A análise do recente resultado eleitoral está naquela fase que mais gosto, que é a da formulação de hipóteses, essa que António Damásio considera ser a intuição do cientista. Depois deste momento da inspiração, certamente virão os trabalhos de campo, os grupos de foco, as amostras, as entrevistas… todos esses métodos que a ciência social criou para, também ela, encontrar regularidades e transformar num cosmos possível esse caos que é o ser humano.
Procurarei neste artigo formular
algumas hipóteses meramente intuitivas sobre as causas do terramoto político
que foi a subida do partido Chega, assim como fazer alguma sociologia das interpretações, neste último caso
já com alguns dados muito preliminares de campo.
Eclético que procuro ser e
realmente centrista, consigo estar bem nos grupos de direita e de esquerda,
ouvir ambos e dialogar com uns e com os outros. Estas apenas 24 horas já me
permitiram sistematizar algumas das explicações que estão a ser dadas e, mais
do que aderir a alguma delas, fazer a respetiva sociologia.
Por que subiu tanto o Chega?
Um amigo votante à esquerda e parte
da classe média com formação superior, com emprego garantido e todas as
respetivas conquistas socio laborais, acusava aquilo a que chamava “a
oligarquia do sistema” de ter orquestrado tudo, manipulando a Comunicação
Social e fabricando sondagens. É uma típica teoria da conspiração frente à qual
lhe disse que tal oligarquia, a existir, era aquela a que ele mesmo (e já
agora, eu) pertence, ou, pelo menos, aquela que a massa eleitoral do Chega vê
como tal.
Na minha perceção (e aí vai a
formulação de hipótese) os apoiantes deste partido são aqueles que não têm
trabalho seguro, não fazem descontos, não recebem subsídio de desemprego,
férias pagas e subsídios em julho e dezembro; tampouco têm relacionamentos pessoais
relevantes que os ajudem a resolver alguma situação complicada. Vivem numa mole
de instabilidade e olham até para o tradicional operário sindicalizados e com
direitos laborais como uma classe privilegiada à qual gostariam de pertencer.
Para eles, PS e PSD são os mesmos de sempre, que se aproveitam e lhes bloqueiam
o acesso àquilo que consideram ter direito. Bloco e Livre são “copinhos de
leite” burgueses urbanos a lutar pelos privilégios que recebem dos seus
empregos de classe média licenciada. O PCP é o protetor dos “proletários”, base
social do sistema, para eles privilegiada e a partir a partir da qual se forma a
fronteira entre o mundo dos outros e o seu próprio.
Não é por acaso que o Chega
atingiu o seu melhor resultado no Algarve, reino do emprego sazonal, da instabilidade
no trabalho e da falta de direitos laborais. Este distrito é precisamente
aquele onde esta sociologia do Chega se aplica na perfeição. Creio ser por isso
que aí teve aí este resultado e trata-se de um laboratório do que poderá ser este
modelo de desenvolvimento, assente no turismo e no trabalho precário.
Para uma sociologia das
interpretações
Como disse, procuro ser eclético
e tenho um posicionamento político alinhado ao centro, que aliás é o que me faz
votar no PSD. Isto permite-me estar a meio caminho entre posições de direita ou
de esquerda e, sobretudo, ouvir a ambas.
Aparte o excelente discurso de derrota
proferido por Pedro Nuno Santos, creio que, na maioria, ainda todos usam o
Chega mais para defender as suas próprias posições, do que para analisar
fenomenologicamente as razões do eleitor deste partido.
Dou apenas dois exemplos, mas poderia dar muito mais:
1. Num grupo de esquerda acusava-se o PS de ser o responsável por esta situação, porque teria desinvestido nos serviços públicos, ao invés de aumentar a respetiva quantidade e oferta. Normalmente acrescenta-se um suposto maquiavelismo do Presidente da República. Ou seja, a culpa seria do Governo por ter sido excessivamente liberal, argumento que se apimenta com a crença numa manipulação vinda de Belém e, também, da imprensa.
2. Em grupos de direita dizia-se que não, que os eleitores do Chega eram “pessoas como nós”, que antes votavam no PSD e no CDS, empresários e quadros superiores que estavam fartos da excessiva carga fiscal, que são também contra a chamada “ideologia de género”. Ou seja, o problema seria a falta de liberalismo e putativos excessos nos costumes. Este argumento também leva o seu tempero, normalmente culpando-se a Comunicação Social (bombo para as festas de uns e outros) e os comentadores que, à direita e à esquerda, fariam o jogo desta última.
Com algumas variações, vi este
tipo de argumentação disseminado, respetivamente à esquerda e à direita. O
interessante destes argumentos é que também eles têm uma sociologia. Primeiro,
ambos os grupos procuram usar o Chega para defender que o que faz falta são
mais políticas daquelas em que cada um acredita: mais serviços públicos e mais Estado,
num caso, menos impostos, mais liberalismo e uma moral conservadora, no outro.
Também é interessante verificar
que vivemos em bolhas sociais que passamos a considerar a realidade. Creio que
a massa de votantes no Chega é aquela que referi (os excluídos do sistema), mas
como esse grupo não está entre as relações diárias e de amizade daqueles que
têm um pensamento estruturado e uma posição social de algum conforto, que são os
que sabem usar o “poder simbólico” da linguagem e expressar corretamente uma
linha de pensamento, tendemos a confundir os relacionamentos pessoais com a
realidade e a dar àqueles de entre as nossas amizades que votaram neste partido,
uma importância eleitoral que a meu ver não têm. Claro, repito, que estamos
ainda no domínio das perceções e da formulação de hipóteses e todas as visões
são válidas enquanto não tivermos trabalhos de campo.
A negação
Uma última palavra para referir aqueles
que não têm nenhuma destas interpretações, mas apenas veem o Chega como um bando de fascistas e racistas, uma praga de infra humanos que que nem querem
ver e que apagam das suas amizades no Facebook. Para estes, o Algarve tornou-se
num reino maldito.
Considero que esta é a atitude
mais perigosa, por ser de negação e uma recusa de compreender o fenómeno. Pedro
Nuno Santos disse, e bem, que quase 20% dos portugueses não são fascistas nem xenófobos.
Afirmou também a necessidade de entender as causas do seu descontentamento e
reconquistá-los. Esta é a atitude correta e só teremos pós-Chega se os lideres
dos partidos que construíram a Democracia seguirem esta via.
Aparentemente o PS já está a
aprender e vai por aí, espero que o meu partido e o seu líder, Luís Montenegro,
não fiquem excessivamente absorvidos pela governação e não consigam fazer o
mesmo, ou acredito que teremos surpresas desagradáveis nas próximas eleições,
provavelmente antecipadas.
Luís Novais
Foto: Leopictures por Pixabay