo e na guerra civil de Espanha e nos holocaustos da II Guerra e em Portugal acabou numa ditadura que perdurou. Está lá tudo. Absolutamente tudo. E tudo aquilo acabou no que sabemos que acabou.

Até onde nos levará isto tudo: o de hoje?

É definitivamente “Uma Aventura Inquietante”.

quinta-feira, 4 de junho de 2009

Micro-memórias dum desconhecido.

Nota prévia: Por engano entregaram-me estas folhas juntamente com umas fotocópias que pedi. Não resisti a ser indiscreto: a partilhá-las.

As minhas micro-memórias.
Quando entrei para a escola queria ser arqueólogo. Daqueles arqueólogos que são arqueólogos no Egipto. Esses descobridores de múmias e de pirâmides e de outros tesouros como sejam até arcas perdidas, que destas últimas ainda não se falava no tempo em que o quis ser.
Ainda puto mas menos puto quis ser escritor. Na quarta classe comecei um livro com um grupo de colegas: escrevíamos um capítulo alternadamente. Claro que não funcionou. Cada um encarnou um dos personagens e quando era a sua vez de escrever só fazia tropelias aos outros. E pensado bem: talvez até tenha funcionado: talvez assim tivesse ficado mais parecido com a realidade. Mas nessa altura éramos putos. E como éramos putos ainda achávamos que a realidade era diferente da realidade. E por isso não acabamos o nosso livro.
Desiludido com a escrita terminei a escola primário. Descobri que queria ser historiador. Como historiador quis sucessivamente ser arqueólogo (nesta altura já era mais abrangente: já não precisava de ser no Egipto) e depois medievalista e depois contemporanearista.
Devo reconhecer que a fase mais difícil foi a primeiríssima: quando quis ser arqueólogo no Egipto. Os meu pais não gostavam nada daquela mania do puto: esburacar-lhes o jardim. E fartavam-se de me explicar que era impossível encontrar pirâmides enterradas no nosso quintal. É claro que eu não acreditava. E continuava a escavar. Até que um dia deu-se aquilo que parecia um milagre: havia mesmo uma pirâmide no quintal! Mas não era no local onde eu escavava: era mesmo ao lado. Eu explico. Nesse dia trabalhei mais arduamente do que trabalhara até aí. E talvez por isso: ao lado da minha vala de arqueólogo havia uma grande pirâmide: uma pirâmide feita de terra: do monte de terra que eu tinha tirado do buraco. E o meu pai quase ficou em catatonia quando chegou a casa. E dessa vez fui mesmo coagido a acabar com as minhas pesquisas arqueológicos… nesse tempo havia métodos educativos verdadeiramente eficazes… mas no fundo no fundo: continuo com a certeza de que há uma pirâmide enterrada algures naquele quintal. E um dia ainda vou tirar esta teima!
Tudo isto foi intervalado com a fase em que quis ser mágico. Essa fase teve de característico um clube de magia de que eu era o único sócio. Orgulho-me: comecei-o do nada. Hoje-em-dia fala-se tanto das garage-corporations: essas que são grandes empresas mas que começaram numa garagem. Mas eu comecei a ser mágico duma forma ainda mais embrionária. Claro que tive sorte com a forma como evoluiu o processo civilizacional. Mas soube tirar partido disso. E segundo dizem é aí que está o génio. Sucede que por esse tempo estava a deixar de ser moda que o almoço de domingo fosse criado em casa. Ganhava-se aquela ideia de que animais em casa são da família e que a família não se come (com conhecidas excepções que têm sido casos de justiça nos últimos tempos). Atentos ao andar da História: os meus pais concluíram que já não fazia sentido criar os galináceos intra-muros e no seio do agregado familiar. Foi por isso que também o nosso almoço de domingo passou a ser de aviário e a nossa ultima galinha teve até tempo de ganhar nome próprio para além de nome de espécie. Morreu de velha e foi enterrada e julgo que foi até chorada, a Micas.
Sucede que com a morte da micas: vagou o condomínio fechado onde a micas residia. E foi também assim que consegui instalações próprias para o meu clube de magia do qual eu ainda era o sócio único. Mas cá comigo pensei que tendo instalações assim tão condignas: precisava também de ter mais sócios. Confesso que neste ultimo projecto contei com uma grande ajuda chamada “Páginas Amarelas”. Sem elas jamais teria conseguido. Quem hoje-em-dia está familiarizado com a internet não imagina quão difíceis eram esses tempos em que fui pioneiro do que futuramente viria a chamar-se direct-marketing. E toca de escrever uma carta a todos os mágicos: “convido-o para sócio do clube de mágicos”. Era uma carta digna, muito: ia escrita à máquina e tudo!
Orgulhosamente orgulhoso fiquei quando um dos mágicos apareceu lá em casa. Estava eu no quintal. “É aqui o clube de mágicos?” “É sim. Mas a sede é nas traseiras.” E lá fomos para o antiga assoalhada da saudosa Micas. E pelo caminho lá foi o mágico perguntando-me se o presidente do clube estava. E lá foi sabendo que o presidente do clube era mesmo eu. E lá fomos chegando à sede. E ainda hoje estou convencido de que dessa vez fiz magia mesmo a sério: o mágico desapareceu para nunca mais aparecer. E ainda hoje me esforço para perceber como usei desse poder que é meu. Sobretudo quando ouço alguns políticos a falar.
Avançando no tempo que esta mania de ser mágico foi um parênteses e já está maior do que a história toda.
Da fase de mágico passei para a de domador de animais selvagens. De alguma forma deveria estar com uma tendência circense. Mas o que interessa é que consegui. Uma vez mais sou a prova viva e vivida de que a tenacidade compensa. E consegui sob a forma dum grilo que treinei para o funambulismo: essa arte humana de caminhar sobre uma corda que se diz bamba. Arte humana, não: disso tenho a prova provada. Com sangue suor e lágrimas consegui amestrar o meu grilo para essa tal de funambulismo. E ele fazia-o melhor do que qualquer humano. Mas, ó triste sina: sofreu grave acidente: a corda estava a dois palmos do chão e o pobre animal caiu. E atenção: dois palmos pode parecer pouco para nós que somos mais altos. Mas ponham-se esses dois palmos à proporção da altura destes comedores de alface: pode imaginar-se a gravidade da situação.
Nesse preciso momento decidi que tinha de salvar aquele herói. E de domador de feras fiz-me imediatamente noutra vocação: queria ser médico: queria salvar o meu grilo funambulista. E dei o meu melhor. De algodão ensopado com álcool em riste: e tudo chapado sobre o pobre do acidentado. Mas em poucos segundos vim a perceber que não aguentava ser médico. Afinal esforçara-me tanto. E ainda assim não o salvara! A dor de alma era muita e dessa dor de alma um médico não pode padecer. Pobre grilo! E de médico me fiz coveiro: paz à sua alma.
E tudo isto foi passando sem que eu desistisse completamente da arqueologia e da História. Digamos: talvez no meu percurso a magia e a domesticação de grilos funambulistas tenha sido a expressão da minha crise dos oito anos: a passagem de putíssimo para puto. Mas agora já não, agora estava superada a crise e uns anitos depois até me pus a pesquisar o que julgava ser a História da minha vida, pondo-me a fazer a tal árvore que dizem genealógica... aquilo que um francês que também é historiador disse ser culto dos mortos: a identidade dos que ainda vivem na vida dos que já não. Desprezando tão mal-intencionado gaulês, passava noites a imaginar o romance que escreveria com tamanha coleção de mortos, eu. Coisa épica a sério, que Gonçalo Ramires era um pindérico e agora a coisa era comigo.
E entretanto lá fui crescendo e ganhando penugem e começando a sentir aquelas ânsias das partes a que chamam baixas mas que na verdade são intermédias. E lá chegaria o tempo de ir para a Universidade. E obviamente que quando tocou a escolher curso: foi para História que fui. Queria vir a ser investigador, um historiador a sério. Mas, é claro, na Universidade lá me desiludi com a Universidade. Mas o problema devia ser meu: afinal eu já falhara algumas vezes: falhara como mágico porque a única magia que conseguira fora a do desaparecimento de outro mágico e falhara como funambulista de grilos e até como médico de grilos funambulistas. E como eu sabia que a culpa era minha e não da Universidade, tomei uma decisão: já que lá estava deveria tirar partido desses tempos. Esses mesmos que pouco originalmente costumávamos dizer que eram os melhores da nossa vida. Fui presidente da minha Associação Académica durante três anos e isso fez-me ganhar o gosto pelas coisas da liderança, por essa arte tão nobre e sublime: a política.
Curso terminado preparava-me para ser professor de História. Mas um então ministro convidou-me para almoçar. Resultado: 24 horas depois era adjunto. Gostei da experiência mas percebi que afinal detestava a política: se era para fazer ilusionismo então preferia regressar à magia.
Regressei isso sim à vida civil e foi o Reitor da minha Universidade que me convidou para desenvolver um projecto. Não durei seis meses. Despedi-me. Decidi que tinha de ser independente: estávamos em 1994 e o que estava a dar era ser empreendedor. Começava a falar-se de internet. Eu mal sabia utilizar um computador. Mas achei que aquele era o negócio da minha geração. Vendi o meu carro. E com esse dinheiro criei uma produtora de software para a internet. Se eu fosse modesto não diria que foi uma das primeiras no mundo. Mas como talvez seja: não digo mesmo. Enfim, uma excentricidade tamanha: o historiador que afinal não o foi meteu-se a fazer uma empresa de software. E não foi por ininputabilidade que qualquer mestre da psique confirmaria que o espécime em questão estava consciente da sua inconsciência: para ele, o que fazia trabalhar essas máquinas chamadas de computadores era tão misterioso como a própria bruxaria.
Enfim. Passados 13 anos já me era insuportavel, a empresa. Voltei a achar que o problema era meu. Resolvi arejar a cabeça e fui fazer uma pós-graduação em negócios. A escola era das melhores da Europa e até do mundo. E a pós-graduação tinha uma designação muito pós-graduado, entre outras coisas chamava-se "de alta direção". E nem sei se aos meus colegas foi útil. Sei que a mim foi. E muito: percebi definitivamente que já não queria nada com essa maluquice de ser empresário. Enfim, alguns anos de vida por água abaixo que querer ser contra-corrente num país de correntes tem seus custos. Mas a culpa foi minha, claro, pois já tinha um bom histórico de rotundos falhanços: escritor falhado em puto, falhado mágico, impossivel treinador de grilos funambulistas, não falando no fracasso enquanto médico dos ditos, ou do Gonçalo Ramires de trazer por casa e do ex-futuro político... enfim, uma história que fala por si e que reforça as minhas culpas no cartório, pois que não se consiga à primeira ou à segunda tentativas, até é natural, mas tanto falhanço só mesmo por responsabilidade individual, nunca pela social. Reconheço-o, mas sem humildade, até com minha pontinha de orgulho..
E porque cada vida não esgota a vida: tive de arranjar outra. E mudei. Só ainda não sabia para o que estava a mudar. Mas estava a mudar. Isso estava. Nessa altura conheci uma gringa num desses sites de Web dita social. Dois meses a conversar online e meti-me num avião, eu. E meteu-se num avião, ela. Encontramo-nos em Miami Beach. Foi XXXXXXX:) enquanto durou. Mas claro, a gringa era muito gringa e passados cinco dias já não a conseguia aturar. E acredito que nem ela a mim. Mas a imodéstia não me permite aceitar esta ultima parte. Estávamos em Key West quando nos separamos. Uma estupidez: eu apenas lhe dissera que ela tinha uma cabecinha tal qual de um tal de Mr.Bush, que na altura era o maioral dum império que já não existe e de que talvez ainda vos lembreis, que alguns dizem que sim, que ainda existe mas que está apenas em vias de extinção, ou em reestruturação, conforme os que o dizem não gostam ou gostam de impérios do bem, que também há impérios dos outros, os do mal, que normalmente são os que este, que é o do bem, designa como maus. Uma afirmação que em si mesmo já quer dizer que os que assim os dizem, aos impérios maus, consideram que também pode haver bondade num império, o seu; enfim, pontos de vista.
Voltemos, isso sim, ao que interessa: por via da zanga com a dita gringa, lá estava eu, numa ilha que não conhecia e sem ter nada para fazer. Um autentico Robison Crousué, eu. Ou morria de tédio ou o tédio morria de mim. Tive de inventar alguma coisa para fazer. Enfim: lembrei-me que em putíssimo quisera ser escritor. E pensei que talvez já fosse suficientemente crescido para poder voltar a ser putíssimo. E desatei a escrever. E escrever é o que tenho vindo a fazer desde então. E ainda não parei. 
Não sei se fui claro.

quarta-feira, 3 de junho de 2009

Segredo d'alma

E eu também não recuo.
Mas é-me impossível saber,
o que encerrado estava,
nessa casa que se fechava.
E não é de não querer
que não posso o que quero.
É que esse sonho sonhado
é sonhado num sonho não meu.
O que era, Jacinta?
Que encerrava a casa?
O que era, Jacinta?

Mas agora noto.
E notando percebo:
há título nesse sonho.
Um sonho que é afinal
O sonho duma alma:
de até onde’alma levar;
levar aquela que sonha.
E eu sei. E eu sei.
Sei que por vezes é:
é até à própria alma
que a alma tem de levar.

E se assim é. Já coragem não tenho:
para perguntar.
Não traia o segredo de sua alma
aquela que alma sua viu.


Inspirado em: "Até onde a alma me levar I"

Esse eu do não eu

Do outro me revolto.
Do outro porque o outro
é o eu do não eu.
Mas se me revolto
dessa revolta do outro:
é por não aceitar
que o eu do não eu
é o não eu do eu.
E é assim q’a revolta
do eu contra o outro:
mais revolta não é
do que a d’eu contra eu.
Deste que não aceita
q’o abdicar do outro,
mais abdicar não seja
do q’o abdicar do eu.

segunda-feira, 1 de junho de 2009

Tudo-por-tudo

Há sete dias que não escrevo aqui.
Estou na fase tudo-por-tudo para terminar o próximo livro... e ainda não lhe arranjei título!
Prometo regressar :-)